Tradição e inovação. Será que essas duas palavras estão sempre em lados opostos? Com a proximidade do Dia da Gastronomia Mineira, celebrada nesta terça-feira, propomos uma reflexão sobre o que é a nova cozinha mineira.
Os chefs da nova geração falam em técnicas e equipamentos inovadores, mas todos se mantém fincados em suas raízes: não dá pensar no futuro sem olhar para o passado. Ainda mais no caso do estado de Minas Gerais, que carrega tantas tradições.
Caio Soter diz ser um chef do presente que ama o passado. Fascinado por história, sempre se interessou em estudar e entender a cozinha mineira. Quando decidiu abrir seu próprio restaurante, o Pacato, não teve dúvida de que deveria reverenciar a tradição do seu estado. Ao mesmo tempo, queria estar na vanguarda, pensando o futuro.
“Todos os restaurantes de autor são reflexo do chef, e eu sou esse cara. Tenho 32 anos, sou moderno, gosto de viajar para fora, gosto de tecnologia, mas também sou muito conectado com as minhas raízes. Sou muito apegada a Minas Gerais, Serra do Curral, o Centro da cidade e Avenida Afonso Pena.”
No Pacato, ele trabalha ingredientes enraizados na cultura mineira, só que com uma roupagem moderna. O chef se move pelo desafio de apresentar uma cozinha especial e celebrativa com o que comemos todos os dias.
“Para mim, faz sentido trabalhar com estudo, técnica, tecnologia, criatividade e inovação para apresentar os ingredientes de forma diferente, mas qualquer dona de casa que entrar na nossa despensa vai conhecer 90% do que usamos.”
Veja a transformação do clássico mineiro frango com quiabo e angu. Caio usa a técnica francesa de ballotine para enrolar o peito de frango na sua própria pele e recheá-lo com purê de coração.
Antes disso, a carne foi cozida no moderno sous vide e depois será finalizada com a ancestral brasa. O quiabo dá sabor ao molho de pé de frango e também aparece tostado. Já o angu, servido com sifão, fica mais aerado e leve. Parece uma nuvem na boca.
Na opinião de Caio, a nova cozinha mineira busca transgredir através da inovação. “A nouvelle cousine francesa foi uma transgressão da cozinha clássica, assim como a cozinha moderna que veio com Ferran Adrià. Ambas buscam parecer o que não são, mexer com comensal de forma que não seja óbvia, mudando a textura ou o visual do ingrediente.”
Seguindo esse raciocínio, o chef se permite fazer várias brincadeiras, como servir uma ostra na concha que não é do mar. Na verdade, é uma parte pouco conhecida do frango. Atualmente, a carne chega à mesa acompanhada de molho de cenoura e sorbet de milho verde.
A forma de apresentar os pratos moderniza a cozinha mineira servida no Pacato. No primeiro menu degustação, havia uma asa de frango recheada com socarrat (arroz espanhol caramelizado). Era uma versão de galinhada.
Caio explica que o prato tem todos os elementos que considera marcantes nessa receita: frango cozido, cúrcuma e arroz. “Apresentamos um novo formato, mas continuamos mantendo os sabores e as texturas do prato tradicional.”
Como representante da nova geração de chefs, Caio enxerga que a cozinha mineira está se distanciando do estereótipo do fogão a lenha, mas sem perder sua origem. Seria uma cozinha tradicional reinventada com identidade própria, que caminha para frente e continua a olhar para trás.
“Queremos mostrar que aqui não tem mineiro caipira e desconfiado. Somos modernos, cosmopolitas, do mundo. Mas não trocamos um frango com quiabo e angu por lamen ou carbonara.”
Mineira, com orgulho
Pelo que observa Bruna Martins, a gastronomia mineira vive um momento de fortalecer suas origens para afirmar sua identidade. De mostrar que Minas Gerais não se resume ao regionalismo, que a cozinha daqui pode ser contemporânea e autoral. Não que seja superior ou mais sofisticada, como ela deixa claro, é apenas um jeito diferente de criar e executar os pratos.
A chef se coloca como parte deste movimento e avisa que suas raízes mineiras estarão bem mais presentes em suas criações a partir de agora.
“O Birosca está completando 10 anos e tem recebido muitas pessoas de fora (o turismo gastronômico está mudando o perfil do público), então percebi que preciso levantar essa bandeira. Sou mineira também.”
A vontade de Bruna é caminhar cada vez mais para pratos que evidenciam o seu olhar para a cozinha mineira tradicional. Como a broa de fubá dourada na manteiga e servida como tostada com tartar de palmito, requeijão de raspa, creme de milho e picles de beterraba por cima.
Tem também o rosbife de carne de sol com picles de abóbora, castanha de baru e pão de alho aberto com manteiga de garrafa, uma das entradas mais vendidas na casa.
O caminho que a chef quer trilhar coincide com a preferência do público. O prato batizado de Galinha mentirosa está entre os mais pedidos. A receita parece um clássico mineiro, pois tem galinha caipira, quiabo, abóbora, agrião, coração de galinha e um ovo com gema mole por cima. Mas um detalhe muda tudo: o risone entra no lugar do arroz.
Olha que interessante o que vem acontecendo no seu novo restaurante, Florestal. O carro-chefe do cardápio, que aposta em uma comida de rua internacional, com protagonismo vegetal, é o jiló chamuscado e espalmado.
O mineiríssimo ingrediente ainda é base para um creme, tipo babaganoush, com castanha fermentada e tahine. Acompanham cogumelos defumados.
O entendimento de que os clientes buscam sabores mineiros inspirou a chef a criar o homus de milho verde com quiabo em conserva e molho de goiabada com mostarda, uma novidade do cardápio.
Bruna adianta que está testando fazer kimchi (conserva coreana de acelga) de taioba e tem pesquisado outros ingredientes da nossa terra que podem se transformar com uma leitura mais global.
Influência nos ingredientes
Henrique Gilberto se coloca entre os cozinheiros que levam pitadas de contemporaneidade para o prato e que fazem a cozinha mineira se renovar. No Cozinha Tupis, uma das propostas é colocar uma lupa para ampliar as principais sensações evocadas ao comer um prato tradicional do nosso estado.
Um exemplo: o molho pardo, algo que quase não se vêm restaurantes, surge em um contexto diferente do que estamos acostumados, e como protagonista. No prato, você encontra nhoque, ragu de frango com quiabo e folhas de ora-pro-nóbis, que ficam mergulhados em uma generosa porção de molho pardo derramado por cima deles.
A nova cozinha mineira de Henrique também dá valor a ingredientes historicamente marginalizados, como os miúdos, que são as estrelas do arroz de pato.
“Colocamos os miúdos (coração e fígado) por cima, em vez de esconder, como forma de mostrá-los como uma iguaria máxima. Os miúdos são a base da nossa cozinha e são a base da cozinha do Centro de BH”, aponta.
Na sua visão, não se trata apenas de técnicas e equipamentos. “O trabalho técnico de cada chef é muito particular e isso não define a nova cozinha mineira. Ser vanguarda é conseguir influenciar os produtores e a matéria-prima na sua base”, opina.
Para ele, já passamos da fase de defender o uso de produtos locais para estarmos no campo tentando sempre melhorar a qualidade do que será servido.
O chef inova ao resgatar o que chama de boemia gastronômica. Nada mais é do que servir uma comida de altíssima qualidade de maneira simples, em pé, no balcão.
E, assim, ele ajuda a posicionar a BH como uma cidade gastronomicamente turística. Por que não vir aqui para comer, assim como se faz na Espanha, Japão, França e São Paulo? Pelo menos 30% do público do Cozinha Tupis são turistas.
Histórias no prato
O que Gabriel Trillo faz hoje no Omília vem de se inspirar no trabalho de Alex Atala. Se o chef de São Paulo estava mostrando o valor dos ingredientes brasileiros, por que ele não poderia fazer o mesmo em Minas?
“Não acredito que o inovador seja desenvolver técnicas elaboradas. Entendi que é trabalhar com o que o mineiro produz de melhor e contar as histórias.”
Segundo o chef, vanguarda, no seu caso, é unir todas as pontas da cadeia produtiva (fornecedor, cozinheiro e consumidor). Omília, inclusive, é uma palavra grega que significa conversar, e é o que ele propõe ao destacar no cardápio de onde vem os ingredientes.
Quando vai à mesa, também tem a oportunidade de falar sobre o produtor e contar de onde veio aquilo que a pessoa está comendo.
Com isso, todo prato tem um ingrediente que traz um sabor familiar ao mineiro. A massa do dadinho de tapioca tem canjiquinha e queijo canastra para substituir o coalho. Para acompanhar, molho de compota de jabuticaba. Gabriel conta que ajudou a produtora de Sabará a desenvolver uma receita desta compota com menos açúcar.
O queijo canastra também faz parte da receita do aligot que acompanha a maminha de lata. O chef usa a antiga técnica de conservar a carne em gordura para preparar este corte bovino, que fica desmanchando. Completa o prato a farofa de torresmo.
Outra ideia foi fazer um nhoque de requeijão moreno. “Ele ajuda a dar um ponto mais firme para o nhoque, a ponto de cortar em cubinhos e grelhar.”
Maminha de lata, aligot e torresmo Gabriel Trillo (Omilía)
Ingredientes
4kg (ou duas peças inteiras) de maminha bovina com gordura; 500g de alho batido; 50g de cebola em pó; 50g de páprica picante; 50g de páprica defumada; 100g de sal grosso; 6 cabeças de alho cortadas ao meio longitudinalmente; 6 cebolas sem casca cortadas ao meio longitudinalmente; 1 ramo de alecrim; 2 ramos de tomilho; 4 kg de banha suína (ou o suficiente para cobrir as peças de carne); 250g de torresmo pururucado; 250g de farinha de mandioca beiju; 250g de farinha panko; 200g de manteiga; pimenta-do-reino, sal e páprica picante a gosto; 3kg de batata inglesa cozida e amassada; 1kg de creme de leite fresco; 1,2kg de queijo canastra; 1,2 kg de queijo muçarela; sal e noz-moscada a gosto
Modo de fazer
Deixe a maminha marinando durante 12 horas em uma vasilha dentro da geladeira com alho batido, cebola em pó, páprica picante, páprica defumada e sal grosso. Coloque os ingredientes do confit (alho, cebola, alecrim, tomilho e banha suína) em uma assadeira. Leve ao forno pré-aquecido a 220ºC durante 20 minutos, ou até dourar os legumes. Reserve. Na panela onde está a maminha, coloque a banha suficiente para cobrir a carne. Junte os legumes tostados do preparo anterior. Confite em fogo brando, aproximadamente 90ºC, durante 4 horas. Deixe esfriar e corte em porções de 140g. Para a farofa de torresmo, toste o torresmo com a manteiga em uma frigideira. Agregue a farinha panko e a farinha de mandioca e tempere a gosto, mexendo sempre para torrar bem a farofa e deixá-la crocante. O torresmo deve ser macerado junto com a farinha para o sabor ficar uniforme. Para o aligot, aqueça as batatas com o creme de leite fresco e o queijo canastra. Bata com o mixer até ficar liso. Agregue o tempero e finalize com a muçarela até dar o ponto de aligot. Na hora de servir, grelhe a maminha na brasa ou na frigideira, pincelando-a com o próprio óleo da cocção.
Serviço
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