O que servir em um lugar com 300 anos de história? Essa pergunta foi o ponto de partida para a criação do projeto Primórdios da Cozinha Mineira, que mapeia a gastronomia do estado através de antigos hábitos, produtos, técnicas e receitas. Nesta nova etapa, o foco tem sido desenvolver pesquisas em cada cidade.
“A cozinha mineira vive do resgate, de manter viva sua memória, de transformar o passado em presente e futuro”, aponta a pesquisadora do Senac Minas, Vani Pedrosa.
Leia Mais
Chefs modernizam a cozinha mineira com os pés fincados em suas origensCarla Pernambuco celebra 30 anos de carreira recriando clássicosRestaurant Week une música e gastronomia em retomada presencial em BHFestival de cozinha mineira movimenta Palácio da LiberdadeBanqueteira sugere em livro menus completos para cada mês do anoMulheres são protagonistas de circuito gastronômico realizado em BHCulinária mineira de cara nova: confira 10 pratos tradicionais revistosDia da gastronomia mineira, comemorado hoje, tem celebração magraNa época em que se fez aquela pergunta, Vani havia sido convidada para criar o cardápio do Santuário Nossa Senhora da Piedade, em Caeté, na Grande BH. Como não queria servir qualquer comida, fez pesquisas na biblioteca de Frei Rosário, que dedicou sua vida religiosa à proteção daquele espaço, e encontrou pistas do que era consumido nos séculos passados.
O cardápio resgatava receitas que estavam documentadas. Entre elas, sopa de banana verde, frango cheio (recheado com farofa de torresmo), queijão (pudim feito com doce de leite), rapadura de banana e café de amendoim.
“É como se fosse um chocolate quente, mas, no lugar do cacau, colocavam amendoim moído e bastante canela. Esquenta, é estimulante e tem um sabor muito bom”, descreve.
Mais tarde, Vani recebeu o convite para fazer o mesmo no Santuário do Caraça, entre Catas Altas e Santa Bárbara. Vasculhando o rico acervo de livros e documentos, chegou a uma conclusão que seria a base do projeto: “A forma como a alimentação acontecia no Caraça coincidia com o que acontece em toda Minas Gerais: a relação entre quintal, cozinha, mesa e venda do excedente”, conta.
A partir da pesquisa no Caraça, a pesquisadora, já com o apoio do Senac Minas, definiu os nove pilares da cozinha mineira, a começar pela horta histórica. No santuário, foram identificadas 65 espécies de verduras, como labaça, beldroega, couve e azedinha.
“Percebemos que, se cada cidade descobrisse a sua horta tradicional, isso poderia gerar um diferencial na gastronomia do estado”, aponta.
Com esse trabalho, o projeto conseguiu transformar em lei o cultivo e o uso de verduras locais em todas as escolas municipais de Santa Bárbara.
O estudo ainda identificou os pilares pomar histórico; farinhas, pães e quitandas; queijaria; doçaria; bebidas alcoólicas, café e chás e carnes e outros derivados de animais. Todos estavam preservados no Caraça, exatamente como se fazia há 250 anos.
Curiosamente, os dois últimos pilares ficaram evidentes durante a visita de um grupo de indianos ao santuário. Vani conta que eles quase não comeram no jantar, porque estranharam a comida, mas, no dia seguinte, quando viram o fogão a lenha acesso, ficaram eufóricos. Pediram farinha e água, amassaram o pão, levaram a massa para assar e comeram como se estivessem em casa.
“Quando olhei aquela cena, entendi que comida é um ritual de um território. O modo de fazer, de servir e de comer reflete toda a nossa formação cultural, traz memórias e saberes locais”, destaca a pesquisadora, que acrescentou o pilar receitas tradicionais, seguido de ambiente, utensílios e técnicas.
Trabalho investigativo
Definidos os pilares, foi desenvolvido um método de pesquisa capaz de transformar a tradição local em produto, gerar renda, desenvolvimento econômico e promover o turismo. O trabalho começa pela investigação e dura até nove meses.
Vani não lê nada sobre a cidade antes de ir a campo. “Durante a pesquisa, vejo o que emerge da história do território. Isso ajuda a entender o potencial econômico e o que está no desejo das pessoas.” Depois ela cruza o que coletou com a história e dados estatísticos.
Em Brumadinho, por exemplo, os moradores falavam muito da mexerica, mas lá a produção maior é de tomate. No fim das contas, chegou-se à conclusão de que os dois produtos deveriam ser trabalhados, a mexerica pela afetividade e o tomate pelo potencial agrícola.
Na sequência, a equipe se dedica ao desenvolvimento e difusão do produto, que pode se dar por vários meios. Graças ao estudo, a região Entre Serras: da Piedade ao Caraça, que abrange seis municípios, foi oficialmente reconhecida como produtora de queijo minas artesanal.
O tour pelo estado começou no ano passado por Diamantina, onde foram encontradas receitas como o frango caipira ao molho pardo de feijão vermelho (lembra o original pela cor e sabor potente) e o doce de milho duro, da época dos escravos.
“O doce é feito com o milho que se dá para galinha, duro mesmo, com rapadura. Leva 11 horas para ficar pronto. Fica cremoso e com um sabor inacreditável.”
Segundo Vani, o trabalho impacta diretamente as comunidades ao mostrar que as pessoas podem se profissionalizar e desenvolver produtos que vão levar o nome delas, da família e da cidade para o mundo.
“Uma quitandeira de Barão de Cocais, que faz biscoito de polvilho com açafrão, está participando de um reality show e construiu a casa dela. Isso dá valor ao ser humano e é o que mais me comove.”
Pensando no ganho para o estado, como um todo, a pesquisadora destaca a importância de entender o que é o patrimônio da cozinha mineira e encontrar formas de replicar esses saberes.
Oito municípios são atendidos por ano, cada um com até quatro produtos. Tiradentes e Nova Lima já estão confirmados para 2023.
A próxima etapa do projeto, prevista para começar no ano que vem, será catalogar e sistematizar técnicas da cozinha mineira, como o modo de tirar os espinhos do cacto para usá-lo como legume, identificado em Diamantina.