Duas mulheres chamadas Mariana. Uma nasceu em Belo Horizonte, a outra é de Formiga, na Região Centro-Oeste de Minas Gerais. Elas não se conhecem, mas estão conectadas por coincidências que vão muito além do nome. As personagens desta matéria são apaixonadas por carnes e defumação e vêm ganhando destaque na charcutaria mineira. A seguir, Mariana Ribeiro e Mariana Lucas contam como fazem para marcar território em um mercado que ainda é muito dominado pelos homens.
Quem vê cara, não vê força. Muita gente duvida, mas Mariana Ribeiro é quem desossa os porcos que cria para fazer os produtos da charcutaria Beira Mato, em Formiga. Diante da carcaça inteira, ela vai tirando corte por corte. Com a carne que sobra, faz embutidos, a pele vira torresmo, a banha vai para a carne de lata e orelha, pé e focinho são defumados. No fim, aproveita-se todo o porco. “Não me importo de fazer esse trabalho, que é bem pesado, porque gosto muito.”
Mariana cresceu na roça onde os avós criavam e matavam porco para consumo da família. Curiosa, sempre rondando a cozinha, ela conquistou seu lugar à medida que a idade avançava. No início, só podia picar toucinho para fazer banha. Quando cresceu mais, passou a limpar a carne e encher linguiça. Aquela menina não podia imaginar que, um dia, destrincharia sozinha um porco inteiro.
Faltou coragem para fazer gastronomia e ela acabou escolhendo estatística. Em BH, Mariana estudou, formou-se e conseguiu o primeiro emprego, mas não era feliz. Só sorria quando estava na cozinha. O interesse por defumação a fez se debruçar sobre livros e começar a produzir bacon, linguiça e costelinha em casa. Até que surgiu a oportunidade de trabalhar com o chef Rafa Bocaina, que vive em uma fazenda em Silveiras, no interior de São Paulo, onde cria porco caipira e faz charcutaria.
Lá, Mariana enxergou o que queria para a sua vida. “Construí a Beira Mato para ter uma vida perto da roça, da natureza, com mais sossego e fazendo o que gosto, que é cozinhar. E, dentro da cozinha, uma das coisas que mais gosto é mexer com carnes.”
De volta a Formiga, ela montou a charcutaria na roça dos avós. Seu irmão, Felipe, é veterinário e cuida da criação dos porcos. Foi um sufoco conseguir encontrar raças caipiras, que têm mais gordura. “Acho que, para a charchutaria, o porco tem que ter gordura, que é a base do sabor. Além disso, esses porcos são da nossa região.” Quando o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire passou por Formiga, no século 19, viu muitos porcos e chegou a descrever a raça canastra, que o avô de Mariana já criou.
A Beira Mato desenvolve produtos curados (que passam por um processo de cura com sal) e depois maturados em um ambiente com temperatura e umidade controladas. Entre eles, copa-lombo (pescoço), lonza (lombo), bacon e panchetta (barriga), lardo (gordura), guanciale (papada) e culatello (corte do pernil). “A linha de curados parte de uma inspiração italiana, mas não copio o mix de temperos. Tento fugir do raciocínio lógico e fazer do meu jeito.”
Bacon adocicado
Cansada do copa-lombo tradicional, Mariana, que é “viciada” em café, teve a ideia de usar apenas os grãos moídos na hora com pimenta-do-reino. Daqui a uns dois meses vão sair as primeiras peças e ela adianta que o tempero ficou “absurdo” de bom. Já o bacon é curado no melaço de cana com sal, pimenta-do-reino e aniz-estrelado. Assim, o corte ganha complexidade com notas adocicadas.
A charcuteira também faz questão de oferecer produtos bem mineiros e caipiras, que se conectam com as suas raízes. A linguiça fresca é totalmente inspirada na receita que a sua avó fazia na roça, com um tempero bem simples e sem conservantes. Mariana também resgata a carne de lata, que comeu “a vida inteira”, e o torresmo à pururuca.
Até o salame italiano nduja, típico da região da Calábria, ganhou uma versão caipira. Na Itália, mistura-se ao toucinho muita pasta de pimenta, o que não é comum de encontrar no Brasil. “Tive a ideia de fazer o embutido usando ingredientes brasileiros: urucum, pimenta de bode e dedo-de-moça. Faço uma pasta de pimenta fermentada, que deixa o nduja bem vermelho, como o original.”
Os produtos da Beira Mato vêm ganhando espaço em restaurantes em BH, como Turi, Cozinha Santo Antônio, Roça Grande e Cozinha Tupis. O que explica isso? “Em primeiro lugar, a qualidade da matéria-prima, que é o porco, e dos ingredientes. Depois o modo de fazer artesanal, o carinho, o respeito, a dedicação. O meu conhecimento charcuteiro vem da experiência em Silveiras, mas o resto aprendi sentada na cadeira estudando e fazendo testes sozinha”, responde Mariana.
Os porcos recebem alimentação natural, como milho, banana e abóbora, e são abatidos quando atingem, em média, um ano de idade e 140kg a 180kg (mais que os da indústria). Segundo a charcuteira, a carne está com um “nível de marmoreio inacreditável”. Além disso, ela não usa conservantes (o único aditivo é o sal de cura) e privilegia temperos que colhe em sua horta. Em contraste com todo o trabalho braçal, existe a delicadeza na hora de temperar. Mariana diz que a alquimia é a alma do negócio.
Desde o início, a jovem de Formiga tinha consciência de que o mercado era dominado pelos homens. Até porque demorou para conhecer uma charcuteira. Mesmo assim, ela se orgulha em dizer que se espelha em mulheres. “Toda a minha inspiração de cozinha é feminina. Aprendi a cozinhar com as minhas avós e tias e tenho admiração por muitas mulheres”, diz, lembrando que Mariana Gontijo, chef do Roça Grande, foi quem abriu as portas para o seu trabalho em BH.
Apesar de todas as dificuldades, Mariana está segura de que este é o caminho a seguir. “Gosto demais do que faço, e faço da melhor forma. Se o fato de ser mulher me impedir de chegar a um lugar, então nem quero estar lá. Quero estar em lugares abertos para mim”, pontua. Um dos planos da charcuteira é abrir um bar e restaurante para cozinhar com os seus produtos.
"Rainha do bacon"
Mariana Lucas é conhecida como “rainha do bacon”. “Isso é o que as pessoas falam”, aponta a fundadora da Charcutaria Santa Cecília, em Belo Horizonte. Para alcançar esse reconhecimento, ela já passou muitas madrugadas fazendo testes e enfrentou algumas dificuldades para se destacar em um mercado majoritariamente masculino. Mas sua paixão por carnes e defumação não a deixou desistir e hoje sua produção chega a quatro toneladas por mês.
A charcutaria tirou Mariana do “fundo do poço”. Há sete anos, depois de cair em uma churrasqueira acesa, descobrir um problema no coração e fechar dois negócios (um de salgados e outro de cerveja), tudo ao mesmo tempo, ela encontrou no trabalho com carnes a motivação para seguir a vida. “Sempre gostei da área de gastronomia e já tinha um interesse por defumação”, conta.
Mariana emendou um curso de churrasco com aulas de defumação e se animou a desenvolver suas receitas. No início, ela fazia linguiça fresca em casa, mas logo decidiu focar em bacon e teve que buscar para um espaço maior para dar conta da demanda.
“Sentia falta de um bacon de qualidade no mercado. Aí uma hamburgueria começou a indicar para a outra, e essa receita mudou a minha vida.” Rapidamente, a produção saltou de 800 quilos para duas toneladas por mês e não parou de aumentar.
Segundo a chef charcuteira, seu processo é 100% artesanal. Primeiro ela esfrega os temperos secos em cada cantinho da manta de barriga de porco, “com todo carinho do mundo”.
A peça fica curando na geladeira por sete a 10 dias para depois ser lavada em água corrente e chegar ao defumador. Lá, fica por oito horas em contato com a fumaça de lenhas frutíferas, como goiabeira e macieira, para ganhar cor, sabor e aroma. Por fim, leva-se para congelar e no dia seguinte já dá para fatiar.
Na boca, Mariana garante que seu bacon provoca uma explosão de sabores, sem ser salgado. “Não é igual bacon de supermercado. Você consegue sentir o sabor da carne, das especiarias e da defumação. Quase não sente o sal”, descreve.
A charcutaria fabrica outros produtos curados e defumados, como copa-lombo, porchetta, linguiça calabresa e pastrami (único de boi). Destaque para o bacon de papada, que Mariana também chama de “guanciale à mineira”. Isso porque a peça passa pelo processo de defumação, diferentemente da receita original italiana, em que se utiliza a maturação.
“Trabalho com a técnica italiana, mas quero muito enaltecer a nossa gastronomia, e a charcutaria mineira é muito voltada para a defumação.”
Filha e neta de fazendeiros, Mariana se lembra de que era comum ver os cortes do porco pendurados em cima do fogão a lenha. Naquela época, não se falava em charcutaria, mas a técnica é a mesma de hoje: a defumação aumenta o tempo de conservação das carnes.
Em breve, a marca vai lançar uma linha de produtos maturados. O guanciale italiano já está em fase de teste. Mortadela, salsichão e linguiça para aperitivo também estão nos planos.
A chef diz que seguiu o caminho da charcutaria por “pura intuição”, sem imaginar que se tornaria inspiração para muitas mulheres. “Quando chego perto dos caras, estufo o peito e me imponho”, comenta, com o bom humor de quem sabe que não vale a pena “fechar a cara”. Mariana já deu aula para várias mulheres e, de dois anos para cá, percebe uma presença feminina maior. Mas espera ver mais.
“Enfrentar esse mercado é sair da zona de conforto. Não é um caminho fácil, porque nos exige fisicamente. Mas trabalhar com carnes é muito gostoso. Desejo que existam muito muitas mulheres com coragem e garra”, analisa Mariana, que está sempre criando novos produtos. A chef charcuteira brinca que trata as peças como se fossem filhos e acredita que esse cuidado, transferido para toda a sua cadeia produtiva, dos fornecedores aos clientes, faz toda a diferença.
Espaguete à carbonara (Mariana Ribeiro - Beira Mato)
Ingredientes
50g de guanciale; 1 ovo; 40g de queijo pecorino ralado; 80g de espaguete; pimenta-do-reino e sal a gosto
Modo de fazer
Para o molho, misture o ovo, a pimenta-do-reino moída na hora e o queijo pecorino em uma tigela. Reserve. Corte o guanciale em cubos e frite em fogo baixo até que fique crocante e a gordura derreta. Cozinhe o espaguete ao dente em água fervente e salgada. Reserve 1 xícara da água do cozimento e escorra o macarrão. Adicione o espaguete à frigideira com o guanciale e 2 colheres de sopa da água do cozimento da massa. Mantenha o fogo alto e misture bem por 30 segundos. Desligue o fogo, adicione a mistura de ovo e pecorino e mexa vigorosamente. Adicione 1 ou 2 colheres da água do cozimento do macarrão e continue a mexer. O molho deve ficar cremoso. Se for necessário, adicione mais água do cozimento. Sirva imediatamente. Se quiser, coloque mais pimenta-do-reino e pecorino sobre a massa.
Serviço
Charcutaria Santa Cecília(31) 99725-9104
Beira Mato
(37) 99927-9034