Não faltam motivos para comemorar. A próxima edição do Festival Cultura e Gastronomia de Tiradentes, que começa nesta sexta-feira, marca seus 25 anos e a retomada 100% presencial depois da pandemia. Com o tema “Inconfidência mineira”, o evento, primeiro neste formato do país, segue na vanguarda. “Vamos lembrar o primeiro movimento de libertação do Brasil no ano em que comemoramos o bicentenário da independência”, diz o diretor Rodrigo Ferraz. A programação, com destaque para os oito jantares especiais (festins), vai se espalhar por vários pontos da cidade.
Chegar a essa “idade”, segundo Rodrigo, é uma responsabilidade e, ao mesmo tempo, uma realização. “Estamos mantendo uma história que se iniciou 25 anos atrás com Ralph Justino e se tornou importante para Tiradentes, para Minas Gerais e para o Brasil”, destaca o diretor, admitindo um “frio na barriga” pela espera da edição comemorativa.
O festival nasceu em 1997, quando o então prefeito teve a ideia de organizar um evento de gastronomia para promover o turismo. Lá no início, a programação se resumia a um fim de semana de almoços e jantares na pousada Mãe D'Água, no Largo das Forras. Hoje são 10 dias de atividades em vários pontos da cidade, incluindo a praça, a rodoviária e restaurantes. A novidade deste ano é a inclusão do Santíssimo Resort. A expectativa é receber de 60 a 70 mil pessoas.
Enquanto o festival crescia e se profissionalizava, Rafael Pires se preparava para ser cozinheiro. Filho de Ralph Justino, criador do evento, ele começou a participar ainda criança. Na primeira edição, tinha 10 anos e fez curso de pães com Olivier Anquier. “Sempre gostei de cozinhar e, com o festival, essa minha paixão foi aumentando e fui amadurecendo a ideia de levar essa vida como profissão”, conta o chef, que só não participou no período em que esteve fora do Brasil.
Já mais velho, Rafael passou a trabalhar na cozinha e conheceu nomes como Alex Atala, Claude Troisgos, Christian Le Squer (três estrelas Michelin em Paris) e Paulo Pinto (estrela em Portugal). Em 2013, depois de ter participado por muitos anos dos festins como assistente, recebeu o convite para assinar um jantar como chef do Pacco & Bacco. “Fiquei muito feliz naquele momento. Durante muitos anos, vi vários chefs estrelados e renomados naquele lugar.”
Para Rafael, o mais interessante é a troca com chefs que vêm de fora (de outra cidade, estado ou país). Há três anos à frente do Mia, ele já recebeu colegas como Alberto Landgraf, do Oteque, no Rio de Janeiro, restaurante duas estrelas Michelin e que está entre os 50 melhores do mundo.
Ao lado de Fabrício Lemos, do Origem, em Salvador, Rafael abre a temporada de festins. O mineiro assina pratos como tempura de jiló com mousse de fígado de galinha e broinha de milho com doce de leite defumado e limão. Já o baiano quer surpreender com o Milho, milho, milho (que surge em versões crispy, assado, pamonha e pipoca) e o arroz de polvo com torresmo e glace de porco.
Juliana Ferreira, do restaurante Gourmeco, vai participar pelo nono ano do festival (o terceiro como anfitriã de festim). Mas ela diz que o evento marcou sua vida antes mesmo de se mudar para a cidade. “Essa nova leva de cozinheiros que, como eu, escolheu viver em Tiradentes e construir uma história aqui, só fez isso porque a cidade se tornou referência gastronômica. E o festival é responsável.”
Sempre em movimento
Ao longo desse tempo, a oportunidade de conhecer outros chefs, a vontade de sempre apresentar novos pratos, os desafios diante de novos temas vêm transformando sua história e menus. “Cada encontro com chefs, ingredientes e técnicas nos transforma e transforma a nossa cozinha. Acho que isso é muito interessante, o festival nos coloca nesse movimento, não nos deixa ficar estáticos”, analisa.
Por ter sido, nos últimos dois anos, a única mulher anfitriã dos festins, Juliana reconhece sua importância na luta pela representatividade feminina. Em especial, marcou o jantar que assinou ao lado de Bela Gil, em 2020, no auge da pandemia, o primeiro vegano da história do festival. Desta vez, ela vai cozinhar com Ivo Faria, mas avisa que dois pratos são inspirados em cozinheiras.
O pão de milho com erva doce, servido com manteiga batida com queijo minas, alho negro e mel de aroeira, vem de dona Lucinha, enquanto o brodo de galinha d'angola, que envolve o tortelli de feijão com caviar de quiabo trufado e bochecha de porco, resgata a história de Zenilca Navarro. Fundadora do Tragaluz, ela criou a tradição de servir galinha d'angola com o famoso prato Pintada Tragaluz.
A chef do Gourmeco fez questão de vir a BH para construir os pratos do jantar junto com Ivo Faria. Segundo ela, só dá para misturar sabores e histórias em um encontro olho no olho.
A dupla vai trabalhar ingredientes da cozinha mineira com uma pegada italiana. “Além de comemorar os 25 anos do festival, o menu será uma grande homenagem ao Ivo, que participou de todas as edições e foi responsável pela chegada da alta gastronomia em BH com o Vecchio Sogno”, pontua.
Além dos jantares, o público poderá comer nos estandes dos restaurantes, comprar produtos na mercearia, aprender nas aulas gratuitas e acompanhar o preparo de receitas ao vivo.
Ricardo Martins, do UaiThai, não se esquece do dia em que cozinhou na praça o pad thai. Segundo ele, estar ao ar livre, cercado pelo público, foi especial. “Comida tem que ser envolvente e emocionar”, aponta o chef, que promete fortes emoções no festim com Tássia Magalhães, do Nelita, em São Paulo.
Seguindo sua proposta de misturar Minas e Ásia, ele inicia o jantar com rolinhos primavera de arroz recheados com camarões flambados na cachaça. Depois parte para o carré de cordeiro com demiglace de mexerica e cuscuz de quinoa e finaliza com banana caramelada, broa cremosa de milho e sorvete de tamarindo.
Entre um prato e outro de Ricardo, Tássia servirá croqueta de cogumelos com maionese de nirá, fusilli com fonduta de queijo Cuesta Azul e radicchio e curd de acerola com merengue.
Trabalho reconhecido
De visitante a convidada. Melissa Andrade estreia nesta edição como chef e anfitriã de um dos jantares. Advogada, trocou processos por receitas e, desde fevereiro, comanda o Dengo! Tiradentes. Já bateu ansiedade, mas ela está radiante pela oportunidade de receber o público no seu bar de tapas. “Sou chef de primeira viagem e ver meu trabalho sendo reconhecido em tão pouco tempo é emocionante.”
A dupla de Melissa será Juliana Duarte, do Cozinha Santo Antônio, em BH que também fez transição de carreira (era historiadora e publicitária) e assina pela primeira vez um festim. Juntas, elas criaram um menu que brinca com o tema da Inconfidência Mineira e une Minas com Portugal.
Na etapa das “confabulações”, as chefs servirão alguns petiscos, entre eles profiteroles de mousse de fígado de galinha com molho de jabuticaba e bacalhau desfiado com pupunha e couve crocante. O “motim” será representado pela barriga de porco assada e prensada com molho de caramelo de cerveja e nhoque de milho. Para a “trégua”, uma seleção de queijos mineiros. Quando chegar o momento do “perdão”, canudinho de baru com ambrosia.
Há quase dois anos em Tiradentes, como chef do Tragaluz, Matheus Paratella recebe com emoção o convite para os festins: é um importante reconhecimento do seu trabalho. Esta segunda participação como anfitrião será especial, pois ele vai realizar um sonho, que é cozinhar com Jefferson Rueda, de A Casa do Porco, em São Paulo, eleito recentemente o sétimo melhor restaurante do mundo.
“Quando voltei da Itália, queria conhecer e trabalhar com grandes chefs. Primeiro realizei o sonho de fazer estágio com o Alex Atala. De alguns anos para cá, venho observando o trabalho do Jefferson e, quando recebi a notícia de que ia cozinhar com ele, essa gaveta do sonho se abriu”, conta. Para Matheus, é a mesma sensação de ganhar uma estrela Michelin.
O menu do Tragaluz une Minas e Itália. Os chefs vão interpretar ingredientes mineiros com a base italiana, comum aos dois. Matheus servirá, por exemplo, quiabo sott'olio (que fica uma semana imerso em óleo aromatizado) e galinha d'angola recheada com pistache, ora-pro-nóbis e legumes da horta.
Sushi de papada
Já Jefferson vai apresentar ícones da sua casa, como tartar de porco e sushi de papada. Depois selecionou dois pratos que estão atualmente no menu. Um combina texturas de mandioca com bacon, glace de porco e sorvete de tucupi e o outro é o umbigo de porco com consomê de legumes tostados.
Não é por acaso que Beth Beltrão se sente parte da história do festival. Há 31 anos em Tiradentes, ela viu o evento nascer e crescer e sempre gostou de participar, principalmente nos bastidores. Se algum chef de fora precisa usar câmara fria, fogão ou máquina de sorvete, é para o seu restaurante que vai. A cozinha do Virada's do Largo fica de portas abertas para dar suporte aos colegas. Beth conta que já cedeu sua “casa” para os preparativos do jantar de Alex Atala.
Nesta edição, a chef deixa os bastidores para cozinhar com Caio Soter, do Pacato, em BH. “Eu sou raiz, ele está transformando a comida em arte, mas, quando começamos a combinar o cardápio, vimos que tínhamos muita sintonia. A cozinha está no coração”, destaca Beth, que enxerga o colega como “promessa de continuidade da cozinha mineira”.
O menu terá clássicos do Virada's do Largo: pão de queijo com pernil à pururuca, tutu com lombinho grelhado na cachaça e couve “beliscada” e sorvete de queijo da casa com goiabada. Caio vai mostrar uma cozinha mineira mais contemporânea, servindo pão de milho com manteiga de porco, jiló defumado com molho de mostarda e frango com caviar de quiabo, angu e molho de pé de galinha.
Para a chef, que conheceu Tiradentes antes do festival, a cidade ganhou um presente. “Falo que as pessoas não vem só pela beleza da arquitetura, vêm também pelo estômago”, comenta Beth, que se orgulha de estar em um lugar referência nacional e internacional em gastronomia. Uma vez, quando estava na Suíça, perguntaram se a sua cidade era onde existia um festival.
Completando a lista dos festins, Rodolfo Mayer (Angatu) recebe Onildo Rocha (Notiê e Abaru – SP) e Alisson Fernandes (Bistrô Casa Direita) cozinha com Mônica Rangel (Gosto com Gosto – RJ).
Ambrosia com especiarias (Melissa Andrade - Dengo! Tiradentes)
Ingredientes
500g de açúcar; 750ml de leite; 250ml de água; 6 ovos (de preferência caipira); 1 pau de canela; raspas de 1 laranja; 4 unidades de cardamomo
Modo de fazer
Derreta o açúcar na panela e, assim que formar o caramelo, acrescente o leite e a água. Adicione as raspas de laranja e o cardamomo e deixe ferver por 15 minutos. Depois desse tempo, retire as especiarias com uma peneira. Separe as claras e bata até formar claras em neve. Acrescente, aos poucos, cada gema. Adicione a mistura dos ovos à calda, que está no fogo, bem devagar, para não desfazê-la. Deixe até reduzir e ficar cremosa. Leve à geladeira e sirva a ambrosia gelada.
Serviço
25º Festival Cultura e Gastronomia de Tiradentes
De 19 a 28 de agosto
Informações sobre a programação no site e no Instagram