Rio de Janeiro – O endereço nos leva à porta de um restaurante. Você se senta no balcão enquanto espera ser convidado para entrar. No momento certo, recebe a “senha” para atravessar o salão e passar por dentro da cozinha, em pleno funcionamento. De repente, uma cortina vermelha se abre na sua frente e revela um ambiente com música e luzes. Em instantes, começa um espetáculo que convida o público a interagir com a comida usando todos os sentidos.
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Muito influenciado pela sua trajetória na televisão, o chef, com quase 50 anos de profissão, idealizou uma experiência multissensorial inédita, em que visão, audição, olfato e tato estimulam o paladar.
“Parte da minha formação profissional me levou à técnica, criatividade, mistura de elementos, mas, com o tempo, você começa a entender que o sabor é influenciado por outros fatores.”
A experiência se desenrola em uma “caixa” escura de 49 metros quadrados. São apenas seis mesas, com dois lugares cada, e uma bancada de cozinha.
Conhecido pelo nome do seu super-herói favorito, Batman tem um trabalho abrangente de cenografia (viajou o Brasil como diretor do mais recente show da cantora Marisa Monte), mas esta é a sua estreia na gastronomia. É ele quem cuida da imagem como um todo do projeto, desde as projeções até as louças, passando pela roupa da equipe e o “balé” dos garçons.
Ainda sem saber ao certo o que esperar, somos recepcionados pelo famoso biscoito de polvilho ao curry com creme de trufa e uma taça de espumante. Na sequência, a esfera de queijo canastra por cima de uma bruschetta explode na boca e chacoalha as papilas gustativas.
Logo vem o recado em alto e bom som da música de Gilberto Gil: “O melhor lugar do mundo é aqui e agora”. Os sinais são claros de que o momento é de se desconectar da vida lá fora e se preparar para o que está por vir.
De uma hora para a outra, as luzes começam a piscar e um rock'n'roll da pesada aumenta o clima de suspense. Surpresa! Os garçons saem de trás da cortina, com o próximo prato em mãos, e servem todas as mesas ao mesmo tempo. Agora o espetáculo vai começar para valer.
Definitivamente, o Mesa do Lado não é apenas um jantar. Seria uma peça de teatro? Sim. Mas também tem muito de show de música, cinema e programa de TV. O menu, com 10 etapas, divide-se em três atos. Tem hora para começar e para terminar.
A comida não é harmonizada apenas com vinhos: trilha sonora e iluminação entram em cena para valorizar os sabores. Não se fala em uniforme, a equipe usa figurino. Nem parece, mas todos os movimentos dos cozinheiros e garçons são ensaiados.
Chão, paredes, bancada e coifa. Todas essas superfícies funcionam como tela durante as projeções, que ajudam a contar a história do menu. Somos levados a um campo onde uma mulher colhe flores.
“Quando o Claude preparou esse prato na minha frente, perguntei de onde vinha a flor e ele me levou até a Fátima, sua fornecedora há 30 anos, pioneira no cultivo de orgânicos no Rio e no Brasil”, conta Batman, revelando que o próprio chef filmou a cena com um celular.
Depois vamos entender que as flores estão no prato “sem nome”, que nos envolve várias cores, formatos, sabores e texturas. Diz muito sobre a cozinha de Claude e o que ele quer mostrar no Mesa do Lado. O menu joga luz sobre o produto e o pequeno produtor brasileiro e entrega emoção.
“Faço o que gosto de fazer em qualquer receita que preparo: valorizar as texturas, o sabor (a acidez está sempre presente), uma bela apresentação. Tem um pouquinho de modernidade, mas sem exagero”, explica.
Reflexões viram poesia
Em alguns momentos, escritos com a letra de Claude surgem nas paredes. Reflexões sobre a gastronomia viram poesia. “A culinária é uma arte que envolve todos os sentidos”, por exemplo, frase que resume bem o que é a experiência. Nesse caso, não houve ensaio. O chef diz que essas palavras vêm “do coração, da mente, da sabedoria, do tempo de estrada e das leituras.”
Batman conseguiu registrar as frases porque sempre andava com uma caneta preta e pedia para o chef escrever num papel exatamente o que tinha acabado de falar.
“Fiquei num dilema, tinha erro de português, faltava acento. Mas depois pensei que o Claude continua falando 'marravilha', não tinha largado essa herança francesa, então fomos absorvendo a linguagem que é própria dele”, destaca o diretor de arte, que guarda uma pilha com quase 80 escritos (deve ter usado em torno de 20%).
Corta para o ambiente escuro. Os olhos se voltam para o fogão. Um dos cozinheiros segura uma frigideira, de onde saem chamas altas e o chiado de carne sendo grelhada. A cena mostra que aquela cozinha não tem nada de cenográfica. Funciona o tempo todo na finalização e montagem dos pratos.
Acompanhando a “coreografia” na cozinha, vemos a carne se juntar ao purê de mandioca, batata-doce agridoce, quiabo defumado e blueberries. Logo que o prato chega à mesa, ele é inundado por um bordelaise, clássico da cozinha francesa, bem denso, que une todos os elementos. Nas projeções que se revelam a seguir, vemos que o molho, potente de sabor, leva vinho tinto e caldo de mocotó.
Em uma de suas aparições na tela, Claude anuncia um momento muito especial para ele. No primeiro menu do Mesa do Lado, ele escolheu servir um prato que parece simples, tem apenas molho e peixe, mas que surpreende pela sutileza e harmonia de sabores. Uma receita que marcou sua infância, sua carreira e a criação da “nova cozinha francesa”.
Logo descobrimos ser o escalope de salmão com azedinha, tradição da família Troisgros, que por causa dele ganhou a terceira estrela Michelin.
“Meu pai morou quatro anos no Japão e voltou para a França com a ideia de servir um peixe malpassado, no caso o salmão, que naquela época desovava no rio Loire, que passa na minha cidade, Roanne. Aí vem um molho cremoso, clássico francês, à base de vinho branco, e a azedinha, uma erva daninha que crescia no quintal da casa da minha avó”, descreve. Esse prato, criado em 1964 e reproduzido no mundo inteiro, continua a ser “moderníssimo”, diz Claude.
Quando fala que a experiência envolve, além dos cinco sentidos, memória e afeto, Batman tem toda razão. A história é de Claude, mas também de todos nós. Ver as fotos em preto e branco da família Troisgros faz o diretor de arte se lembrar do nhoque do avô, do cheiro da comida da avó, das memórias construídas em família.
Não tem como não se emocionar. “Está cada vez mais difícil, nos dias atuais, sentirmos emoção e o sabor mexe com a gente nesse ponto.” Basta deixar a “zona de controle”.
Troca intensa
Pandemia, restaurantes fechados e muitos pedidos de lives. Claude Troisgros alugou a loja nos fundos do Chez Claude para montar uma cozinha/estúdio. Com a reabertura do comércio, o espaço ficou subutilizado e foi sendo ocupado por novas ideias. O encontro do chef com Batman Zavareze veio para mostrar que a arte da gastronomia e a arte da imagem podem criar juntas uma experiência única.
“O Claude é um chef genial na arte da gastronomia e tem sensibilidade para enxergar beleza no que tem de melhor no Brasil, o que é para poucos. Ele sai de um mundo estereotipado e mergulha na essência brasileira, no que às vezes nem o brasileiro consegue enxergar, e eu me incluo nesse lugar”, analisa o diretor de arte, justificando por que disse “sim” para um projeto totalmente inusitado.
Por outro lado, Claude expressa a alegria de estar ao lado do “gênio da projeção”, de se entregar a uma troca amorosa e generosa de saberes, vivências e histórias.
“Foi um processo muito lento, poético, lindo, saboroso, onde tudo evoluiu e tudo mudou. Surgiam ideias sem parar, e isso é maravilhoso”, descreve o chef, revelando que muitas conversas foram regadas a uma boa dose de cachaça.
A dupla levou um ano para criar o roteiro do Mesa do Lado. Não é muito para quem acredita em um processo contínuo de evolução. “Nós nos permitimos construir, amadurecer, decantar, enxergar os erros, o que pode ser lapidado”, aponta Batman. O tempo todo eles perseguem a perfeição, seja na pitada a mais de sal ou no segundo exato em que determinada música deve entrar.
Segundo o diretor de arte, o Mesa do Lado chega para derrubar certezas, quebrar protocolos e desafiar a mente a não cair numa fórmula pronta. Já o chef destaca que a jornada com os artistas o fez repensar seu jeito de cozinhar.
“Sempre acreditei que colocar emoção nas receitas transforma o sabor, agora tenho certeza”, defende Claude, que enxerga, de fato, a gastronomia como arte.
Agora vamos aos créditos finais. Césio Lima, com quem Claude trabalhou no programa Mestre do Sabor, assina a iluminação. Já a trilha sonora é de Max Viana e Línox. O figurino foi criado pela marca carioca Martu. Minas Gerais também faz parte dessa mistura de talentos. O Ateliê de Cerâmica, de Contagem, desenvolveu uma linha exclusiva de peças.
Salmão com azedinha
Ingredientes
4 escalopes de salmão (cerca de 150g cada); 1 colher de sopa de azeite; 250ml de vinho Sauvignon Blanc; 125ml de vermute ou martíni dry; 80ml de caldo de peixe; 1 cebola roxa picada; 375ml de creme de leite fresco; folhas de azedinha a gosto; sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto
Modo de fazer
Em uma panela, misture e reduza totalmente o vinho, o vermute, o caldo de peixe e a cebola. Adicione o creme de leite e deixe ferver até engrossar, por 5 minutos. Passe pela peneira para obter um molho bem fino. Tempere com sal e pimenta-do-reino e acrescente a azedinha rasgada. Reserve. Fatie o salmão em escalopes de 12cmx8cm com 1cm de altura. Coloque essas fatias entre duas folhas de papel-manteiga e bata ligeiramente para ficarem do mesmo tamanho. Tempere o salmão com sal e pimenta-do-reino e pincele com o azeite. Grelhe rapidamente numa frigideira antiaderente bem quente, deixando o escalope malpassado. Despeje o molho em um prato, cobrindo toda a superfície. Coloque por cima os escalopes de salmão e sirva imediatamente.
Serviço
Rua Conde de Bernadote, 26, Leblon – Rio de Janeiro
de quarta à sábado, às 20h
Informações no site
*a repórter viajou pela Azul Linhas Aéreas