Serro – Dona Lucinha tinha o maior orgulho da sua cidade. Para onde quer que fosse, carregava a bandeira do Serro na mala e no coração. Conhecia toda a riqueza cultural que lá existia e, por toda a vida, fez de tudo para que o mundo também conhecesse. O legado da dama da cozinha mineira se fortalece com o festival Dona Lucinha, lançado no último fim de semana pelo Projeto Fartura, que leva seu nome, passa a ser realizado anualmente na sua terra natal e dá visibilidade aos sabores e saberes daquele lugar.
“Mamãe era uma mulher ousada, mas nem nos sonhos mais ousados ela imaginou receber uma homenagem deste porte”, aponta uma das filhas, a historiadora Márcia Nunes.
Dona Lucinha ganhou prêmios e medalhas importantes, foi homenageada pela Salgueiro na Sapucaí, com um samba-enredo sobre a cozinha mineira, mas, para Márcia, ver sua mãe ser reverenciada em um festival na sua cidade é muito mais simbólico e comovente, uma “flecha na alma”.
Em sua primeira edição, o Festival Dona Lucinha ocupou toda a Praça João Pinheiro, aos pés da enorme escadaria, cartão-postal da cidade, que dá acesso à Igreja de Santa Rita. Segundo a organização, passaram por lá 4,5 mil pessoas entre sábado e domingo.
O público teve a oportunidade de comer pratos típicos, como o feijão ferrado, conhecer produtores de queijos, o “ouro branco” da região, e ouvir histórias divertidas e emocionantes sobre a cozinheira, que faleceu em 2019.
Madrinha do evento, Mara Salles ficou honrada com o convite para homenagear Dona Lucinha, “uma mulher inteligente, empreendedora e à frente do tempo”.
A chef de São Paulo chegou a conhecê-la e encabeçou ao lado de uma das filhas, Elzinha Nunes, o Clube da Cozinha Brasileira, movimento que surgiu 20 anos atrás com a intenção de desenvolver a cozinha regional brasileira.
Se paramos para analisar, as trajetórias delas coincidem em vários momentos. Mara nasceu em Penápolis, interior de São Paulo, e tem o maior orgulho de ser caipira, da roça. Foi em “um ambiente interiorano e profundo” que descobriu a gastronomia.
Aberto em 1986, o seu restaurante, Tordesilhas, tornou-se referência em cozinha brasileira e está na lista dos 100 melhores da América Latina. São constantes as pesquisas pelo país. “O nosso território tem profundidade e riqueza que bastam.”
A chef nunca teve vergonha de servir comida de raiz. O menu degustação Aconchego reúne receitas do cotidiano, “criativas, mas com gosto e aconchego da comida de casa.”
Na aula em que falou, durante o festival, como a tradição é inspiradora, Mara mostrou como faz no restaurante um arroz com feijão diferente. Inspirada na minestrone da avó, criou uma sopa de arroz com caldo de feijão, acompanhada de biju de mandioca, gema de ovo curada e linguiça defumada.
Dona Lucinha fazia o mesmo. Na época em que o marido virou prefeito, e ela assumiu o posto de primeira-dama, rompeu totalmente com a tradição.
“A minha avó preparava banquetes com toda a pompa, mandava buscar vinho em BH, mas mamãe, não. Servia o que a gente tinha de mais delicioso, cachaça, limonada, canjiquinha, frango com quiabo”, conta Márcia. Nem dava ouvidos para quem, da família, achava isso um absurdo. No fim, os convidados se encantavam. Juscelino Kubitschek, o JK, foi um deles.
Nesta visita ao Serro, Mara Salles reforçou sua visão sobre o refinamento da cozinha mineira. “Acho a cozinha mineira primorosa, cheia de acabamentos, com uma sutileza nos gestos e sempre me encantei por isso.”
Segundo ela, o gesto de jogar a gordura quente no prato, durante o preparo do feijão ferrado, foi inspirador. Essa imagem impactante é o que leva de mais valioso da viagem.
Quem ensinou a ela a receita foi Maria Garcia, professora aposentada, filha de tropeiro, que já fez quitandas para vender e vive na cozinha. O feijão ferrado era o café da manhã da tropa, reforçado o suficiente para aguentar as longas viagens no lombo dos burros.
Forra-se o prato com farinha para receber o feijão (não muito cozido e com pouco caldo) e tempero de alho picadinho com sal. No momento em que se joga gordura (ela usa banha de porco, mas pode ser azeite) quente por cima, a mágica acontece. “O feijão chia parecendo que está refogando na panela”, descreve Maria. Para finalizar, ovo frito e torresmo.
Respeito e gratidão
Dona Lucinha estava muito bem representada pela família. Na barraca do seu restaurante, com unidades em BH e São Paulo, as filhas Márcia, Elzinha e Heloísa serviram dois petiscos clássicos: pastéis de angu recheados com queijo (do Serro, claro), banana-da-terra flambada na cachaça e carne de sol e linguiça com molho de rapadura.
Ali, elas receberam cumprimentos e ouviram casos de pessoas que conviveram com a mãe. Falou-se muito em respeito e gratidão.
Em um momento de emoção, cercada por parentes, moradores da cidade e turistas, Elzinha ensinou a receita da sua mãe de canjiquinha com costelinha. Justificou sua escolha, dizendo que foi o prato que Dona Lucinha mais serviu pelo mundo.
O preparo começa por um “banho” de cachaça e limão na carne. “Desde pequena, ouvia mamãe dizer que tinha que tirar a mágoa da carne.” Em seguida, Elzinha seguiu o ensinamento que pediu para o público repetir em voz alta: “comida de mineiro dorme no tempero”.
A erva quitoco era sempre usada pela cozinheira e, segundo a filha, é o que diferencia a comida mineira do Serro. Por fim, acrescenta-se uma canjiquinha mais grossa e deixa que ferva junto com a costelinha para pegar gosto.
Depois de 33 anos em São Paulo, Elzinha voltou a morar no Serro. “Quando fiquei isolada, em função de uma COVID-19 extrema, pensei: o que quero fazer para ser feliz? Quero fortalecer o legado de mamãe e aqui é o meu lugar.” Isso significa preservar e divulgar as tradições, para que não fiquem esquecidas no passado.
Seu objetivo é dar aulas e organizar eventos (lá, anunciou o desejo de ensinar guisadinho em mini fogões de lenha para as crianças, como Dona Lucinha fazia com os filhos e netos).
Outro plano de Elzinha é hospedar convidados em um casarão de três séculos comprado há 40 anos pelo pai, que está em reforma. Por todos os lados, há objetos que contam a história da cidade, da família e de Dona Lucinha (destaque para os móveis de madeira feitos pelo bisavô de JK, o tcheco Jan Nepomuk Kubí%u010Dek).
A chef avisa que vai servir um belo café da manhã rural, com cuscuz de rapadura, fubá suado, leite queimado, coalhada da roça, entre outras receitas. Nada de padaria ou supermercado.
O restaurante Dona Lucinha, em São Paulo, segue de portas abertas, sob o comando de um filho e um neto da matriarca, além de um gerente com muito tempo de casa.
Rumo ao interior
“É no interior que bate o coração de Minas Gerais.” Guiando-se por esta frase, o Projeto Fartura avança por mais cidades do estado com rica cultura gastronômica e atrativos turísticos. O Festival Dona Lucinha passa a fazer parte do calendário de eventos do Serro, seguido por mais uma edição, com o mesmo nome, em Conceição do Mato Dentro, que se encerra neste domingo.
Como explica o diretor do projeto, Rodrigo Ferraz, a decisão de se estabelecer em mais duas cidades mineiras aponta para o caminho de valorização das raízes da nossa cozinha. “Quando homenageamos Dona Lucinha, também homenageamos mães, avós e cozinheiras que, desde sempre, prepararam pratos que são nossa referência gastronômica”, pontua.
Nomes como Ana Maria e Adriana Fernandes, mãe e filha, que tocam o Santa Matula, em Ouro Preto, bistrô que funciona dentro de casa. Atração no Cozinha ao Vivo, a dupla ensinou a preparar costelinha defumada com molho de rapadura e gengibre, acompanhada de purê de batata com queijo do Serro.
Já Dona Mariinha, do Delícias de Córrego da Prata, no Serro, serviu na praça o seu feijão ferrado.
Por estar em uma das regiões queijeiras mais antigas, com pelo menos 300 anos de história, desde a fundação de Minas Gerais, o Serro se orgulha da sua tradição com os queijos. E eles fizeram parte de receitas de chefs e restaurantes de várias partes do Brasil que participaram do festival.
Na praça, Rafael Pires, do Mia, em Tiradentes serviu um sanduíche de pão de queijo com queijo do Serro, copa lombo empanado e salada de quiabo com cebola roxa. O escondidinho de inhame e batata-doce de Flávio Trombino, do Xapuri, em BH, foi gratinado com bastante queijo produzido na cidade.
No Espaço Conhecimento, instalado no Salão do Queijo, onde ocorreram aulas gratuitas, João Lima, de Fortaleza (CE), mostrou como os queijos podem combinar com doces nordestinos.
Entre eles, rapadura de caju, doce de espécie (à base de gergelim, farinha de mandioca e rapadura), bulim (biscoito feito com clara de ovo, goma e especiarias) e bolo mole (com consistência de pudim).
Canjiquinha com costelinha (Dona Lucinha)
Ingredientes
200g de canjiquinha; 1kg de costelinha; 1 colher das de mesa de óleo; 1 colher das de mesa de sal com alho; 1 colher das de mesa de urucum; 2 folhas de louro; 1 cebola ralada; 1 cálice de cachaça; ½ cálice de suco de limão; água, o necessário; cheiro-verde e pimenta a gosto
Modo de fazer
Lave as costelinhas e coloque-as em uma panela. Cubra com água e junte a cachaça e o limão. Leve ao fogo para uma breve fervura. Escorra e reserve. Use uma tigela funda para lavar a canjiquinha em várias águas, até apurar bem. Escorra e reserve. Leve ao fogo em uma panela, preferencialmente de ferro. Aqueça o óleo e junte as costelinhas para fritar levemente. Retire o excesso de gordura que se formar. Acrescente o sal com alho, a cebola e, por último, o urucum. Deixe pegar cor, pingue água, tampe e deixe cozinhar até amaciar. Junte a canjiquinha e misture bem. Deixe que fervam juntas para pegar gosto. Acerte o tempero e acrescente pimenta e cheiro verde a gosto.