Gastronomia vai muito além do ato de comer. A escolha do que se leva para o prato tem o poder de preservar a nossa biodiversidade. Lançado pelo Instituto Atá, do chef Alex Atala, o livro “67 receitas com mel de abelhas nativas”, que conta com a participação de 48 cozinheiros e bartenders de todas as regiões do Brasil, não só incentiva o uso desses produtos, como ajuda a fortalecer a criação das abelhas.
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O chef de São Paulo tem uma relação antiga com méis e abelhas. De criança, ele se lembra da famosa jataí, “mansa e simpática”. Mais tarde, muito curioso e viajando bastante pelo Brasil, começou a conhecer melhor as espécies e variedades de produtos.
Desde que fundou o Instituto Atá, em 2013, que tem como missão valorizar ingredientes, produtores e territórios, Atala levanta a bandeira das abelhas e méis brasileiros. “Não dá para imaginar o mundo sem plantas e animais e o maior elo entre esses dois mundos são os insetos”, completa.
As abelhas nativas sem ferrão são sociais (vivem em colméias) e produzem mel. Pertencentes a um grupo cientificamente chamado meliponini, habitam regiões tropicais e subtropicais do planeta.
No Brasil, existem 250 espécies. O livro apresenta 18 delas, originárias de todas as regiões do país.
No Brasil, existem 250 espécies. O livro apresenta 18 delas, originárias de todas as regiões do país.
“A atividade de criação dessas abelhas resulta da junção do conhecimento indígena com a predileção europeia por domesticar animais”, explica o ecólogo Jerônimo Villas-Bôas, fundador da Reenvolver, sócio do Instituto Atá, onde coordena o Projeto Verde Mel, e organizador do livro.
As abelhas sempre fizeram parte da vida de Villas-Bôas. Filho de antropólogos, ele nasceu em São Paulo, mas passou a primeira infância em terras indígenas. “Tomava mamadeira de água com mel”, conta. O ecólogo trabalha com abelhas há 20 anos, tanto em laboratório quanto em campo.
Integrante do Atá desde o início, ele sempre lutou pela regulamentação do comércio dos méis de abelhas nativas sem ferrão.
Em conquista recente, esses produtos foram reconhecidos pela legislação brasileira. Agora os estados são responsáveis pelos regulamentos técnicos. Minas ainda não tem.
Em conquista recente, esses produtos foram reconhecidos pela legislação brasileira. Agora os estados são responsáveis pelos regulamentos técnicos. Minas ainda não tem.
Além de mostrar as abelhas, com ilustrações em tamanho real, a obra destaca a variedade de méis que elas produzem. Segundo Villas-Bôas, é importante diferenciar o que se consome.
“Assim como no mundo dos vinhos, em que sabemos qual é a uva, território e método de produção, devemos tratar o mel da mesma forma. Mel não é a mesma coisa, existem centenas de variedades. Por isso, falamos méis.”
“Assim como no mundo dos vinhos, em que sabemos qual é a uva, território e método de produção, devemos tratar o mel da mesma forma. Mel não é a mesma coisa, existem centenas de variedades. Por isso, falamos méis.”
De todas as regiões
A diversidade brasileira também está representada pelo time de cozinheiros e bartenders, que contempla todas as regiões e biomas do país. Três são mineiros: Mariana Gontijo, Felipe Rameh e Henrique Gilberto. Cada um teve que desenvolver uma ou mais receitas com méis originários de seus respectivos territórios.O livro se divide em nove categorias de receitas, entre elas tira-gosto, salada, prato feito, sobremesa e goró (com drinques alcoólicos). Todas foram pensadas para o leitor possa reproduzir, sem dificuldade, em casa.
Os organizadores quem democratizar o acesso ao conhecimento e aos méis, tanto que, nas últimas páginas, estão listadas fornecedores de todas as regiões.
“Temos uma enorme capacidade de transformar territórios através da cozinha, mas não dá para envolver só restaurantes e chefs. Esses já são engajados com a gastronomia do Brasil e entendem o mel de abelhas nativas como ingrediente. Pessoas comuns precisam conhecer e comer em casa”, diz o ecólogo.
As três receitas de Atala têm outros pontos em comum além do mel: são de simples preparo, executáveis em qualquer canto do Brasil e para qualquer bolso. Entre elas, fatias de bacon com mel de uruçu-amarela, “uma provocação para lembrarmos que menos, muitas vezes, é mais”, ele escreve no livro. “Requer apenas dois ingredientes e um micro-ondas.”
Para Felipe Rameh, um dos mineiros convidados, esta é uma oportunidade de enxergar os méis sem o olhar da pasteurização. Pelo contrário, enxergar diversidade.
“Abre-se um universo de aromas, açúcares, acidezes, camadas de sabor, texturas e cores inimagináveis. Gosto dessa possibilidade de trabalhar com méis muito distintos em todos os aspectos e empregá-los em diferentes receitas”.
No livro, o chef ensina a fazer linguiça de pato com lentilha, mostarda e vegetais. O mel de mandaçaia é usado para glacear a linguiça.
“Não é regra, mas geralmente não aquecemos o mel para que não evaporem algumas preciosidades e sejam preservadas notas originais”, destaca. Por isso, ele entra como último elemento, na finalização, levando acidez, dulçor e brilho ao prato.
“Não é regra, mas geralmente não aquecemos o mel para que não evaporem algumas preciosidades e sejam preservadas notas originais”, destaca. Por isso, ele entra como último elemento, na finalização, levando acidez, dulçor e brilho ao prato.
Joia do cerrado
Mariana Gontijo sempre gostou de mel. “Para mim, é um dos melhores doces que existem.” Na sua infância, em Moema, interior de Minas Gerais, o consumo era obrigatório para prevenir gripes e resfriados. A chef só foi conhecer a diversidade que envolve o produto quando já trabalhava com gastronomia e se encantou ao encontrar notas florais em uns, acidez em outros, e até sabor fermentado.
Pela facilidade de acesso, ela se acostumou a usar o mel de jataí no seu restaurante, Roça Grande (na conversa, lembrou-se de que, na casa dos pais, sempre teve uma caixinha dessas abelhas com um função decorativa).
Normalmente, o dulçor aparece na ganache de chocolate que cobre o bolo de cenoura, em molhos de saladas e também é usado para dourar assados, como ensina no livro.
Normalmente, o dulçor aparece na ganache de chocolate que cobre o bolo de cenoura, em molhos de saladas e também é usado para dourar assados, como ensina no livro.
Para a receita do pato assado com legumes e figos, entrou em cena o mel de uruçu-amarela, encontrado no cerrado, onde está sua origem e sua razão de cozinhar. “Fiquei muito impressionada com a delicadeza e a profundidade de sabores desse mel. É uma joia.”
Decidida a criar um prato de celebração, para compartilhar, Mariana escolheu o pato, que, na sua cultura, faz parte desses momentos festivos.
A chef pincela a ave com uma mistura de mel, manteiga derretida e baunilha-do-cerrado (outro elemento da nossa biodiversidade) para ter doçura e brilho. Segundo ela, dá para fazer o mesmo com outras carnes com sabor mais neutro, como frango e codorna.
A chef pincela a ave com uma mistura de mel, manteiga derretida e baunilha-do-cerrado (outro elemento da nossa biodiversidade) para ter doçura e brilho. Segundo ela, dá para fazer o mesmo com outras carnes com sabor mais neutro, como frango e codorna.
A mesma mistura, chamada de xarope de mel, é usada para regar os figos partidos ao meio, que vão para o forno, e os rabanetes, finalizados na frigideira até caramelizar.
Assim como faz pelo cerrado, a chef quer que as pessoas entendam a importância dos ingredientes para a manutenção da biodiversidade brasileira. “Esse projeto reforça o propósito que tenho na cozinha. O meu trabalho é conhecer e usar produtos que ainda conheço da minha própria cultura”, comenta Mariana, que já pensa em explorar outros méis de abelhas nativas sem ferrão.
O desafio, na visão dela, é fazer com que esses produtos cheguem regularmente à BH. Mas, para quem está acostumada a garimpar ingredientes do cerrado, como licuri e babaçu, nada é impossível.
O ecólogo Jerônimo Villas-Bôas concorda que a logística é um desafio. Seu trabalho consiste, justamente, em resolver os gargalos, encurtar as distâncias e fazer com que os méis (e outros produtos brasileiros) cheguem a cada vez mais pessoas.
“A nossa missão é fortalecer cadeias produtivas e agregar valor aos produtos da nossa biodiversidade”, resume, falando pela sua empresa, Reenvolver.
“A nossa missão é fortalecer cadeias produtivas e agregar valor aos produtos da nossa biodiversidade”, resume, falando pela sua empresa, Reenvolver.
Pato assado com legumes e figos (Mariana Gontijo)
Ingredientes
1 pato inteiro (aproximadamente 2 kg); ½ laranja; suco de 5 laranjas; raspas de 2 laranjas; 2 xícaras de vinho branco; ¼ de xícara de azeite de oliva extravirgem; 2 colheres de sopa de sal; pimenta-do-reino branca a gosto; 5 folhas de sálvia; 5 galhos de tomilho; 5 folhas de louro; 5 dentes de alho picados; 2 colheres de sopa de gengibre ralado ou picado; 10 cravos-da-índia; 1 colher de sopa de mostarda; 2 cebolas; tomilho a gosto; 500 g de batata-bolinha; 3 colheres de sopa de manteiga derretida; 3 colheres de sopa de mel de uruçu-amarela; 1 colher de sopa de essência de baunilha-do-cerrado; 30ml de mel de uruçu-amarela; 1 colher de sopa de essência de baunilha-do-cerrado; 8 figos maduros; flor de sal a gosto; 2 colheres de sopa de azeite de oliva extravirgem; 10 rabanetes cortados ao meio, no sentido do comprimento; ramos de alecrim a gosto; cebolinha-francesa picada
Modo de fazer
Limpe o pato, retire o pescoço e faça a amarração das coxas e das asas, para que ele se mantenha uniforme. Insira a metade de laranja no interior do pato. Em uma tigela, misture os ingredientes da marinada. Em um saco plástico grande, coloque o pato e a marinada. Deixe por, pelo menos, 12 horas na geladeira. Vire-o no meio do processo para o sabor penetrar na carne de maneira uniforme. No dia seguinte, preaqueça o forno a 160 °C. Faça a mistura de manteiga que irá pincelar o pato durante o processo. Aqueça uma panela pequena ou frigideira, apenas para derreter a manteiga e adicione o mel e a baunilha. Misture bem e reserve. Coloque o pato, ainda amarrado, com o peito virado para baixo, em uma assadeira. Adicione as cebolas, alguns ramos frescos de tomilho e o líquido da marinada. Pincele o pato com a mistura de manteiga. Cubra a assadeira com papel-alumínio e asse por cerca de 1 hora e 30 minutos. Retire a assadeira do forno, vire o pato, pincele novamente com a mistura de manteiga. Usando uma faca, faça pequenos furos nas batatas e coloque no fundo da assadeira. Cubra, novamente, com o papel-alumínio e leve ao forno, até que a carne esteja macia por, aproximadamente, 1 hora. Passado este tempo, retire o papel-alumínio, pincele com a mistura de manteiga e aumente a temperatura para 180 °C. Pincele o pato a cada 10 minutos, até ficar bem dourado. Transfira o pato e as batatas para o recipiente que for servir e pincele a mistura de manteiga pela última vez. Para preparar os acompanhamentos, comece fazendo o que vamos chamar de xarope de mel. Leve ao fogo baixo uma panela pequena, coloque o mel e a essência de baunilha e deixe reduzir até ficar com a consistência de um xarope ralo. Desligue e deixe esfriar. Em uma assadeira, coloque os figos cortados e regue com metade do azeite, %u2154 do xarope de mel e polvilhe flor de sal. Leve ao forno preaquecido a 200 °C por 7 minutos, cuidando para que os figos se mantenham firmes. Pincele a parte interna dos rabanetes com o restante do xarope de mel. Em uma frigideira, em fogo baixo, aqueça o azeite restante, coloque os rabanetes, com o interior voltado para baixo, e deixe caramelizar. Se necessário, apoie outra frigideira por cima, para fazer peso nos rabanetes e grelhar por igual. Para empratar, arrume os figos e os rabanetes sobre as batatas, decore com ramos de alecrim e cebola-francesa picada finamente e coloque o pato.