A partir do próximo domingo, todas as atenções se voltam para o Catar. Pela primeira vez na história, um país do Oriente Médio será sede da Copa do Mundo. Podemos não saber muito sobre a nação, mas sua gastronomia não é tão desconhecida assim. A presença marcante de comunidades árabes no Brasil fazem com que os sabores de lá sejam familiares.
Assim como em outros países do Oriente Médio, o Catar tem uma cozinha baseada em ingredientes fáceis de identificar. Só para citar alguns, lá eles comem bastante carne de cordeiro, berinjela, iogurte, frutas secas e, algo bem emblemático, que são as especiarias.
Diante de sabores tão familiares, fica a pergunta: como a região influencia a nossa cozinha? Com a palavra, três chefs de Belo Horizonte.
Diante de sabores tão familiares, fica a pergunta: como a região influencia a nossa cozinha? Com a palavra, três chefs de Belo Horizonte.
Se fosse por Bruna Martins, coalhada estaria em todos os pratos. “É melhor que requeijão e manteiga”, sentencia a chef, que, logo descobrimos, tem uma ligação afetiva com a comida árabe. Seu bisavô era filho de sírio-libaneses e as receitas tradicionais sempre estiveram nos encontros de família.
Quibe cru é um dos pratos que não podem faltar. “Em vários momentos da minha infância, via meu avô colocando trigo com a carne dentro de moedor de carne para os dois passarem junto com os temperos”, relembra.
Quibe cru é um dos pratos que não podem faltar. “Em vários momentos da minha infância, via meu avô colocando trigo com a carne dentro de moedor de carne para os dois passarem junto com os temperos”, relembra.
Quando terminava a receita, ele pedia para que os netos, incluindo Bruna, apertassem a massa com o polegar para fazer vários buraquinhos, que ficavam cheios de azeite.
Para provar que o papo sobre a coalhada não é exagero, vamos listar as receitas do restaurante Florestal onde ela aparece. Feita com leite não pasteurizado, a coalhada forra o prato para receber sabores variados.
Entre eles, vinagrete de polvo, manjubinhas curadas no sal com cebola caramelizada, azeitonas à milanesa com picada de ervas e bolovo de falafel.
Este último prato merece uma explicação mais detalhada por ter uma ligação direta com o Oriente Médio.
Entre eles, vinagrete de polvo, manjubinhas curadas no sal com cebola caramelizada, azeitonas à milanesa com picada de ervas e bolovo de falafel.
Este último prato merece uma explicação mais detalhada por ter uma ligação direta com o Oriente Médio.
Como o restaurante levanta a bandeira do protagonismo vegetal, a chef teve a ideia de trocar a carne moída por grão-de-bico para montar o petisco, que tem no recheio um ovo cozido com gema mole. A inspiração, como o nome entrega, vem do falafel, bolinho frito das bandas de lá.
Bruna tem todo esse apego pela coalhada por entender que ela entrega frescor e acidez. A que acompanha o espetinho de couve-flor lambuzado em molho agridoce fica amarelinha ao ser temperada com cúrcuma. Folhas de hortelã e sementes de romã completam o prato.
A verdade é que o cardápio do Florestal carrega muitas referências da região onde está o Catar. Nada intencional, diz Bruna. Com o desejo de servir comida de rua do mundo, ela acabou esbarrando em vários ingredientes e receitas daqueles países.
A verdade é que o cardápio do Florestal carrega muitas referências da região onde está o Catar. Nada intencional, diz Bruna. Com o desejo de servir comida de rua do mundo, ela acabou esbarrando em vários ingredientes e receitas daqueles países.
“A comida do Oriente Médio é muito viajada e muito internacional. Todo mundo conhece e todo mundo come.”
Sem rodeios, o prato para compartilhar de nome Primavera árabe faz uma homenagem à comida que a chef aprendeu a amar desde criança. Tem pão sírio, quibe (de berinjela), homus (de cenoura), coalhada e batata frita (temperada à moda árabe, com sal de zaatar, hortelã, salsinha, coentro e azeite).
A sugestão é colocar tudo dentro do pão e comer como um sanduíche.
A sugestão é colocar tudo dentro do pão e comer como um sanduíche.
“Alguns lugares perpetuam tradições, enquanto outros elevam a comida tradicional com um olhar autoral”, aponta Bruna, que, claramente, está no segundo time. Seu esforço para modernizar clássicos tem um objetivo definido: a comida deve surpreender, seja pelo estranhamento ou pela admiração.
Na sua família, era tradição comer toda sexta-feira charuto de folha de uva (ou repolho) com arroz e carne.
O que ela faz com essa lembrança? Usa como inspiração para criar uma trouxinha de folha de acelga com arroz gohan e kimchi, unindo, numa bocada, o Oriente Médio com o Japão e a Coreia.
O que ela faz com essa lembrança? Usa como inspiração para criar uma trouxinha de folha de acelga com arroz gohan e kimchi, unindo, numa bocada, o Oriente Médio com o Japão e a Coreia.
Pesquisando sobre esfirras abertas, a chef chegou ao pide, nome do pão recheado em formato de olho que tem origem turca. No recheio, mix de tomates, zaatar, hortelã, manjericão e queijo de cabra, ingredientes que criam uma conexão com a Itália.
Minas também cruza diretamente com o Oriente Médio no cardápio do Florestal. O jiló, clássico mineiro, é preparado como babaganoush (originalmente de berinjela). Com a pele “queimada” direto na chama do fogão, vai para o prato com tahine (pasta de gergelim), creme de castanha fermentada, limão e hortelã.
Como não poderia deixar de ser, tudo tem bastante azeite.
Como não poderia deixar de ser, tudo tem bastante azeite.
Explosão de sabores
Renato Quintino se apaixonou pela cozinha do Oriente Médio em uma visita a Israel. Ficou marcada a experiência de comer um sanduíche de pão pita com falafel, homus, pepino e tomate em Jerusalém. “Foi impressionante. Quando mordi, veio uma explosão de sabores”, descreve.
Muito pela influência da família da esposa, que é judia, o chef sempre teve interesse em conhecer mais sobre as receitas.
Em BH, especialmente através do contato com a comunidade árabe, ele foi se aproximando cada vez mais da cultura da região. Quando viaja, faz questão de visitar restaurantes que servem a comida de lá. Em Berlim, conta, os faláfeis são “incríveis”.
Em BH, especialmente através do contato com a comunidade árabe, ele foi se aproximando cada vez mais da cultura da região. Quando viaja, faz questão de visitar restaurantes que servem a comida de lá. Em Berlim, conta, os faláfeis são “incríveis”.
Como é de se esperar, os sabores do Oriente Médio influenciam bastante sua cozinha. Renato dá aulas de gastronomia com menus temáticos e, vira e mexe, identificamos influências da região nas receitas.
Por exemplo, o brownie já ganhou cobertura de tahine, provando que a combinação de chocolate e gergelim não tem erro. O uso de cordeiro, frutas secas e azeite também dá um aceno para o Catar e seus vizinhos.
Por exemplo, o brownie já ganhou cobertura de tahine, provando que a combinação de chocolate e gergelim não tem erro. O uso de cordeiro, frutas secas e azeite também dá um aceno para o Catar e seus vizinhos.
Recentemente, Renato serviu um prato bem representativo da cozinha do Oriente Médio, com falafel, berinjela defumada, pasta de tahine e sementes de romã. No fim, deu um toque de brasilidade com alho e a pimenta dedo-de-moça fritos.
Segundo o chef, esses países são um exemplo de que a comida pode ter ingredientes simples, mas ser rica em sabores.
Pela análise dele, existe muita similaridade com a cozinha mediterrânea, até pela proximidade geográfica, o que resulta em pratos leves e saudáveis. Mas, é claro, existe uma identidade própria forte, marcada pelo uso das especiarias.
Pela análise dele, existe muita similaridade com a cozinha mediterrânea, até pela proximidade geográfica, o que resulta em pratos leves e saudáveis. Mas, é claro, existe uma identidade própria forte, marcada pelo uso das especiarias.
“Uma vez fui jantar na casa de uma senhora judia e ela preparou tomates recheados com carne moída. Poderia ser um prato italiano, mas, como tinha especiarias, isso já deu o acento do Oriente Médio.”
E a confeitaria?
Vamos fazer um teste. Você tem o costume de comer baklava? Se não tiver proximidade com o Oriente Médio, é provável que não, já que as sobremesas da região não se popularizaram tanto no Brasil quanto os pratos salgados (e olha que essa massa recheada com castanhas é uma das mais icônicas).
Mas isso não significa que a nossa confeitaria não tenha sido influenciada pela cultura de lá.
Mas isso não significa que a nossa confeitaria não tenha sido influenciada pela cultura de lá.
“Tudo o que pensarmos de uso de especiarias, castanhas, como nozes e pistache, mel e frutas secas, incluindo figo turco, tâmara, ameixa e damasco, tem influência do Oriente Médio", observa a chef Mariana Corrêa, que se formou em confeitaria na França.
Apesar de a sua família não ter ligação direta com a região, eles sempre gostaram de comida árabe.
Apesar de a sua família não ter ligação direta com a região, eles sempre gostaram de comida árabe.
Como destaca Mariana, esses sabores para nós, brasileiros, estão muito associados ao Natal. Foi em um fim de ano que ela criou o entremet de mousse de iogurte, coulis de figo e financier de nozes com base de crumble de nozes e glaçagem de mel.
A torta de creme de mel com praliné de nozes, figos, uvas frescas e azeite é outro exemplo de receita natalina que carrega muitas referências do Oriente Médio.
A torta de creme de mel com praliné de nozes, figos, uvas frescas e azeite é outro exemplo de receita natalina que carrega muitas referências do Oriente Médio.
Essa não é a única contribuição da região para a confeitaria, não. A massa folhada tem início no Oriente Médio com a massa filo, fina como uma folha de papel. “Elas não são feitas da mesma forma, mas a ideia é muito parecida: ter uma massa em camadas muito finas, que, depois de assadas, ficam bem crocantes”, descreve.
A massa filo é usada até hoje em muitos lugares. Serve como base tanto para a baklava quanto para o strudel, de origem austríaca.
A chef também cita a torta croustade, iguaria da região Sudoeste da França, a que mais teve contato com os mouros, que ocuparam a Península Ibérica durante a Idade Média. Nela, a massa filo é recheada com maçã, conhaque e açúcar.
A chef também cita a torta croustade, iguaria da região Sudoeste da França, a que mais teve contato com os mouros, que ocuparam a Península Ibérica durante a Idade Média. Nela, a massa filo é recheada com maçã, conhaque e açúcar.
O croissant também entra nessa história. Não só por ser um pão de massa folhada, mas seu formato remete ao período de dominação do Império Otomano. Dizem que a receita surgiu depois de uma tentativa de invasão dos turcos à Áustria.
“Eles tentaram entrar em Viena durante a madrugada, mas, como os padeiros acordam cedo, perceberam a movimentação e conseguiram impedir a invasão”, conta.Para comemorar a vitória, os padeiros criaram o pão de massa folhada em forma de lua crescente, símbolo presente na bandeira da Turquia, que ganhou fama na França.
Falafel, berinjela defumada, tahine e romã (Renato Quintino)
Ingredientes
170ml de suco de limão; 400g de tahine; 2 colheres de chá de sal; 1 colher de chá de cominho em pó; 1 colher de sopa de alho picado; 1/2 colher de chá de pimenta-do-reino; 180ml de água gelada; 2 romãs; 250g de grão-de-bico; 1/2 cebola média picada; 1 dente de alho amassado; 3 colheres de sopa de salsinha picada; 6 colheres de sopa de coentro picado; 1/4 colher de sopa de pimenta cayenna; 1/2 colher de sopa de cominho em pó; 1/2 colher de sopa de coentro em pó; 1/4 colher de sopa de cardamomo em pó; 1/2 colher de sopa de fermento em pó; 3 colheres de sopa de água; 1 e 1/2 colher de sopa de farinha de trigo; 500ml a 750ml de óleo para fritar; 2 berinjelas médias; 10 dentes de alho descascados e cortados em rodelas finas; 2 colheres de sopa de pimenta dedo-de-moça picadas sem semente
Modo de fazer
Coloque o grão-de-bico em uma vasilha, cubra com o dobro de seu volume de água gelada e reserve de um dia para o outro. No dia seguinte, seque bem os grãos e misture-os com cebola, alho, salsinha e coentro. Processe em pulsos até começar a formar uma pasta, mas mantendo a textura. Acrescente as especiarias, fermento, 3/4 colher de chá de sal, farinha de trigo e água. Misture bem com as mãos até obter uma massa uniforme. Cubra a mistura e leve à geladeira por 1 hora. Aqueça o óleo em uma panela. Com as mãos ligeiramente molhadas, faça movimentos circulares para formar pequenas bolas com a massa de grão-de-bico. Frite os bolinhos no óleo quente e coloque-os em uma vasilha coberta com papel toalha para absorver a gordura. Queime as berinjelas dos dois lados na trempe do fogão. Retire do fogo, retire a polpa e reserve. Tempere com sal e pimenta. Numa frigideira ou panela pequena, aqueça o óleo e frite o alho e a pimenta dedo-de-moça até começar o alho dourar. Retire do fogo, coe com uma peneira e reserve. Misture a tahine com suco de limão, sal, cominho em pó, alho picado e pimenta-do-reino. Bata bem. Em seguida, acrescente a água gelada e bata até obter a consistência de maionese.