Jornal Estado de Minas

VIAGEM INSPIRADORA

'Me senti em casa', diz português indicado pelo Michelin em visita a BH

'Nada se desperdiça e tudo se transforma. Essa é uma lei dentro do restaurante', aponta o chef Rodrigo Castelo (foto: Alberto Silva/Divulgação)

Bastou pisar em Minas Gerais para se sentir em casa. Era a primeira vez que Rodrigo Castelo visitava Belo Horizonte, mas não demorou para ele se identificar com o povo e a comida. “Uma vez disse que, se não vivesse em Portugal, viveria no Brasil, especificamente no Rio de Janeiro. Agora já não tenho mais certeza. Gostei muito de BH”, confessa o chef português.




 

Rodrigo é o dono do Ó Balcão, em Santarém, na região do Ribatejo. É o único restaurante da pequena cidade, banhada pelo rio Tejo, a ser indicado pelo Guia Michelin na categoria Bib Gourmand. Ou seja, oferece uma cozinha de qualidade a um bom preço.
 
Curiosamente, Santarém tem uma ligação direta com o nosso país, não só pelo nome, idêntico ao da cidade do Pará. Ali Pedro Álvares Cabral, descobridor do Brasil, viveu seus últimos anos.

Há uma estátuta em sua homenagem, seu túmulo em uma igreja e o centro cultural Casa do Brasil, que ocupa o sobrado onde ele morou com a família. Portanto, virou um destino turístico para brasileiros.
 
O chef cresceu muito próximo dessa história e sempre gostou do Brasil. Até então, já tinha estado em São Paulo e Rio de Janeiro (a trabalho) e Trancoso e Fortaleza (de férias).



Desta vez, passou cinco dias em Belo Horizonte a convite do Projeto Fartura. “Gostei muito da vossa cidade. Achei segura, pelo menos por onde andei, tudo é de fácil acesso e me senti muito bem recebido”, revela.

Pelo lado da gastronomia, ah, esse é um capítulo à parte. Rodrigo relata experiências “incríveis” em vários restaurantes da cidade.

Visitou, por exemplo, o Turi do seu conterrâneo Cristóvão Laruça, que o acompanhou em boa parte do tour. Conheceu também o Birosca de Bruna Martins, o Glouton de Leo Paixão, o Cozinha Tupis de Henrique Gilberto e o Xapuri de Flávio Trombino.
 
“A cidade está muito forte a nível gastronômico e muito bem representada por seus cozinheiros”, ele resume. 
Casquinha com ceviche de peixe do rio (tainha) e do mar (atum) e ovas de truta (foto: Visitfoods/Divulgação)

O chef fala com bastante entusiasmo sobre o Mercado Central. Diz que se sentiu como uma criança em um parque de diversões.



Como todo turista em Minas, encheu a mala de queijos, mas ficou frustrado porque não pode cozinhar com eles. A bagagem de 25kg foi apreendida pela alfândega no desembarque. Ele não sabia que era proibido transportar queijos em voos internacionais.

Rodrigo protagonizou o segundo jantar com chefs estrangeiros da Temporada Fartura em BH (depois do francês Patrick Terrien e antes da espanhola Nieves Barragán).

Como em Portugal

Nessa aproximação com os mineiros, decidiu trazer um menu mais semelhante possível ao que serve no restaurante. Tanto que não abriu mão de preparar aqui os caldos e outras bases dos pratos. Isso levou dois dias.

Adaptações foram necessárias, já que sua cozinha privilegia ingredientes locais. Lá, em especial, peixes e mariscos do rio (em um menu degustação do Ó Balcão, ele chega a apresentar quase 10 espécies de água doce). Mas não teve do que reclamar.



“Consegui ótimos ingredientes. Alguns pratos até resultaram melhores, porque os produtos eram melhores”, comenta, muito satisfeito com o resultado.
Couve grelhada com peixe pimpão e maionese de açafrão (foto: Visitfoods/Divulgação)
O cardápio impresso na mesa listava cinco pratos. Mas logo chega a primeira surpresa: um peixe curado tipo sashimi com alga kombu marinada em saquê, shoyu e cítricos.

A entrada inesperada havia sido feita com as sobras do peixe que estaria em um etapa adiante. Na sequência, uma versão de fish and chips, que também não estava prevista, com chips de casca de batata e molho de peixe com as aparas.

Naquele momento, ficava evidente uma característica marcante da cozinha de Rodrigo: desperdício zero.

“Nada se desperdiça e tudo se transforma. Essa é uma lei dentro do restaurante. Não desperdiçamos nada e tentamos levar tudo para a mesa”, explica o chef, que gera o mínimo de lixo, porque ainda “alimenta” uma pequena compostagem.




 
Oficialmente falando, o menu começou com uma casquinha (com as que comemos com doce de leite) recheada com ceviche de peixe do rio (tainha) e do mar (atum).

Em seguida, sopa de peixe curado com caldo de aparas de peixe e ovas, que até se confundem com canjiquinha pelo efeito granulado. Segundo o chef, esta foi a receita que ficou mais parecida com a original.

Bacalhau confitado

O prato com bacalhau diz muito sobre sua origem. Apesar de não ser pescado lá, o peixe é muito presente nas mesas de Santarém. Confitado em baixa temperatura, fica impecavelmente translúcido.
Peixe achigã curado, caldo defumado de espinha e cabeça de peixe, gema de ovo e ovas de barbo (foto: Visitfoods/Divulgação)

De acompanhamento, magusto, preparo típico da região, com sobras de pão, feijão, batata e couve. O azeite do bacalhau emulsionado vira um creme branco e o óleo verde reúne aparas de coentro e salsa.




 
Em Santarém, ele usa lagostim do rio. Aqui Rodrigo teve que recorrer ao lagostim do mar (“estava num ponto incrível”) para a etapa seguinte, curado em sal e água com gás e braseado com maçarico.

Era para acompanhar o arroz português carolino cozido em caldo de siri (lá chamado de caranguejo de água doce) e saborizado com caldo de aparas de lagostim. Na finalização, pistache triturado.

Para encerrar o jantar, o chef escolheu uma sobremesa famosa do seu restaurante, que tem um nome curioso: Nem tudo é limão. Leva-se a crer, pela apresentação, que o prato se resume à fruta, mas não é bem assim.
Gelado de limão, lemon curd, caramelo salgado, merengue de amêndoas e queijo ralado (foto: Visitfoods/Divulgação)

Em contraste com o azedinho do sorvete e do creme de limão, fomos agraciados com o dulçor do merengue de amêndoas, o salgado do queijo ralado e a mistura do caramelo salgado.



Por influência dos pais, Rodrigo sempre esteve muito ligado à gastronomia. Nas viagens de férias, a família saía em busca de bons restaurantes.

O filho começou a cozinhar aos oito anos, mas, à princípio, não quis ser chef. Estudou produção animal e foi trabalhar na área das vendas e de suporte clínico de uma indústria farmacêutica. Cozinhava por pura satisfação.

Uma demissão no caminho

Quando uma crise se instalou em Portugal, ele teve a “sorte” de ser demitido e, com o dinheiro do acerto, decidiu realizar o sonho de abrir um restaurante. Detalhe: nunca tinha trabalhado em uma cozinha.
 
Sem perder muito tempo, Rodrigo seguiu a sua intuição e foi criando pratos que faziam sentido para ele, com sabores que gostava e técnicas que aprendeu sozinho.
Peixe siluro com emulsão da gordura do próprio peixe e grão-de-bico do Ribatejo (foto: Visitfoods/Divulgação)

“Os pratos são uma continuação de quem eu sou”aponta. “Sou uma pessoa com coração grande, que gosta de receber, muito intenso, justo, sincero, humilde e muito apaixonado pela gastronomia, pela minha família, por tudo.”




 
O restaurante já estava pronto, mas ainda não tinha nome. Foi, então, que Rodrigo teve a ideia de homenagear o balcão de serviço, elemento chamativo do salão. Destaca-se por ser revestido com azulejos hidráulicos centenários. Na parede ao lado, estã penduradas louças portuguesas.
 
Recentemente, o espaço passou por uma reforma, deixando o balcão ainda mais em evidência.

Em março, nove anos depois de abrir o restaurante, Rodrigo se tornou embaixador da gastronomia da cidade de Santarém. Nada mais justo, já que ele tem um trabalho de valorização de produtores e produtos locais.

Como exemplo, o grão-de-bico do Ribatejo, servido com o peixe predador siluro, raro de se ver à mesa. Para experimentar esse prato, não tem jeito, tem que ir à Santarém. 

Arroz cremoso de siri com lagostim e pistache

Ingredientes
5kg de siri; 600g de alho-poró; 200g de alho; 335g de raiz de coentro; 1700g de cebola; 200g de azeite; 100g de sal grosso; 230g de manteiga; 1500g de vinho branco; 15 litos de água; 100g de amido de milho; 55g de açafrão; 90g de colorau; 10g de raiz forte; 100ml de Macieira (destilado português); 50g de gengibre; 350g de carne de siri; 45g de destilado de uva; 50 de vinagre; 10kg de lagostim; 1,2 kg de cebola picada; 200g de alhos laminados; 250g de azeite virgem; 1 talo (40g) de capim-limão; 30g de tomilho; 30g de poejo; sal e pimenta a gosto; 2l de vinho branco; 3l de água; 500g de manteiga; lima a gosto; 50g de pistache; 150g de arroz carolino; coentro a gosto; sumo de 4 limões; 600ml de caldo de siri; 10 lombos de lagostim; 15 folhas de wasabi

Modo de fazer
Num tacho, coloque 100g de azeite e esmague os siris. Deixe suar bem até secarem. Em seguida, coloque a Macieira e flambe para evaporar o álcool. Junte o alho-poró, metade da raiz de coentro, 700g de cebola e deixe cozinhar por 10 minutos em fogo brando. Adicione o vinho branco e, quando evaporar o álcool, junte a água. Deixe reduzir durante 2 horas (aproximadamente). Coe o caldo. À parte, num tacho, refogue o alho, raiz de coentro, o restante da cebola , açafrão, colorau, raiz forte, gengibre e a carne do siri em 100g de azeite. Adicione o destilado e o vinagre. Depois o caldo coado. Adicione o amido de milho e tempere com sal. Triture a mistura durante 10 minutos. Para preparar os lagostins, separe as cabeças das caudas. Coloque as caudas em sal moura líquida de 10%. Separe as pinças das cabeças. Retire o coral do interior das cabeças. Refogue as cebolas, os alhos e as pinças em azeite. Deixe reduzir. Junte a manteiga. Adicione vinho branco e faça a deglaçagem. Adicione o vinho restante e deixe evaporar o álcool. Junte a água e tempere com sal e pimenta. No fim, junte as ervas aromáticas. Por fim, junte os miolos e deixe reduzir. Triture durante 10 minutos. Junte o arroz carolino ao caldo de siri. Adicione o caldo até o arroz ficar cremoso. No final, adicione coentro picado. Descasque os lombos dos lagostins, pincele com a bisque das pinças e passe o maçarico. Coloque o arroz embaixo e os lagostins por cima. Finalize com pistache picado, folhas de wasabi e a bisque das pinças ao redor. 

Serviço

Ó Balcão 
Clique aqui para conhecer o restaurante, que fica em Santarém, indicado pelo Guia Michelin