Jornal Estado de Minas

MEMÓRIAS GASTRONÔMICAS

O restaurante A Casa da Agnes celebra 60 anos da chef com menu comemorativo



“Não tem nada mais aconchegante do que um ovo quente”. A frase de Agnes Farkasvölgyi dá o tom a respeito dos valores que se solidificaram ao longo de uma trajetória de 33 anos de cozinha. São preceitos que orientam a criação de seu projeto mais recente, um menu degustação com dez tempos totalmente dedicado à comemoração das seis décadas de vida dessa chef, banqueteira, empresária e professora.





 

O casamento entre chocolate e laranja é a aposta da sobremesa que leva profiteroles com mousse e sorvete (foto: marcos vieira/em/d.a press)
 


São tantas Agnes que ela andou com a cabeça quente no ano passado. “Percebi que estava envelhecendo, aí eu resolvi fazer arte”, diz. Como a cozinha e o ateliê se confundem em seu universo - ela também é artista -, a fagulha de inquietação acabou levando-a a criar. “Comida pra mim é matéria-prima”, resume.

 

A tortinha recheada com pato é inspirada nos áureos tempos do Café Ideal, casa que marcou época na cidade (foto: marcos vieira/em/d.a press)
 


A Casa da Agnes é o nome de seu restaurante, que fica no Bairro Santo Antônio, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte. Por ali, o jantar especial ocorre uma vez por mês até outubro. Dia 28 de fevereiro é a próxima data. A mente inventiva da chef não permite repetição, portanto a intenção é inovar o cardápio a cada edição. Na dobradinha entre arte e comida, ela apresenta ainda uma exposição de obras de arte de sua autoria instaladas nos cômodos da casa.

 

Ovo quente com sagu de molho de peixe e caviar é uma das entradas do menu degustação (foto: marcos vieira/em/d.a press)
 


O jantar percorre uma viagem pelas referências gastronômicas que ainda borbulham na memória de Agnes. Como o ovo quente que ela resgata de quando era criança. “É minha primeira referência de comida, eu tinha uns três anos”, relembra. O prato foi batizado de ovo & ovas. Ela costuma dizer que é uma entradinha de aconchego, pois o ovo quente, feito em água fervente a 62ºC durante 45 minutos, recebe sagu de nam pla (molho tailandês à base de peixe) e caviar. Em seu caldeirão de citações, ela menciona inspiração pelo trabalho do chef israelense-britânico Yotam Ottolenghi. As cores artísticas já começam a aparecer e ficam por conta da paleta que acompanha a receita, formada por húmus de beterraba e cenoura, além de pesto e chips de batata doce. “Tem a ver comigo, eu gosto dessas brincadeiras”, diz.





 

O tempurá de flores comestíveis é acompanhado por caldo de galinha caipira (foto: marcos vieira/em/d.a press)
 


Nada é gratuito no playground de Agnes. Em sua exibição, ela demonstra conhecer os meandros do paladar e provoca o cliente, sem malabarismos, a testar limites sensoriais. Em uma das quatro entradas, as percepções são ampliadas quando é servido o prato chamado lichia no mar e nas nuvens. Um ceviche feito de lichia com coco e uva apresenta refrescância e atiça a curiosidade, já que as lâminas da fruta simulam a carne de peixe. O prato chega à mesa acompanhado por sorbet da mesma fruta e pimenta.

 

Bolinho de arroz negro e caldinho de feijão picante são itens do mexido da bruxa (foto: marcos vieira/em/d.a press)
 

 

SABORES MARCANTES

 

Memórias de quando esteve no Peru alimentam a criação de outra combinação estimulante. O prato “a ostra vermelha” leva o que a cozinheira chama de bloody leche de tigre. Trata-se de leite de tigre mesclado com bloody mary, o coquetel feito de suco de tomate, mas aqui não vai vodca. Agnes apresenta a receita com uma ostra sobre o recipiente que recebe o líquido, e conta que aprendeu a proposta com os chefs peruanos Gastón Acurio e Virgílio Martinez.
Seguindo a linha do tempo proposta pelo menu, somos levados ao ano de 1979. “Foi quando fui à Europa pela primeira vez e comi salmão defumado”, lembra a cozinheira artista. Para ela, a sensação foi de puro transe. “Fiquei louca com aquilo, nunca tinha visto no Brasil”, continua. Intitulado “a primeira viagem”, o salmão defumado entrou no menu festivo. O peixe é defumado em uma panela de defumação caseira e vem acompanhado por aspargos e molho hollandaise de maracujá. “É um prato fácil e singelo, amanteigado. Acho superchique”, avalia.





Ela conta suas salivantes memórias gustativas como se fossem recentes, o que ajuda a atiçar ainda mais os sentidos. Evoca o saudoso Humberto Passeado para falar do Pato Selvagem, restaurante do professor de culinária que funcionou em Lourdes décadas atrás. “Ele e o Café Ideal foram marcos na cidade em termos de alta gastronomia, as pessoas deveriam falar isso”, destaca. A partir dessa vivência no Café Ideal, onde provou um pato inesquecível, surgiu a inspiração para servir uma tortinha feita com a carne da ave, assada e com mel trufado, guarnecida por mini legumes e framboesa. “O dia em que eu descobri o magret, vi que não tinha nada melhor que isso”.


Sobre a mesa, uma gama de talheres deixa o cliente confortável para comer cada bocado da forma que lhe convir - às garfadas, colheradas ou mesmo com as mãos. A essa altura, o ideal é embarcar junto aos pensamentos de Agnes em direção à Ásia. É momento da borboleta contemporânea, uma receita que leva um generoso camarão assado no forno e servido aberto com sorbet de manga e curry tailandês picante. “O camarão é temperado com mel, gengibre, pimenta dedo-de-moça e nam pla”, explica. Apimentada, mas acessível ao paladar brasileiro, a criação remete à passagem da chef, nos anos 1990, pela Le Cordon Bleu, a conceituada escola francesa de culinária, onde ela fez especialização sobre comida do sudeste asiático.


São esses contrastes entre texturas, temperaturas e sabores que vão guiando o jantar proposto pela chef, onde números artísticos também podem aparecer - uma poesia de João Cabral de Melo Neto ou uma atração musical - quem sabe? “Essa alcunha de maluca eu tenho desde sempre, graças a Deus”, ela festeja.





Não se trata de insanidade, mas sim de um domínio que a cozinheira expressa na alquimia de misturar temperos, o que não deixa de remeter a outra faceta de Agnes - sua formação em Física. “Isso tudo é ciência de combinação molecular”, contextualiza.

 

Camadas sensoriais

 

No menu degustação comemorativo do restaurante A Casa da Agnes, o que a chef propõe é uma espécie de viagem ao desconhecido. “Um passeio sem ser dirigido, quero que seja sensorial do início ao fim”, ela diz. O trajeto dura, em média, cerca de duas horas.


O prato que dá partida já revela as ousadas intenções do menu. O tempurá de flores comestíveis é servido num prato que simula uma tela, acompanhado por um aromático caldo de galinha caipira. “Esse prato te leva para outro lugar”, promete a chef.





As referências da memória gustativa guardam espaço para as sobremesas criadas para o jantar, como no casamento entre chocolate e laranja “A primeira vez que eu comi, foi uma explosão na minha boca”, diz. Para proporcionar ao cliente a mesma oportunidade, ela prepara profiteroles recheado com mousse de chocolate e licor cointreau, acompanhado por sorvete também de chocolate e laranja cristalizada.


Ingredientes mineiros performam na parte final da refeição, quando a cozinheira apresenta uma seleção de queijos cremosos feitos no estado. “Eu ando apaixonada por eles”, elogia. Ela usa produtos premiados, como o queijo Lua Cheia, produzido pelo Laticínio Serra das Dantas, em Bueno Brandão. É maturado por três semanas e tem a textura aveludada e cremosa. Também entra o queijo reblochon e o gorgonzola, do mesmo produtor. O azeite fresco Borriello, feito na Serra da Mantiqueira, é harmonizado com chocolate Kalapa e ambos acompanham o semifreddo de chocolate branco.


Apostando cada vez mais na missão de usar a cozinha como linguagem, Agnes segue sua rotina de atividades intensas. Seu restaurante na capital também funciona de segunda a sábado, onde é possível provar outros pratos como bobó de camarão, arroz de pato e portafoglio de filé. Ela mantém o Buffet Garni na mesma cidade, e ainda é chef executiva no Chafariz, em Ouro Preto. Em meio a tantos afazeres, Agnes segue celebrando. “Eu adoro ciência, e a arte salva a vida”, finaliza.





 

Ceviche de frutas verdes, lichia e sorbet

 

INGREDIENTES

1 lata de lichia em conserva ou 30 frutas naturais; 2 kiwis; 1 coco fresco (polpa e água); 1 cebola roxa; folhas de coentro e salsa frescos; 1 pimenta verde picadinha; 2 limões, 1 mexerica; flor de sal. Para o sorbet: 1 lata de lichias escorridas e congeladas, 1 pimenta dedo-de-moça sem sementes, suco de ½ limão siciliano, 1 colher de sopa de gengibre picadinho e 1 clara de ovo

 

MODO DE FAZER

Escorra as lichias por 10 minutos em uma peneira. Corte-as m lâminas. Fatie os kiwis em cubos de ½ centímetro. Retire a polpa do coco e também corte em fatias como a lichia, reserve a água no freezer. Corte a cebola em meia lua e deixe de molho em água, misture com água de coco bem gelada e reserve. Fatie a pimenta sem sementes. Pique o coentro e a salsa grosseiramente.Retire os sucos dos limões  da mexerica. Trinta minutos antes de servir, misture a cebola escorrida com as ervas, a pimenta e os sucos cítricos. Deixe na geladeira até a ora de servir. Junte as lichias e os kiwis com essa mistura de cebola e distribua em vasilhame individual. Para o sorbet, ata todos os ingredientes em um processador potente.
Sirva com o ceviche.

 

SERVIÇO

 

A Casa da Agnes

Rua Paulo Afonso, 833, Santo Antônio, Belo Horizonte, (31) 98738-7066