O que Belo Horizonte e Guadalajara têm em comum? Uma cena gastronômica que quer se mostrar para o mundo. A visita do mexicano Francisco Ruano à capital mineira, na semana passada, para um intercâmbio nas cozinhas do Grupo Viela, comandadas por Henrique Gilberto, evidenciou que ambos buscam o mesmo reconhecimento. Os chefs se orgulham de suas origens, valorizam os produtos de suas regiões e trabalham para que suas cidades apareçam no mapa da gastronomia mundial.
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Inaugurado há 10 anos, colocou a cidade no mapa gastronômico do país, ao lado de conhecidos polos como Yucatán e Oaxaca.
Inaugurado há 10 anos, colocou a cidade no mapa gastronômico do país, ao lado de conhecidos polos como Yucatán e Oaxaca.
“Na cidade onde cresci, há muita comida de rua boa, mas não tínhamos uma cozinha orgulhosa de si mesma e restaurantes de bom nível. É o que estamos fazendo há 10 anos. Não fomos os primeiros, mas calhou de sermos os mais relevantes”, apontou o mexicano, nesta primeira visita a BH. Nas ruas, ele sentiu que os mineiros são tão orgulhosos da sua própria riqueza como eles, de Guadalajara.
Nessa busca por colocar BH no mapa da gastronomia brasileira e, por que não, mundial, Henrique também enxerga uma atitude “bairrista”. “Como bons belo-horizontinos, defendemos o nosso território, nossa região e eles também são assim. Enchem a boca para falar de Guadalajara e dizem com orgulho que a comida de lá é muito boa. Essa similaridade entre nós é fantástica”, observa.
O interesse de Paco pela cozinha veio de observar a avó e a mãe. “Tive a sorte de crescer numa casa onde se cozinhava bem. Minha família não era de comida extravagante. Tudo era muito simples, mas muito gostoso. Cresci comendo bem, experimentava de tudo e daí nasceu a curiosidade pela cozinha.”
Aos 17 anos, ele conseguiu o primeiro emprego em um hotel, repondo iogurte no bufê do café da manhã, e pouco a pouco foi crescendo na profissão.
Em um tour pela Europa, o mexicano passou pelos restaurantes Mugaritz e El Celler de Can Roca (ambos na Espanha) e Noma (Dinamarca), que estão entre os melhores do mundo.
“É claro que me marcou o padrão de profissionalismo e dedicação que existe lá, mas cada vez há menos dessa cozinha na minha cozinha. Acho bonito ver que nós, latinos, estamos conseguindo cozinhar cada vez mais como latinos”, destaca Paco, que reinterpreta técnicas tradicionais da cozinha do seu país.
“É claro que me marcou o padrão de profissionalismo e dedicação que existe lá, mas cada vez há menos dessa cozinha na minha cozinha. Acho bonito ver que nós, latinos, estamos conseguindo cozinhar cada vez mais como latinos”, destaca Paco, que reinterpreta técnicas tradicionais da cozinha do seu país.
Segundo ele, a cozinha mexicana ganhou relevância no mundo quando os chefs deixaram de tentar cozinhar como europeus e se conectaram com as tradições do país.
Henrique herdou do pai e do avô a paixão pela cozinha e trabalhou em restaurantes estrelados, como o D.O.M (São Paulo) e a Osteria Francescana (Itália). Assim como Paco, sempre quis voltar para a sua cidade. Seu desejo era mergulhar em pesquisas sobre a cultura alimentar de Minas Gerais.
“Eu, assim como outros chefs talentosos da cidade, estamos em BH por uma escolha de fazer essa capital ser notada gastronomicamente. Temos o privilégio de morar em uma cidade tão rica, culturalmente e em termos de biodiversidade, e esse privilégio precisa ser celebrado com comida boa.”
Mais do que os prêmios, Paco se orgulha de democratizar o acesso a pratos mais elaborados. “Fazemos uma cozinha mexicana elegante e atual, mas também muito fácil de se aproximar das pessoas. Democratizamos a experiência de comer um prato que tem muito trabalho por trás e muita gente que não está acostumada com isso se atreve a experimentar, porque a nossa linguagem é muito simples.”
Aqui já podemos traçar outro paralelo com o seu anfitrião. Henrique levou para o Mercado Novo, quando o espaço ainda era uma promessa, um restaurante com balcão e cozinha aberta que serve pratos criados a partir de um olhar profundo sobre técnicas e ingredientes.
“A proposta do Cozinha Tupis é surpreender num espaço que, ao todo, tem 36 metros quadrados. Tentamos explorar muito do pouco espaço que temos para entregar uma comida com grande relevância gastronômica.”
“A proposta do Cozinha Tupis é surpreender num espaço que, ao todo, tem 36 metros quadrados. Tentamos explorar muito do pouco espaço que temos para entregar uma comida com grande relevância gastronômica.”
Aí vai mais uma semelhança: ambos os chefs se voltam para produtos locais. Henrique leva para a sua cozinha ingredientes pouco valorizados. No novo menu do Cozinha Tupis, você encontra macarronada de frango com quiabo servida com moela, papada de porco com arroz frito e mil folhas de batata com recheio de rabada e agrião. Dobradinha permanece por ser um prato “de resistência”, ele explica.
Já Paco usa muito no restaurante pitaia (sua fruta favorita), amendoim verde e o curioso chinchayote (raiz comestível de chuchu que, preenchida de água, parece mandioca).
Já Paco usa muito no restaurante pitaia (sua fruta favorita), amendoim verde e o curioso chinchayote (raiz comestível de chuchu que, preenchida de água, parece mandioca).
Paixões compartilhadas
Nas trocas entre os chefs, eles identificaram ingredientes comuns às cozinhas mexicana e mineira. “Compartilhamos a paixão por feijão, porco, frango, milho, pimentas (as daqui são picantes de verdade), as verduras e o coentro”, resume Paco, que usou boa parte desses produtos nos pratos servidos em BH, em uma noite na Forno da Saudade e outra no Cozinha Tupis.
Henrique se aprofunda ainda mais nas similaridades. “Trabalhamos com processos de profundidade de sabor”, aponta. “Os mexicanos têm o adobo e nós, mineiros, o refogado, algo que preservamos muito no Cozinha Tupis. São maneiras de criar camadas de sabor para alcançar um umami interessante e uma permanência de sabor na boca.”
Paco trouxe na mala um carregamento de tortilhas para servir várias versões de tacos, o que evidencia a importância do milho na cozinha mexicana. Entre as receitas, o taco de birria, ícone de sua cidade.
Tradicionalmente, o recheio é de bode, mas o chef usou carne de cordeiro, por ser mais “universal”, que passa por um longo processo de cocção, outro ponto em comum entre as cozinhas de BH e Guadalajara. “Fazemos um braseado com um adobo de pimentas, orégano, gengibre e cominho.”
Tradicionalmente, o recheio é de bode, mas o chef usou carne de cordeiro, por ser mais “universal”, que passa por um longo processo de cocção, outro ponto em comum entre as cozinhas de BH e Guadalajara. “Fazemos um braseado com um adobo de pimentas, orégano, gengibre e cominho.”
O mexicano não poupou na picância. “Comemos muito picante na minha região do México.” Deu para sentir o poder das pimentas no aguachile, um dos pratos preferidos do chef. Os camarões crus são marinados em limão, sal, pimenta e um monte de coentro, a erva que não pode faltar na comida mexicana. Para acompanhar, tortilha de milho.
Outro prato apimentado era o taco de curry de caranguejo com palmito assado. O capim limão entrou como um refresco, mas a picância era bem marcante.
Outro prato apimentado era o taco de curry de caranguejo com palmito assado. O capim limão entrou como um refresco, mas a picância era bem marcante.
A equipe do Grupo Viela aprendeu com Paco sobre frutos do mar. “Eles são muito comuns no México, mas aqui não servimos porque não estamos perto do mar. Temos esse princípio”, ressalta Henrique, que está desenvolvendo um projeto com peixes do rio.
Além do camarão do aguachile, os belo-horizontinos tiveram a oportunidade de comer ceviche de garoupa com cajá manga (lá ele costuma usar ameixa amarela) e taco de vieiras (em forma de mousseline no recheio e cruas por cima).
Além do camarão do aguachile, os belo-horizontinos tiveram a oportunidade de comer ceviche de garoupa com cajá manga (lá ele costuma usar ameixa amarela) e taco de vieiras (em forma de mousseline no recheio e cruas por cima).
De sobremesa, o chef serviu um doce típico do México, o tamal, que é uma massa de milho (essa era saborizada com chocolate) cozida no vapor enrolada em folha de bananeira. Muito parecida com a nossa pamonha. Sorvete de manga e folha de mostarda defumada completavam o prato.
Ainda teve arroz-doce, mas de um jeito que mineiro não está acostumado. Paco usou trufas para dar sabor e acrescentou sorvete de castanha de caju e crocante de leite de soja.
Ainda teve arroz-doce, mas de um jeito que mineiro não está acostumado. Paco usou trufas para dar sabor e acrescentou sorvete de castanha de caju e crocante de leite de soja.
Ocupa Viela
A vinda de Paco Ruano a BH faz parte do “Ocupa Viela”, projeto do Grupo Viela que promove intercâmbios entre chefs para uma troca de olhares sobre a comida e as cidades.
“Essa troca é muito positiva para o desenvolvimento dos nossos cozinheiros e também para nós, como Grupo Viela, entendermos o nosso lugar na cena gastronômica mundial, como impactamos localmente pensando globalmente”, aponta Henrique Gilberto.
“Essa troca é muito positiva para o desenvolvimento dos nossos cozinheiros e também para nós, como Grupo Viela, entendermos o nosso lugar na cena gastronômica mundial, como impactamos localmente pensando globalmente”, aponta Henrique Gilberto.
Esta foi a primeira vez de Paco em BH. Até então, ele conhecia apenas São Paulo. Mas, muito antes de visitar o Brasil, o mexicano se apaixonou pela música brasileira (na conversa, contou que ouvia de Otto a Chico Buarque, Os Tribalistas, Seu Jorge e Zeca Baleiro).
Já cozinheiro, sonhava em trabalhar no D.O.M, de Alex Atala, restaurante que considerava o mais importante da América do Sul. “Tentei por muito tempo, mas não consegui. Agora venho ao Brasil como convidado. Tudo tem o seu tempo.”
Já cozinheiro, sonhava em trabalhar no D.O.M, de Alex Atala, restaurante que considerava o mais importante da América do Sul. “Tentei por muito tempo, mas não consegui. Agora venho ao Brasil como convidado. Tudo tem o seu tempo.”
O projeto cria um momento de trocas na cozinha, ao mesmo tempo em que apresenta a cidade aos chefs convidados. “Temos que promover BH como lugar de gastronomia. A cidade respira gastronomia muito antes de a gente nascer, e isso precisa ser contado. As pessoas precisam saber que se come muito bem em BH”, destaca o belo-horizontino.
Henrique levou Paco ao Xapuri, a primeira cozinha onde trabalhou. Seu pai mora do lado do restaurante e ele se lembra, de pequeno, que dona Nelsa ia lá levar a panela de comida para o almoço.
“Foi uma aproximação à cultura brasileira muito linda. Senti uma grande hospitalidade, o espaço é incrível e a comida deliciosa”, disse o mexicano, que provou muitas iguarias mineiras, entre elas frango ao molho pardo, torresmo, bolinho de queijo, pastel de angu e feijão-tropeiro.
“Foi uma aproximação à cultura brasileira muito linda. Senti uma grande hospitalidade, o espaço é incrível e a comida deliciosa”, disse o mexicano, que provou muitas iguarias mineiras, entre elas frango ao molho pardo, torresmo, bolinho de queijo, pastel de angu e feijão-tropeiro.
Paco também visitou o Mercado Central, onde comeu o famoso sanduíche de pão de queijo com pernil do Comercial Sabiá. “Isso é muito perigoso pra mim, porque não quero parar de comer, é viciante”, comentou, ao falar sobre o nosso pão de queijo. “Quero as receitas de todos que comi.”
Nessa imersão, ele se surpreendeu com a comunidade que o Grupo Viela criou em torno dos seus projetos. “É muito bonito e muito inspirador ver que eles não criaram só um projeto bonito socialmente, mas também delicioso e de altíssima qualidade”, analisa.
Paco soube que o Mercado Novo e a praça onde fica a Forno da Saudade, no Carlos Prates, com vista panorâmica da cidade, eram pontos esquecidos e hoje estão tomados por pessoas que apoiam a ideia e festejam BH.
Paco soube que o Mercado Novo e a praça onde fica a Forno da Saudade, no Carlos Prates, com vista panorâmica da cidade, eram pontos esquecidos e hoje estão tomados por pessoas que apoiam a ideia e festejam BH.
O “Ocupa Viela” começou com um recorte latino-americano. Na estreia, no mês passado, eles receberam o argentino Pablo Inca, do restaurante Cora, em São Paulo, com as suas famosas empanadas. O próximo convidado deve ser um gaúcho.
No ano que vem, segundo Henrique, o plano é ampliar os horizontes para a cena gastronômica mundial. Ele já está em contato com amigos italianos e australianos.
No ano que vem, segundo Henrique, o plano é ampliar os horizontes para a cena gastronômica mundial. Ele já está em contato com amigos italianos e australianos.
Aguachile de camarão
Ingredientes300g de camarão com casca e cabeça; 150ml de água; 60g de pimentas desidratadas; 75ml de suco de limão; sal a gosto; 50g de cebola cortada em rodelas; 20g de gengibre finamente picado; 10g de pimenta habanero finamente picada; 90g de abacate; 25g de folhas de coentro; 15ml de azeite extravirgem
Modo de fazer
Retire a pele, a veia e a cabeça dos camarões. Reserve. Pegue as cascas e as cabeças e coloque-as para ferver por três minutos na água. Passe por uma peneira e reserve o líquido. Deixe esfriar e reserve. Em uma frigideira, toste as pimentas desidratadas. Cuide para que não mudem de cor, é só para realçar o sabor. Bata as pimentas com o caldo de camarão, até ficar uma mistura homogênea. Coe para remover os grumos. Reserve. Em uma tigela, coloque o camarão, o suco de limão e uma pitada de sal. Deixe marinar por 10 minutos na geladeira. Retire da geladeira, coe o líquido e acrescente à mistura previamente batida. Em um prato fundo, coloque o camarão, a cebola, o gengibre, a pimenta habanero e o abacate cortado em rodelas. Tempere com sal a gosto. Adicione o molho de aguachile e cubra com folhas de coentro e azeite.