Jornal Estado de Minas

CORES PARA COMER

Tingimento natural: vegetais são usados para colorir a comida

Aquela máxima de que comemos primeiro com os olhos se intensifica com as cores. Não há como negar que a comida colorida atrai a nossa atenção e automaticamente abre o apetite. Mais instigante ainda quando se trata de tingimento natural, em que os tons são extraídos dos próprios ingredientes das receitas. Veja como as cores transformam massas, pães e chocolates.




No tempo em que trabalhou em um restaurante italiano, Ana Jatobá só fazia massas tingidas com espinafre e beterraba, as mais tradicionais na Itália. Quando passou a dar aulas, foi instigada pelo interesse dos alunos e descobriu um mundo de possibilidades com tingimento natural.

“Como vivemos em um país tropical, onde existe uma variedade enorme de ingredientes à mão, temos muito mais recurso e criatividade para usar as cores”, aponta a chef e fundadora da Escola de Massas Autênticas.

O verde está entre as suas cores preferidas. O mais comum é usar espinafre, como os italianos ensinam, mas também dá para trazer um olhar mineiro com couve e ora-pro-nóbis. Ana alerta que tudo o que tem clorofila tem que passar pelo processo de branqueamento (sair da água fervente diretamente para a água gelada), senão oxida e deixa a massa marrom.

O pão de abóbora com cúrcuma da Albertina Pães Especiais se destaca com um amarelo chamativo (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)
Pensando na composição de cores, a chef gosta de servir a massa verde com recheio de ricota ou muçarela de búfala (branco) e molho de tomate (vermelho).



A beterraba entra na hora de tingir a massa de rosa. Linda e igualmente desafiadora, já que tende a desbotar no cozimento. Para driblar essa sua característica, a professora orienta comprar as menores, que têm a cor mais concentrada.

Além disso, existe uma técnica de fixação da cor que consiste em cozinhar o legume em meio ácido, com um pouco de vinagre e sal. Mesmo assim, perde-se intensidade na coloração. Se quiser o rosa no máximo de potência, considere usar a versão da beterraba em pó.

Ana associa a massa roxa de beterraba a sabores mais frescos. Por isso, dá uma ideia que foge do comum. Sirva em uma salada com queijo de cabra, maçã verde e raspas de limão siciliano.

Por usar ovos de gema vermelha, suas massas tradicionais ficam naturalmente mais amarelas. Quando quer reforçar o “bronzeado”, adiciona cúrcuma, açafrão ou páprica. Já a pitaia leva para a mesa um rosa fúcsia deslumbrante, nas palavras da chef. Nesse caso, o melhor é escolher um molho que não interfira no colorido do prato. Por exemplo, manteiga com suco e raspas de laranja.



Nessas pesquisas, Ana desenvolveu uma técnica com funghi seco que deixa a massa marrom e com um sabor marcante de cogumelos, o que é raro. Em geral, os ingredientes transferem cor e nutrientes, mas praticamente nada de sabor. Depois de desidratados no forno, para que fiquem bem crocantes, os cogumelos são processados até virar pó e se misturam à farinha de trigo.

Para acompanhar essa massa, ela indica carnes como ossobuco e rabada, cogumelos ou um molho de queijo básico.

Erva mate, camu-camu, açaí, flor clitória e hibisco: Luiz Santiago "pinta" o chocolate branco com vários ingredientes (foto: Kalapa/Divulgação)
Outro ingrediente que também tinge a massa de marrom e dá sabor é o cacau. Na opinião da chef, ela forma a combinação perfeita com molho de carnes ou cogumelos. Com um pouco de ousadia, você faz uma sobremesa. Já pensou em servir um ravióli de cacau recheado com brigadeiro ou geleia e uma bola de sorvete?

Do marrom para o preto, chegamos às massas tingidas com tinta de lula. Como ela tem sabor de mar, não dá para se distanciar de receitas como fettuccine com camarão e lasanha de bacalhau.

Segundo Ana, o interesse por massas artísticas, entre coloridas e estampadas, tem crescido. “Acho que a cor chama muita atenção, desperta o desejo e traz uma sensação de alegria”, opina. No seu curso on-line, ela ensina a fazer massas listradas e marmorizadas, combinando cores diferentes. As técnicas valem para todos os formatos, desde que a massa tenha ovos, para ter mais estrutura.



Para contar histórias

As fornadas quinzenais da Albertina Pães sempre estão ligadas a um tema, que pode ter a ver com o clima ou uma data especial. As cores, junto com formas e sabores, entram em cena para contar uma história.

Nas últimas semanas, com as temperaturas em queda, a padeira Renata Rocha, que acredita no poder das cores desde os tempos em que era arquiteta, tem apostado em tons mais quentes e terrosos, trazendo uma ideia de aconchego. O pão de abóbora com cúrcuma se destaca com um amarelo chamativo.

Ao combinar cores diferentes, dá para produzir massas listradas (foto: Nina Fernandes/Divulgação)
Toda vez que esse pão está no cardápio faz sucesso. Foi uma das primeiras receitas de Renata, que resolveu colorir o miolo do sourdough (pão de fermentação natural). Ela assa a abóbora com casca e tudo e faz uma espécie de purê, que entra na etapa de batimento da massa.



A cúrcuma em pó potencializa a cor amarela e também leva sabor. “É raro um corante natural que não interfere no sabor. Precisamos ter essa consciência”, pontua. O mel reforça o adocicado e as sementes da abóbora formam uma crosta na casca.

Segundo Renata, os pães coloridos são sempre as estrelas das fornadas. Atraem o olhar sem muito esforço e automaticamente abrem o apetite.

“De fato, é muito chamativo um pão colorido, ainda mais quando é natural. Tem um apelo visual fora do comum: passa do ordinário e vira especial. As pessoas também gostam porque colore e alegra a mesa”, comenta a padeira, que observa o interesse dos clientes em escolher acompanhamentos que combinam com a cor do pão.

Na panificação, o tingimento natural se restringe ao miolo. Isso porque, no forno, a casca tende a ficar amarronzada, devido ao processo de caramelização, chamado de reação de Maillard. Renata diz que até existem corantes naturais que resistem ao forneamento, mas ainda não chegaram ao Brasil. Por isso, você só vai encontrar cores intensas quando partir o pão.



As pesquisas são “eternas” na Albertina. Na busca por novas possibilidades, a padeira descobriu que as nozes são potentes corantes naturais. Uma substância da casca reage com a água durante a fermentação da massa e solta uma coloração roxa intensa.

O chocolate azul, tingido com a flor clitória, faz com que as pessoas se sintam na praia (foto: Cacau Mídia/Divulgação)
“Você vai descobrindo que o caminho do tingimento natural não é tão óbvio. A beterraba tem muito mais corante, mas só funciona em preparos frios. Nos pães, temos que usar as nozes”, explica Renata, que está estudando as cores na confeitaria.

O roxo chega ao máximo de intensidade na ciabatta de nozes. “Como não leva farinha integral, ela fica como uma folha branca para ser tingida.” Quando a massa é de sourdough, o pão perde em cor, mas ganha em sabor, com a adição de frutas secas, como tâmara, passas e figo.



A padeira também gosta de trabalhar com batata-doce roxa para colorir a massa de brioche, que fica com um tom lilás.

Mesmo o marrom pode surgir em tonalidades diferentes. Ao substituir a água pelo chá earl grey na receita de sourdough, Renata alcança uma cor mais intensa. O pão parece ser até de chocolate, mas depois você descobre que ali tem outro ingrediente.

Ao mesmo tempo em que tinge a massa, o chá preto com bergamota (o queridinho da rainha da Inglaterra) entrega sabor e aroma, somado a passas e erva-doce.

Descoberta mágica

A Kalapa só começou a fazer chocolates coloridos quando Luiza Santiago descobriu que dava para usar os próprios ingredientes como corantes. O que não é nada comum na chocolataria. Como não existiam cursos, ela foi desbravando sozinha, através de experimentos na fábrica, esse mundo do tingimento natural. Hoje tem sido procurada por quem quer levar cor para produtos à base de cacau.

“A cor me encanta pela beleza e pela possibilidade de levar isso naturalmente para o chocolate. O que você está vendo é reflexo da natureza, reflete o ingrediente como ele é e isso para mim é o mais fantástico”, comenta a bióloga, que atrai um público que valoriza o caminho inverso das artificialidades.



Agnolotti de espinafre com recheio de muçarela de búfala e pesto de manjericão e molho de tomate artesanal (foto: Nina Fernandes/Divulgação)
Nunca é só uma questão de cor. Como os pigmentos são extraídos de ingredientes, em geral flores e frutos, já têm sabor próprio. Logo, o tingimento natural implica em adicionar sabor.

“Além de tocar pelo visual, quero que as pessoas saibam que as cores carregam uma potência de sabor.” O desafio dessa alquimia está em encontrar o equilíbrio, para que nenhum deles fique forte demais ou pouco presente.

O mundo dos chás é uma grande inspiração para Luiza. Um dia, tomando infusão de clitória, que fica com um azul impactante, pensou: se a flor colore a água, pode tingir o chocolate. Era o ingrediente perfeito para fazer com que as pessoas se sentissem na praia, olhando para o azul do céu e do mar.



“Quando vou construir um chocolate, não penso só no sabor, penso nas sensações que quero provocar, e a cor participa muito disso”, aponta, lembrando que seu objetivo é despertar sensações.

O Beira Mar é uma barra azul em formato de onda, ao lado de uma “areia” de coco queimado. Como a clitória tem um sabor herbal muito sutil, ela adicionou o salgado da flor de sal, o frescor do limão e o sabor praiano do coco. De vez em quando, o chocolate azul volta em edições limitadas.

Luiza conta que foi “mágica” essa primeira experiência de tingir naturalmente o chocolate. Ainda mais com o azul, que é um pigmento raro de se conseguir naturalmente na gastronomia. Ela se apaixonou pelo processo de criação da cor e as pessoas ficaram apaixonadas pelo chocolate. Todo esse encanto motivou um mergulho pelo mundo dos corantes naturais.

Para trabalhar com cores, a base tem que ser o chocolate branco, é o que gera contraste. Dá para tingir a manteiga do cacau ou o chocolate já pronto.

O desafio está em encontrar o equilíbrio entre cor e sabor (foto: Cacau Mídia/Divulgação)
A única limitação é que não pode entrar nada líquido. No caso das frutas, elas não podem estar frescas, são liofilizadas (passam por um processo de secagem através da sublimação), desidratadas ou em pó. “Adoraria trabalhar com várias frutas nativas, mas, se não chegam desidratadas, não tenho como usá-las.”



Mas isso não significa ter poucas opções de cores. Luiza consegue várias tonalidades de rosa com as frutas camu-camu e cambuci, hibisco e milho crioulo vermelho. Se busca um tom mais intenso, mistura, por exemplo, hibisco com beterraba. Já o chocolate tingido com açaí fica com um tom roxo bem fechado.

Quando maracujá e cúrcuma se juntam, surge um amarelo vibrante, na mesma paleta do tingimento com buriti. A erva mate entrega uma cor verde.

Este é só o início da jornada das cores da Kalapa. Luiza está começando a pesquisar outros ingredientes e desenvolver técnicas de extração de corantes naturais. Ao mesmo tempo, faz misturas para criar, naturalmente, novos tons e sabores.

Pasta colorida de espinafre com recheio de muçarela de búfala e manjericão e molho de tomate artesanal (Ana Jatobá)

Ingredientes
350g de farinha de trigo; 150g de sêmola de trigo; 2 ovos; 150g de espinafre; 1 pitada de sal; 250g de muçarela de búfala; 200g de ricota; 50g de parmesão; 1 gema; sal a gosto; 100g de manjericão (branqueado e processado); 4 tomates italianos cortados em cubos; 80g de tomates-uva inteiros; ½ cebola; 2 dentes de alho laminados; 200g de polpa de tomate; azeite, sal, pimenta-do-reino, folhas de manjericão, salsinha fresca e páprica doce a gosto

Modo de fazer
Ferva o espinafre por dois minutos na água com sal. Em seguida, transfira o vegetal para um recipiente de água com gelo por mais dois minutos. Retire e esprema bem para tirar o excesso. Bata o ovo com o espinafre no mixer ou no liquidificador, até obter um líquido bem verde – a mistura deve render em torno de 250ml. Em uma tigela, misture as farinhas com uma pitada de sal. Acrescente a polpa de espinafre e misture com as mãos até obter uma bolinha de massa lisa e homogênea. Deixe a massa descansar por alguns minutos, envolvida em um plástico filme. Modele a massa no formato que quiser. Para o recheio, bata a ricota, a gema e a muçarela de búfala no mixer ou no liquidificador até obter uma textura pastosa e lisinha. Adicione o parmesão e o manjericão e corrija o sal. Para o molho de tomate, em uma frigideira aquecida, coloque um fio de azeite e a cebola e deixe murchar. Acrescente o alho laminado e deixe dourar. Adicione os tomates e cozinhe em fogo baixo, até que eles derretam. Acrescente a polpa de tomate e a páprica doce. Deixe reduzir em fogo baixo por 10 minutos, mexendo sempre para não queimar. Corrija o sal. Acrescente pimenta, salsinha e manjericão.

Serviço

Ana Jatobá (@anajatobaa)
(31) 99353-6162

Albertina Pães Especiais (@albertina_paes)
Rua Rio de Janeiro, 2629 – loja 102, Lourdes
(31) 99793-8990

Kalapa (@kalapachocolate)
(31) 97103-4585