Ouro Preto – O som do saxofone atrai quem passa pela ladeira da Rua Direita. O músico está na varanda de um casarão branco. Ali funciona o Casa do Ouvidor, um dos restaurantes mais tradicionais da cidade, que passou por uma reformulação completa e reabriu há um mês com nova cara e novos pratos. Esse é um dos exemplos de como a gastronomia de Ouro Preto, na Região Central de Minas Gerais, vem se renovando. Por receber muitos turistas, a cidade tem a chance de mostrar para o mundo sabores e histórias atualizados da cozinha mineira.
“Todo dia alguém chega contando histórias, inclusive os próprios garçons, e viver isso é muito legal. Uma senhora veio comemorar o aniversário de 70 anos e falou que faz isso há 30 anos. Um casal de São Paulo entrou na cozinha e abraçou as cozinheiras, falando, emocionado, que foi o melhor frango com quiabo que comeu na vida”, relata Carolina, que manteve a equipe antiga. Um dos garçons, José Luciano Martins, está desde o primeiro dia. Já Valdivino Viana, o Divino, tem “apenas” 33 anos de casa.
O novo cardápio foi criado por Jonathan Soares, que se mudou de BH para Ouro Preto sem nunca ter visitado a cidade. O chef sente a responsabilidade de comandar uma cozinha que funciona há quase 51 anos, algo inédito no seu currículo, mas está feliz e emocionado com o trabalho. “Um dia entrei no escritório e achei um prêmio de melhor restaurante de 1994, ano em que nasci. Eu nascia e eles já eram o melhor restaurante da cidade. Hoje estou aqui continuando essa história”, conta.
Jonathan passou três meses na cozinha antes do fechamento para a reforma. No início, as cozinheiras estranharam, nunca tinham dividido as panelas com um homem, ainda mais tão jovem, mas ele foi ganhando a confiança para aprender receitas e implementar melhorias.
O desafio era modernizar o cardápio, preservando a tradição. “A ideia era manter os pratos mineiros tradicionais, mas de uma forma mais organizada, com padrão. Dá para melhorar aquilo que já era muito bom.”
O desafio era modernizar o cardápio, preservando a tradição. “A ideia era manter os pratos mineiros tradicionais, mas de uma forma mais organizada, com padrão. Dá para melhorar aquilo que já era muito bom.”
Na receita do frango com quiabo, saiu tempero industrializado e entrou caldo de frango. O chef ainda acrescentou uma espiga de milho cozido, como a sua avó fazia. “Sou de São Paulo, mas a minha avó é mineira, é a referência de comida mineira que tenho. Tentei resgatar o que ela fazia, buscando sabores que comia na minha infância”, diz. Por causa disso, ele acrescentou bacon e linguiça no tropeiro, agora servido com copa lombo e linguiça caipira, os mesmos acompanhamentos do tutu de feijão.
O frango ao molho pardo fica mais saboroso com a presença do caldo de frango. Além disso, fígado de galinha substitui a farinha de trigo para engrossar o molho à base de sangue.
Cozinha internacional
Para criar o restante do cardápio, Jonathan voltou aos anos 1980, década em que o restaurante deixou a Rua do Ouvidor (daí o seu nome) para ocupar o casarão na Rua Direita. Não dava para ser muito moderno, até para não espantar a clientela antiga, por isso ele buscou pratos clássicos da cozinha internacional servidos nos restaurantes mais tradicionais do Brasil.
“Foi bem diferente trabalhar com pratos que nunca pensaria em colocar em um cardápio”, aponta o chef, que esbanja criatividade.
“Foi bem diferente trabalhar com pratos que nunca pensaria em colocar em um cardápio”, aponta o chef, que esbanja criatividade.
Sua versão do steak à Diana tem purê de mandioquinha, molho velouté de cogumelos e ervilha torta salteada. Já o filé à Osvaldo Aranha vira picanha à Osvaldo Aranha, num movimento para diversificar os cortes. Acompanham arroz, farofa, batata chips e muito alho frito.
Com o nome francês “la belle meunier”, o salmão passado na farinha de trigo e grelhado fica com uma casquinha crocante e ganha sabor com molho de limão siciliano e alcaparras. A posta chega à mesa com arroz de amêndoas e batatas ao murro. Ainda tem o ossobuco com vegetais e polenta cremosa.
Dois pratos são da família dos novos donos. A lasanha de presunto e muçarela é do pai de Carolina, que ensinou a receita da massa e do molho de tomate à base de carne, mais especificamente, maçã de peito. Já a bacalhoada homenageia a avó, dona Ia. O doce de leite em formato de coração que acompanha o cafezinho também vem de uma história familiar. José Augusto vendia na cidade o doce que a avó dele fazia e que ganhou fama em Glaura, distrito de Ouro Preto.
A seção de entradas, com petiscos que seguem o conceito de cozinha clássica, é novidade. Torresmo de rolo e bambá de couve são muito tradicionais na cidade e não poderiam faltar. Vale a pena experimentar o espetinho de quiabo com bacon e a carne de sol curada com mandioca.
Para não ficar só na caipirinha, a mixologista Lysa Freitas desenvolveu drinques com sabores mineiros, entre eles “Goiabinha à mineira”, com cachaça, goiabada, limão e queijo canastra curado.
Para não ficar só na caipirinha, a mixologista Lysa Freitas desenvolveu drinques com sabores mineiros, entre eles “Goiabinha à mineira”, com cachaça, goiabada, limão e queijo canastra curado.
Interessante o raciocínio do chef para criar as sobremesas. Os elementos são os mesmos, mas a forma de servir mudou completamente. Doce de leite com queijo se transformou em cheesecake de doce de leite. Queijo com goiabada virou queijadinha com chantili de goiabada. O abacaxi agora é servido inteiro, caramelizado com açúcar e assado, com sorvete de coco da casa.
O doce de amendoim feito pela cozinheira Leda está no recheio da torta de chocolate, que tem caramelo de amendoim por cima.
O doce de amendoim feito pela cozinheira Leda está no recheio da torta de chocolate, que tem caramelo de amendoim por cima.
Há um ano em Ouro Preto, Jonathan se apaixonou tanto pela cidade que já se considera ouro-pretano e abraçou o projeto de levar a sua cozinha para o mundo. “Quero que ela seja vista também como referência gastronômica. Estou muito empolgado”, revela o chef, que também comanda o bar Jair Boêmio e o Café das Flores. Os sócios vão abrir um restaurante italiano ainda este ano e têm planos de montar pizzaria, padaria e confeitaria.
A nova dona do Casa do Ouvidor completa: “Ouro preto já tem muito potencial em termos cultura e arquitetura e a gastronomia também que ser mostrada para o mundo. Que a nossa iniciativa seja um chamariz para que outras pessoas ajudem a transformar esse lado de Outro Preto”, aposta Carolina.
Menu criativo
Há um ano, o restaurante Chafariz, na charmosa Rua São José, reabriu com novas donas e novo cardápio. Rosa e Eunice Trópia assumiram o negócio aberto pelo pai, Orlando, em 1958. O serviço mudou de bufê self-service para a la carte, a cozinha ganhou equipamentos mais modernos, o horário de funcionamento se estendeu para a noite, mas o ambiente continua intacto e aconchegante.
Ali elas preservam a história de seus antecedentes, que vieram da Itália. Objetos antigos compõem a decoração, como cabine de telefone, fotos de família e a estante de uma farmácia do século passado.
Quem assina o menu é a chef Agnes Farkasvolgyi. Para ela, era uma ótima oportunidade de se aproximar mais da cidade. “Tenho vontade de sair de BH daqui a alguns anos e o meu desejo é me mudar para Ouro Preto. A cidade sempre me agradou, me sinto bem lá”, revela.
Na porta do casarão, lê-se “comida mineira tradicional criativa”, e é exatamente isso o que eles servem. A chef teve o cuidado de manter pratos que fazem parte da história do Chafariz, ao mesmo tempo em que propõe invenções que fogem do óbvio. “Quis criar um vínculo com a história do lugar, com os pratos, com quem ia lá para comer, e pensei em receitas que combinam com a casa”, explica.
O frango ao molho pardo de lá sempre teve fama. Agnes entrou com a receita da sua avó, “que fazia o melhor molho pardo do mundo”. “Faço do mesmo jeito que ela. O segredo está no caldo do frango, que fazemos e é maravilhoso. Tem também o truque de bater com fubá torrado, em vez de farinha de trigo, para engrossar e, claro, o cuidado de não deixar talhar.” Coxa e sobrecoxa são acompanhadas de couve rasgada, polenta frita e arroz branco.
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Lombinho cor-de-rosa
Agnes levou para o cardápio um prato seu dos anos 1990 que tem tudo a ver com o novo momento do Chafariz. “Quando abri o restaurante Bouquet Garni Nouveau, na Savassi, já estava fazendo uma releitura da cozinha mineira, porque atendíamos muitos estrangeiros, e servia o lombinho de porco cor-de-rosa. Tinha que gastar lábia para explicar que era possível comer carne nesse ponto”, conta.
Naquela época, em conversa com o marido, ela teve a ideia de servir o lombinho com molho de laranja e espaguete envolvido por fios de couve. E ele sugeriu acrescentar o torresmo, mais um elemento mineiro. Desde então, a farofa de torresmo finaliza o prato, que tem mais de 30 anos, mas ainda é uma paixão da chef. Quem come também se apaixona.
A maior ousadia do cardápio, sem dúvida, é a moqueca de frango caipira. “A gente pensa em moqueca de mar, nas cidades praianas, acontece que o refogado dela, com cebola, pimentão e tomate, é muito próximo a nós. Isso faz parte da nossa cozinha”, aponta Agnes, que também buscou referências asiáticas, nos curries tailandeses.
Segura de que tudo o que dá certo com camarão funciona com frango, ela usa dendê, coentro e leite de coco na receita. Bom que a polenta cremosa, servida como acompanhamento, pode ter queijo, o que, pelas regras da cozinha, não daria se fosse moqueca de peixe.
Todas as entradas são novas, já que, antes, o restaurante só trabalhava com bufê. Entre elas, rolinhos de taioba com galinha caipira e vinagrete de cachaça, crostini de pão de queijo com cogumelos e tomates confitados e jiló empanado com linguiça acebolada.
O cardápio volta a se descolar do tradicional com o creme brulée de queijo canastra e as coxinhas pretas, que entram como assinatura da chef. Empanadas em pó de carvão vegetal, elas têm recheio de provolone e espinafre. Agnes pega leve nas extravagâncias, porque sabe que o público ainda é mais conservador, mas defende que Ouro Preto precisa de mais cozinhas autorais. Por isso, quando está lá, costuma oferecer algum prato “fora da caixa”.
Apesar de não estar todo dia na cozinha, Agnes fica tranquila por ter duas “crias” na cozinha: o chef Heverton Martins e a subchef Flávia da Silva (que é de Ouro Preto). Os dois trabalharam com ela em BH e hoje ajudam na criação do cardápio, como o pudim de copo com calda de laranja. “A minha ideia é que a equipe vá aos poucos se apropriando do lugar como deles”, diz a chef, que vai uma vez por mês para ajustar processos e testar novos pratos.
Bambá de couve (Casa do Ouvidor)
Ingredientes
1 kg de músculo bovino limpo e cortado em pedaços pequenos; sal, louro em pó e pimenta-do-reino preta a gosto; 1/3 de xícara de chá de azeite; 1 cebola picada; 3 dentes de alho amassados; 1/2 paio cortado em cubinhos; ½ linguiça calabresa defumada cortada em cubinhos; 2,5l de caldo de frango; 3 a 5 colheres de sopa de fubá misturado em 250 ml de água fria; 1 tomate com pele e sem semente; 1 maço de couve-manteiga rasgada grosseiramente
Modo de fazer
Numa tigela, tempere o músculo com sal, louro em pó e pimenta-do-reino. Numa panela de pressão em fogo médio, coloque o azeite e frite a cebola e o alho. Junte o paio, a linguiça calabresa e o músculo temperado. Deixe fritar até dourar. Complete com o caldo de carne. Tampe a panela e deixe cozinhar por 1 hora, depois que pegar pressão. Abra a panela e junte o fubá misturado na água. Misture e mexa sem parar para não encaroçar. Se precisar, adicione mais fubá ou mais água. Acrescente o tomate e cozinhe por mais 5 minutos. Coloque a couve-manteiga e sirva em seguida.
Serviço
Casa do Ouvidor (@casadoouvidor)
Rua Direita, 42, Centro
(31) 99505-7511
Chafariz (@chafarizrestauranteop)
Rua São José, 167, Centro
(31) 98948-9976