Um grande salão. Mesas coletivas. Todos os convidados são servidos ao mesmo tempo. Os festins estão de volta ao Festival Cultura e Gastronomia de Tiradentes como eram antigamente, em um único espaço. Na cozinha, só chefs mulheres. Os quatro jantares especiais desta edição, que começa nesta sexta-feira, são assinados por um time feminino, de Norte a Sul do Brasil, que se junta para homenagear mulheres importantes para a história da cozinha mineira, em especial Nelsa Trombino.
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Restaurantes de Ouro Preto com mais de 50 anos reabrem com novos cardápiosHambúrguer de chef: Thomas Troisgros se inspira em receitas americanasNova cafeteria do Edifício Maletta serve pães, sanduíches e docesNos últimos tempos, os jantares eram realizados dentro dos restaurantes da cidade. Agora ocupam o Espaço Raízes.
Nesta edição, quatro duplas de mulheres, de cinco estados (Minas Gerais, Pará, São Paulo, Paraná e Rio de Janeiro), foram escolhidas para homenagear chefs que abriram caminho para que outras tantas pudessem ganhar espaço nas cozinhas profissionais.
Além de Nelsa Trombino, a fundadora do restaurante Xapuri, que nos deixou em 31 de maio deste ano, o festival destaca Dona Lucinha, já homenageada no Festival do Serro; Maria Stella Libanio Christo, autora do livro “Fogão de lenha”, referência em cozinha mineira, e Pichita Lanna, hoje com 99 anos, que dá nome ao famoso bufê de Belo Horizonte.
“Falam que o trabalho na cozinha é pesado para as mulheres, mas as pessoas se esquecem de que boa parte das referências gastronômicas que temos vem de mulheres, sejam mães, avós, tias ou até mesmo funcionárias domésticas. Então, acho que a história da mulher na cozinha, que começa desde a infância, tem que ser perpetuada”, defende Rodrigo, lembrando que, em 2010, quando ninguém falava sobre isso, o festival fez um evento em homenagem às mulheres. Quatorze anos depois, o tema volta à mesa.
Única mineira
Desde que abriu o restaurante Birosca, há 10 anos, Bruna Martins participa do festival em Tiradentes. Mas considera esta edição a mais especial. Por várias razões. Em primeiro lugar, o destaque de assinar um festim. Segundo, porque os jantares são só com mulheres e o protagonismo feminino está entre as bandeiras que levanta na sua cozinha. E tem mais, ela é a única mineira no time de chefs.
“Fico muito lisonjeada de representar Minas e considero este um momento da minha carreira de grande realização. Sempre estimei estar entre os grandes nomes do festival, com a relevância de ser chef de um festim e estou conquistando esse lugar”, comenta Bruna. Segundo ela, essa importante participação coincide com o momento da carreira em que vem atingindo maturidade e reconhecimento.
Ainda tem mais um motivo para a sua alegria: assinar o menu com Roberta Sudbrack, chef que sempre admirou. “Ela é uma mulher muito forte na cena gastronômica e também vem dessa cozinha de afeto, de resgate, de interpretar o tradicional com um novo olhar”, analisa a mineira, comparando-se com a gaúcha, que já foi cozinheira do Palácio da Alvorada e fez carreira no Rio de Janeiro.
Nessa vinda a Tiradentes, Roberta vai se conectar com as suas mais profundas raízes.
“Fui criada pelos meus avós, que eram mineiros, e cresci passando as férias na casa da minha tia-avó, onde tinha fogão a lenha e a vida se passava na cozinha. Esses momentos nunca me saíram da cabeça”, conta a chef, que se assume apaixonada por Minas Gerais (uma das suas grandes inspirações) e sempre considerou a cozinha mineira a mais brasileira das cozinhas.
Leia mais: Chef Bruna Martins mostra o potencial de peixes de rio em novo menu
“Fui criada pelos meus avós, que eram mineiros, e cresci passando as férias na casa da minha tia-avó, onde tinha fogão a lenha e a vida se passava na cozinha. Esses momentos nunca me saíram da cabeça”, conta a chef, que se assume apaixonada por Minas Gerais (uma das suas grandes inspirações) e sempre considerou a cozinha mineira a mais brasileira das cozinhas.
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O festim começa com “Marinados: mar, terra e quintal”, prato com camarão, palmito fresco e ovo caipira, muito simbólico da trajetória de Roberta e que expressa o olhar universal da sua cozinha. “Apesar de Minas não ter mar, ele se conecta com a cultura mineira quando pisa na terra e no quintal.”
Depois Bruna vem com surubim curado, pamonha, molho de amendoim, iogurte e salada de ervas, que representa seu trabalho de resgate e valorização de peixes de rio com o projeto “Doce Pescaria”. “Quero fomentar a gastronomia mineira com um olhar menos óbvio”, aponta a chef, que espera surpreender os convidados com um peixe do rio São Francisco.
Na sequência, costelinha de porco com angu branco e farinha de banana. Segundo Roberta, é uma homenagem a Minas Gerais.
“Sou uma cozinheira que sempre amou e nunca abandonou os assados à moda antiga. Vamos servir uma costelinha de porco que passa a noite inteira cozinhando nas brasas mornas do forno a lenha”, adianta a chef, que tem um forno de barro ancestral no seu restaurante, Sud, o pássaro verde, no Rio de Janeiro.
“Sou uma cozinheira que sempre amou e nunca abandonou os assados à moda antiga. Vamos servir uma costelinha de porco que passa a noite inteira cozinhando nas brasas mornas do forno a lenha”, adianta a chef, que tem um forno de barro ancestral no seu restaurante, Sud, o pássaro verde, no Rio de Janeiro.
A mineira encerra o jantar com uma invenção pra lá de curiosa: o “Eskibon mineiro”. É um bombom de chocolate branco recheado com sorvete de queijo e cercado por um curau de milho morninho. Exalta os contrastes do quente com gelado e do doce com salgado.
“Essa sobremesa traz um novo olhar sobre essa combinação de milho com queijo, que tem uma relação forte com Minas Gerais. Mostra um jeito sofisticado de servir algo tão popular.” No Birosca, o “Eskibon mineiro” tem formato de espiga de milho. Para o festim em Tiradentes, ele se transforma em minibombons quadrados servidos dentro de uma caixa.
São Paulo com Pará
Um dos festins promove o encontro de São Paulo e Pará, com Mara Salles e Daniela Martins, chefs que representam a cozinha regional brasileira. Daniela segue o legado do pai, Paulo Martins, que ficou conhecido como embaixador da cozinha paraense, enquanto Mara leva para o seu restaurante, Tordesilhas, receitas que garimpa nas profundezas do Brasil.
“A primeira vez em que o pato no tucupi saiu de Belém para São Paulo foi com a Mara, no cardápio do Tordesilhas. Sei o quanto ela respeita a originalidade da cozinha brasileira e fico muito feliz de dividir com ela a cozinha”, diz Daniela, que se animou ainda mais em saber que esse encontro seria em Tiradentes, cidade que ama por ser rica em história, arte, cultura e gastronomia.
Toda vez que dá, mesmo sem ser convidada, ela arruma as malas e corre para o interior de Minas para acompanhar o festival.
Toda vez que dá, mesmo sem ser convidada, ela arruma as malas e corre para o interior de Minas para acompanhar o festival.
Mara enxerga semelhanças entre o seu trabalho e o de Daniela. “Nós fazemos uma cozinha brasileira, embora a cozinha amazônica, especialmente a paraense, seja muito particular. Mas eu trabalho com ingredientes da Amazônia há muitos anos, como peixes, farinhas, jambu e tucupi”, explica. O caranguejo servido atualmente no Tordesilhas é da Ilha de Marajó, no Pará, escolhido pela qualidade.
A paraense abre o festim com o vinagrete de feijão-manteiguinha de Santarém (grãos pequenos e de cor branca) com pirarucu em cubos. Essa salada era um clássico do restaurante Lá em Casa, fundado pela avó de Daniela, Anna Maria (fechado na pandemia), e virou entrada para o festival.
Desde então, a chef se ocupa da empresa de comida congelada É Pra Levar e sua irmã, Joanna, toca a Manioca, que distribui pelo Brasil produtos com sabores amazônicos.
Desde então, a chef se ocupa da empresa de comida congelada É Pra Levar e sua irmã, Joanna, toca a Manioca, que distribui pelo Brasil produtos com sabores amazônicos.
O jantar segue com um mergulho no mar. Mara escolheu combinar o peixe prejereba (da sua região) grelhado com lulas e camarões salteados misturados a um molho rústico e tomate.
Para completar, cuscuz da farinha amazônica uarini. “Sempre trabalhei no sentido de desmistificar a pecha de que a cozinha brasileira é pesada, então tenho muito a preocupação de fazer com que o conjunto do cardápio fique leve e equilibrado, do ponto de vista gustativo e visual.”
Para completar, cuscuz da farinha amazônica uarini. “Sempre trabalhei no sentido de desmistificar a pecha de que a cozinha brasileira é pesada, então tenho muito a preocupação de fazer com que o conjunto do cardápio fique leve e equilibrado, do ponto de vista gustativo e visual.”
Pulamos para a terceira etapa com o ravióli de costela bovina com jambu e molho velouté de tucupi. Além dos sabores, o prato merece destaque por unir o trabalho de três mulheres da família Martins.
O ravióli é produzido pela indústria de massas frescas artesanais da mãe de Daniela, Tânia. Já o jambu e o tucupi são da Manioca, de Joanna. Veio da chef a ideia de usar ingredientes paraenses para criar um molho francês em um prato italiano.
O ravióli é produzido pela indústria de massas frescas artesanais da mãe de Daniela, Tânia. Já o jambu e o tucupi são da Manioca, de Joanna. Veio da chef a ideia de usar ingredientes paraenses para criar um molho francês em um prato italiano.
Por fim, a sobremesa de Mara, que tem no cardápio do Tordesilhas e faz muito sucesso por onde passa (é uma das preferidas da própria chef): creme inglês de pequi com compota de maracujá e suspiros de jatobá.
“Vi uma vez em um restaurante de estrada uma compota de maracujá que achei incrível. Não me contentando, pensei que pudesse ser acompanhada de um creme delicado e me lembrei do pequi, que tem um potencial aromático muito grande, mas raramente é usado em sobremesa”, conta.
“Vi uma vez em um restaurante de estrada uma compota de maracujá que achei incrível. Não me contentando, pensei que pudesse ser acompanhada de um creme delicado e me lembrei do pequi, que tem um potencial aromático muito grande, mas raramente é usado em sobremesa”, conta.
Em busca de crocância, Mara chegou ao suspiro, que ganha sabor com outro ingrediente do cerrado, o jatobá.
Amor por Minas
Em comum, entre as chefs que vão cozinhar nos festins, o amor por Minas Gerais. Para a paranaense Claudia Krauspenhar, a vinda a Tiradentes é uma forma de se aproximar mais de uma cultura que considera fascinante.
“Apesar de não ter ligação com Minas, sempre admirei muito a gastronomia mineira e o jeito dos mineiros de levar a vida. Vejo que vocês têm um conhecimento histórico dos alimentos e não perdem suas raízes”, declara-se.
“Apesar de não ter ligação com Minas, sempre admirei muito a gastronomia mineira e o jeito dos mineiros de levar a vida. Vejo que vocês têm um conhecimento histórico dos alimentos e não perdem suas raízes”, declara-se.
Dito isso, Claudia escolheu receitas que homenageiam o nosso estado. Seu prato, cozido de porco com lentilha e mariscos, é de uma panela só. “Pensei em servir algo que remetesse ao estilo da comida mineira, mas com sabores que uso na minha cozinha. Trabalho muito com frutos do mar, então juntei tudo isso num prato para homenagear vocês”, detalha.
De sobremesa, o inusitado mil folhas de quindim, que ela serve no seu restaurante K.sa, em Curitiba. “Como o meu restaurante funciona à noite, para jantar, dei uma outra roupagem ao quindim para ninguém estranhar e se permitir comer. É um quindim com roupa de festa, metido a besta”, brinca. São camadas de massa folhada, creme de quindim (que segue a receita tradicional) e creme de coco.
A paranaense vai dividir as panelas com a carioca Flávia Quaresma, que traz gateau de fígado de aves e geleia de cebola com laranja e especiarias e rabada com cogumelos, emulsão de agrião e amêndoas e crocante de milho.
“Se não fosse baiana, seria mineira”, brinca Ieda de Matos, ao falar sobre o seu amor por Minas. A chef está prestes a realizar o sonho de conhecer Tiradentes, onde vai cozinhar com Morena Leite.
Nessa estreia, ela apresenta o feijão-tropeiro de cuscuz com carne suína de sol, pirão de queijo (canastra no lugar do coalho), conserva de maxixe e couve, prato que destaca a mistura das cozinhas de Minas, Bahia e do Brasil.
Depois emenda com o bombocado de milho e mandioca, espuma de goiaba e crocante de coco. “Essa receita originalmente é feita com farinha de trigo, mas vou usar fubá de milho crioulo e agregar a farinha de mandioca”, explica a chef do restaurante Casa de Ieda, em São Paulo.
Já Morena traz o canudinho de beterraba com queijos mineiros e o camarão com rendas de mandioquinha e caruru.Depois emenda com o bombocado de milho e mandioca, espuma de goiaba e crocante de coco. “Essa receita originalmente é feita com farinha de trigo, mas vou usar fubá de milho crioulo e agregar a farinha de mandioca”, explica a chef do restaurante Casa de Ieda, em São Paulo.
Pelas ruas da cidade
Além dos festins, as atividades nas ruas da cidade são intensas, distribuídas entre a Praça da Rodoviária, o Santíssimo Resort e o Largo das Forras. Na programação, venda de pratos, aulas, cozinha ao vivo e a Mercearia Fartura, com produtores locais. Ampliado, o Espaço Brasa e Lenha terá uma grande mesa, bancos e o anfitrião Flávio Trombino, do Xapuri. Outra forma de homenagear sua mãe, dona Nelsa.
Destaque também para a presença de chefs internacionais. Os franceses Thierry Desceliers e Jacques Collet participarão, juntos, de duas aulas no dia 27: “Desvendando a cozinha francesa” e “Auguste Escoffier e sua importância para a gastronomia francesa”.
Vinagrete de feijão de Santarém com pirarucu frito (Daniela Martins)
Ingredientes
250g de feijão-manteiguinha de Santarém; 1/2 cebola; 100g de bacon picado; 1 dente de alho picado; 1 colher de sopa de coentro (cheiro verde) picado; 1 colher sopa de chicória do Pará (coentrão) picado; 1 colher de chá de pimenta verde picada; sal a gosto; 1 cebola picada; 1 tomate picado; 1 pimenta verde picada; 2 colheres de sopa de coentro (cheiro verde) picado; 2 colheres de sopa de chicória do Pará (coentrão) picado; 3 colheres de sopa de vinagre de vinho; 200ml de água; 100ml de azeite extravirgem; sal e pimenta-do-reino branca a gosto; 300g de pirarucu dessalgado; 200g de farinha de trigo; 1 litro de óleo
Modo de fazer
Cate o feijão e deixe de molho por pelo menos 2 horas. Em uma panela, coloque o bacon para dourar. Quando estiver bem dourado, grudando no fundo panela, acrescente a cebola e o alho. Deixe refogar e junte o feijão com o restante do tempero. Acrescente água, coloque o sal e deixe cozinhar até o ponto ao dente do grão. Escorra e reserve. Em uma vasilha, misture todos os ingredientes do vinagrete. Prove o sal e junte ao feijão que já está cozido. Misture bem. Corte o pirarucu em cubos bem pequenos e passe na farinha de trigo. Peneire bem para que saia todo o excesso de trigo. Em uma panela, aqueça bem o óleo e vá fritando o pirarucu aos poucos. Ele tem que ficar bem frito para ficar crocante. Misture o pirarucu frito com o vinagrete de feijão apenas na hora de servir para que não perca a crocância. Decore o prato com brotos de coentro.
Agenda dos festins
18/08 (sexta): Mara Salles (SP) e Daniela Martins (PA)
19/08 (sábado): Morena Leite (SP) e Ieda de Matos (SP)
25/08(sexta): Flávia Quaresma (RJ) e Claudia Krauspenhar (PR)
26/08 (sábado): Roberta Sudbrack (RJ) e Bruna Martins (MG)
Os jantares serão sempre às 20h30, pontualmente, e terão menus harmonizados com vinho e cerveja. Para informações e reservas, acesse o site do Fartura