Nada foi combinado. Uma chegou primeiro, a outra veio logo depois e, de repente, elas se viram muito próximas. Tanto do ponto de vista geográfico quanto pela vontade de levar propostas diferentes para o Santo Antônio. A gastronomia de lá se renova com iniciativas encabeçadas por mulheres. Coincidentemente, todas ocupam casas. O grupo aposta nessa união não planejada para atrair público para o bairro, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte.
Há três anos, o bufê ocupa uma casa na Rua Paulo Afonso, onde funciona, durante o dia, um restaurante nada convencional. Lá não tem placa nem garçom. Você tem que tocar a campainha para ser recebido e servido por Agnes, a filha Camilla ou a mãe Lelete. “Queria que as pessoas tivessem a sensação de que estão entrando na minha casa, não é à toa que se chama A Casa da Agnes. Muitas acham que moro aqui”, comenta.
O lugar se conecta muito com o momento da carreira de Agnes. Aos 60 anos, ela diz estar muito mais à vontade para ser e fazer o que quiser. “A vinda para essa casa marca um momento muito agradável. Estou mais inteira, sou mais eu. A minha identidade está muito forte em tudo o que estou fazendo e isso não me incomoda mais. Posso fazer o que bem entendo, não tenho mais que seguir regras e padrões. Tenho trabalhado com muito prazer.”
Isso, claro, se reflete na cozinha. Por agora, seu desejo é resgatar fragmentos de memória. “É como se estivesse fazendo uma leitura de mim mesma, do que já fiz e pensei, mas com uma coragem muito maior do que há 20 anos. Não tenho medo de errar.” Entre as receitas que exemplificam o que ela fala, está a língua de boi, que sempre amou, mas nunca tinha se arriscado a servir regularmente.
Uma forma de entender a cozinha de Agnes é pedir o menu degustação. Essa opção não está no cardápio, mas, como é ela mesma quem atende e cozinha, costuma sugerir a sequência de oito pratos.
Se você for lá hoje, vai comer três petiscos que migraram do bufê para o restaurante: dadinho de tapioca com sagu de jabuticaba e shot de tucupi, coxinha preta com provolone e espinafre e camarão empanado em massa harumaki com molho agridoce. O almoço se desenrola com pera ao vinho, gorgonzola e nozes; ravióli de figo com queijo de cabra, manteiga e sálvia; moqueca de frango e portafoglio de filé com queijo brie. Por fim, mousse de chocolate com raspas de laranja.
Agnes usa no couvert a mini ciabatta de Luiza Longarai, da padaria artesanal Madame du Blé. Também já fez um chá inspirado em “Alice no país das maravilhas” com Marina Mendes, da confeitaria Sá Marina. E tem se aproximado cada vez mais de suas vizinhas. “Sempre achei muito antipática a rivalidade de cozinheiros, chefs e donos de bufês. A gente tem que pensar no coletivo e se ajudar.”Clientes à vontade
Juliana Duarte já conhecia Agnes. Fez aulas de cozinha com ela por 10 anos. Mas não passou de coincidência a abertura do restaurante Cozinha Santo Antônio dias depois de A Casa da Agnes ser inaugurado, pouco antes da pandemia. Assim como a professora, ela tem uma relação antiga com o bairro. Estudou história na Fafich, que ficava na Rua Carangola, e passou a maior parte da vida de casada no bairro, onde já teve um escritório de pesquisa em história.
Por muito tempo, a chef ficou “namorando” o ponto, muito próximo da sua casa, onde existiu o Salsa Parrilla, conhecido como bar da Taninha. Para a geração de Juliana, foi um lugar icônico, ponto de encontro dos amigos.
Quando viu a placa de aluga-se, sentiu o impulso que faltava para migrar da história para a gastronomia e abrir o restaurante. “Já tinha olhado outros lugares, mas queria que fosse no Santo Antônio. Tenho muito carinho pelo bairro, acho aqui muito especial e tem história com a gastronomia.”
Quando viu a placa de aluga-se, sentiu o impulso que faltava para migrar da história para a gastronomia e abrir o restaurante. “Já tinha olhado outros lugares, mas queria que fosse no Santo Antônio. Tenho muito carinho pelo bairro, acho aqui muito especial e tem história com a gastronomia.”
A casa se encaixava muito bem no projeto de Juliana. “Sempre pensei em um lugar aconchegante, para se sentir à vontade, que não precisasse se arrumar para ir. Como se fosse a nossa casa. E é muito legal ver como esse conceito reverbera nas pessoas. Muitas falam que se sentem à vontade aqui”, conta a chef, que quis levar o Santo Antônio para o nome da sua cozinha. Diz que ali é um restaurante do bairro, pensado para que toda a comunidade se sinta parte daquele pedaço. Uma imagem do santo vigia a porta.
Aberto para o almoço (apenas às quintas funciona de noite), o restaurante levou vida para uma esquina que estava esquecida, onde se cruzam as ruas Santo Antônio do Monte e São Domingos do Prata. Mais que isso, já se tornou referência para se localizar no bairro. Além das mesas na calçada, o plano é instalar uma varanda urbana.
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“Aqui já foi ponto de muitos bares e esse movimento está sendo retomado, mas de um jeito diferente. Não são lugares de agitação noturna, mas com uma proposta especial. É muito importante recuperarmos o sentimento de pertencimento e a alegria de estar no Santo Antônio.”
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“Aqui já foi ponto de muitos bares e esse movimento está sendo retomado, mas de um jeito diferente. Não são lugares de agitação noturna, mas com uma proposta especial. É muito importante recuperarmos o sentimento de pertencimento e a alegria de estar no Santo Antônio.”
Lá é um lugar para tomar caipirinha e comer torresmo ou então experimentar o famoso patê de campagne. O cardápio mistura tradição e vanguarda, assim como o bairro, na visão de Juliana. “Embora tenha uma aura de interior, o Santo Antônio sempre foi um lugar que abriu a minha cabeça para o mundo. Por causa da Fafich, era um ambiente muito fértil na década de 1980, de muita liberdade, efervescência cultural e discussões intelectuais”, relembra.
Como historiadora, ele não poderia dar as costas para o passado. Serve com bife de chorizo a farofa de torresmo do Via Cristina, que tanto amava. O único homem que trabalha na cozinha veio lá do extinto bar. Por outro lado, está sempre olhando para frente, rompendo com o esperado, o que justifica a ideia de regar a costelinha com um molho intenso de chocolate e laranja. Também é inesperada a mistura de bacalhau com feijão, abóbora e angu.
Um ano antes, chegava ao Santo Antônio a Madame du Blé, padaria artesanal comandada por Luiza Longarai. Moradora do bairro desde 2015, ela tomou a decisão de sair do emprego em uma multinacional para abrir um negócio, e tinha que ser perto de casa. Luiza não aguentava mais dirigir 40 quilômetros para ir ao trabalho. Hoje ela caminha poucos quarteirões.
“Me sinto muito acolhida aqui. Acho legal ainda ter carros de som vendendo frutas e ovos, é coisa de interior. Além disso, é um bairro que me permite andar a pé, não preciso de carro”, comenta.
Da Rua Conselheiro Quintiliano Silva, a padaria se mudou para uma casa na Rua Sagarana. O cliente toca a campainha, passa pelo jardim da entrada e se depara com o balcão onde ficam os pães de fermentação natural, prontos para retirada. Os croissants estão sempre no topo da lista dos mais desejados.
A partir deste mês, o espaço também vai funcionar com uma cafeteria de autosserviço, com apenas duas mesas. A proposta é se sentar para tomar um café espresso com itens da vitrine.
A partir deste mês, o espaço também vai funcionar com uma cafeteria de autosserviço, com apenas duas mesas. A proposta é se sentar para tomar um café espresso com itens da vitrine.
“O público que mora no bairro sentia falta de uma padaria que não fosse convencional. Até onde sei, fui a primeira a trabalhar com pães especiais”, aponta.
Receber em casa
Entre as mulheres que encabeçam o novo movimento gastronômico do Santo Antônio, há quem more e trabalhe na mesma casa. Uma delas é Maria Luiza Alves, da cafeteria e confeitaria Caixa Afeto, que serve café da manhã aos fins de semana.
“Precisava de uma cozinha de produção e estava procurando especificamente no bairro, por conta de todo mundo falar da sua história e de ser um lugar especial. O Santo Antônio tem ar de interior, mesmo com muitos prédios, e uma rede de vizinhos maravilhosa. Com isso, fui construindo laços”, destaca.
“Precisava de uma cozinha de produção e estava procurando especificamente no bairro, por conta de todo mundo falar da sua história e de ser um lugar especial. O Santo Antônio tem ar de interior, mesmo com muitos prédios, e uma rede de vizinhos maravilhosa. Com isso, fui construindo laços”, destaca.
Há um ano, a Caixa Afeto abriu suas portas para o público. Ao atravessar um corredor, você chega ao quintal a céu aberto (lá não funciona em época de chuva) e se senta entre goiabeiras (plantadas pelo antigo dono da casa), pé de amora, pitanga e um jardim com muito verde. Lá tem uma vista de tirar o fôlego da cidade, emoldurada pela Serra do Curral.
“O meu avô tem 94 anos e é do interior. Quando ele veio aqui, olhou pra mim e disse: 'ô, minha filha, nem parece BH', porque está acostumado com o caos. Aqui tem uma paz e uma tranquilidade que não encontramos em qualquer lugar.”
“O meu avô tem 94 anos e é do interior. Quando ele veio aqui, olhou pra mim e disse: 'ô, minha filha, nem parece BH', porque está acostumado com o caos. Aqui tem uma paz e uma tranquilidade que não encontramos em qualquer lugar.”
Maria Luiza fala, com muito orgulho, que 95% dos itens do cardápio são de produção própria, inclusive o cappuccino. “Amo cappuccino, mas todos que tomava na rua não me agradavam, então fui fazendo a mistura até acertar a medida”, conta. Eles dissolvem em leite quente a mistura de café, açúcar mascavo, leite em pó e cacau e batem no mixer para que a bebida fique coberta por espuma.
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Não deixe de comer o pão de queijo (receita que veio de Guanhães), vendido em porção com cinco unidades ou individual recheado com pernil e requeijão de raspa. Finalize seu café da manhã com os biscoitos amanteigados, que são campeões de venda (muitos comem lá e levam para casa). Maria Luiza desenvolveu a própria receita e criou os sabores de chocolate, limão, goiabada e chocolate ruby com pistache, todos são glaçados no chocolate. Devido à alta procura, tem fornada toda semana.Leia mais: Antiga confeitaria italiana abre segunda loja na Praça da Liberdade
A Casa do Morro
Marina Mendes voltou da França querendo muito morar em casa. Passando de carro pela Rua Santo Antônio do Monte, ela viu uma placa de “vende-se” numa de esquina e se apaixonou. Lembrava muito os vilarejos franceses. “Quanto mais andava pelo bairro, mais ficava encantada. Comecei a ver que o Santo Antônio tinha muita vida, pulsava”, comenta a confeiteira, que deu ao lugar o nome de Casa do Morro, justamente por estar em um quarteirão inclinado.
Além de ser moradia, a casa abriga o ateliê Sá Marina, que mistura Brasil e França com uma “pâtisserie tupiniquim”. A cozinha foi montada em um cômodo ao lado, com entrada independente.
“Abro a janela e vejo muitas árvores e o céu, os passarinhos cantam todos os dias. É muito interessante porque estamos no meio da cidade, mas aqui tem uma atmosfera diferente. Ainda ouvimos de brinde aulas de música ao lado, de violino a flauta. Temos uma trilha sonora particular”, brinca Marina.
“Abro a janela e vejo muitas árvores e o céu, os passarinhos cantam todos os dias. É muito interessante porque estamos no meio da cidade, mas aqui tem uma atmosfera diferente. Ainda ouvimos de brinde aulas de música ao lado, de violino a flauta. Temos uma trilha sonora particular”, brinca Marina.
Por enquanto, o ateliê funciona apenas para retirada de encomendas. Em breve, a confeiteira vai abrir a casa para a primeira noite de experiências com criações exclusivas (a ideia é usar produtos que trouxe de viagem recente à Bahia). Futuramente, ela pensa em abrir uma loja com porta para a Rua Cristina, onde as pessoas vão poder se sentar para comer uma “bijoux”, como ela se refere aos doces (significa joia em francês) e tomar um café.
Para quem ainda não conhece o seu trabalho, ela sugere começar pela torta de cupuaçu. “Ela é uma das pâtisseries mais simples, mas tem a minha alma. A construção é totalmente francesa, com rigor no preparo, mas tem um sabor brasileiro. É a minha menina dos olhos”, justifica.
Depois, a novíssima paris-brest de caipirinha, com massa choux, creme de avelã, geleia de caipirinha, curd de limão tahiti, bolo embebido em caipirinha, chantili de limão e glaçagem com chocolate branco e amêndoas.
Depois, a novíssima paris-brest de caipirinha, com massa choux, creme de avelã, geleia de caipirinha, curd de limão tahiti, bolo embebido em caipirinha, chantili de limão e glaçagem com chocolate branco e amêndoas.
Serviço
A Casa da Agnes (@acasadaagnes)
Rua Paulo Afonso, 833
(31)98738-7066
Cozinha Santo Antônio (@cozinha_santoantonio)
Rua São Domingos do Prata, 453
(31) 98218-6427
Madame du Blé (@madame.du.ble)
Rua Sagarana, 33
(31) 99909-7555
Caixa Afeto (@caixa.afeto)
Rua Santo Antônio do Monte, 495
(31) 99489-0147
Sá Marina (@samarina.br)
Rua Santo Antônio do Monte, 466
(31) 98430-6874
Farofa de torresmo (Cozinha Santo Antônio)
Ingredientes
1k de barriga de porco; 30ml de cachaça; banha para fritar; sal a gosto; 250g de farinha de mandioca amarela e fininha; manteiga sem dó nem piedade; sal a gosto
Modo de fazer
Corte a barriga em cubos de 2cmx2cm. Tempere com sal, alho e pimenta. Jogue a cachaça na pele. Deixe dormir em uma travessa aberta na geladeira com a pele para cima. Aqueça a banha e frite por imersão os pedaços de barriga até pururucar. Aqueça a manteiga e envolva bem a farinha de mandioca. Corte miudinho os torresmos. Adicione à farofa na hora de servir.