Jornal Estado de Minas

PRODUÇÃO CONSCIENTE

Bean to bar: cinco marcas mineiras que transformam cacau em chocolate

Há sete anos, chegava a Minas Gerais um movimento que revolucionaria o mercado de chocolates. Por motivos diversos, três marcas bean to bar surgiam simultaneamente por aqui. Ao pé da letra, o conceito significa controlar todo o processo de fabricação, do grão de cacau à barra de chocolate, passando pela torra e mistura de ingredientes. Para o consumidor, o ganho está em comer um chocolate puro, sem aditivos químicos, que realça as características naturais do fruto do cacaueiro.





Uma estilista e um engenheiro. Tânia e Evandro Odlevak começaram a produzir chocolate por causa do filho Gael, que é autista. Era o único doce que ele gostava. Para que fosse o mais puro possível, seguiram o caminho do grão à barra.

“Em 2016, meu marido foi estudar chocolate. Na época, já havia começado o movimento bean to bar nos Estados Unidos, mas no Brasil ainda era muito pequeno e escondido. Ele importou livros e o moinho e até o Gael aprovar foi um ano”, ela conta.

O casal não pensava em vender, só queria agradar o filho. Mas quem provou o chocolate pediu para comprar e assim começou a história da Odle, que fica em Sete Lagoas, na Região Central do estado. Tânia dividia seu tempo entre a produção de chocolate e a criação de roupas para noivas e festas. Até que, na pandemia, ela tomou coragem de transformar o ateliê em uma fábrica de chocolates.



Os bombons que preenchem a vitrine da loja da Ambar, no Bairro Funcionários, têm cores e sabores variados (foto: Fernanda Abdo/Divulgação)
Quando se assumiu chocolate maker, Tânia entendeu que era a hora de ampliar as fronteiras e inscreveu a Odle em premiações internacionais. Já de primeira, no ano passado, ganhou ouro no concurso da Academy of Chocolat, em Londres, com o chocolate 45% cacau maltado (com extrato de malte de cerveja).

“Ao leite todo mundo faz, então tive a ideia de colocar malte. Gosto muito de testar vários sabores e fórmulas”, destaca a fundadora da marca, que já soma 57 variedades.

O chocolate 60% cacau com cachaça envelhecida em amburana e jequitibá rosa também ganhou ouro, só que no The Northwest Chocolate Festival, em Seattle (EUA).

“Desafiamos as leis da engenharia de alimentos, porque água e cacau não se misturam. Colocamos nibs de cacau em infusão na cachaça. O segredo está no tempo de infusão e como revolvemos os nibs nesse tempo”, aponta. O álcool evapora e o que permanece no tablete é o sabor amadeirado.



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Com a Odle, Minas faturou cinco medalhas no International Chocolate Awards, etapa Américas, em Nova York (EUA). O chocolate branco com maracujá e a pipoca caramelizada coberta com chocolate ao leite ficaram com o ouro, enquanto o chocolate branco caramelizado, o branco com abacaxi e coco e o de cachaça levaram prata. A fábrica mineira agora pode se inscrever para a final do concurso, um dos mais importantes do mundo, na Itália.

Para fazer o chocolate Mineirinho, a Java combina três ingredientes do nosso estado: cacau, café e açúcar demerara orgânico (foto: Thobias Almeida/Divulgação)
Tânia e Evandro trabalham com fornecedores de cacau do Pará e da Bahia. “Falamos que os produtores são os protagonistas. Se eles não cuidarem do cacau, não vamos ter um bom chocolate. Como não usamos aditivos, o terroir é muito importante”, ela aponta, acrescentando que as embalagens da linha 70% exibem o nome e a localização dos produtores.

A qualidade do chocolate já começa a ser construída nos processos de fermentação e secagem, que se passam no campo. Do lado de cá, o desafio do chocolateiro é selecionar as amêndoas e planejar uma torra que realce suas características, assim como se faz com o café.



Na sequência, os nibs são separados das cascas e viram uma massa de cacau, que vão para os moinhos de pedra. Tânia diz que ali onde acontece toda a alquimia para a transformação em chocolate (com a adição de outros ingredientes).

O que a Odle quer é entregar uma experiência que mexe com todos os sentidos. Acompanhando o processo do início ao fim, eles garantem que o chocolate seja verdadeiramente puro. “É um processo contínuo de educação para que as pessoas entendam o valor do que você está oferecendo. Ainda não dá para viver de chocolate, mas continuamos a trabalhar porque acreditamos muito no que fazemos.”

Pesquisas do zero

Nessa mesma época, Aline Palmiro e André Chaves também se aventuravam pelo mundo desconhecido do chocolate bean to bar. As histórias são até parecidas. O casal vem da área da computação (trabalhava na Bolsa de Valores de São Paulo) e viu a vida mudar quando ela descobriu que não podia consumir glúten nem leite.



O chocolate ao leite bean to bar da Odle envolve camadas de caramelo toffee, waffle artesanal e ganache de rum (foto: Jean Carlos/Divulgação)
“Sempre gostei muito de chocolate e, de uma hora para outra, tive que parar de comer. Os de alérgicos eram à base de soja e todos muito ruins, então decidi estudar para fazer o meu próprio chocolate”, conta Aline.

As pesquisas começaram do zero. Aline fez buscas na internet, comprou livros norte-americanos, matriculou-se em um curso em Campinas de produção industrial e foi aprendendo sozinha o processo artesanal de transformar cacau em chocolate.

Segundo ela, André era “o Indiana Jones do cacau”, percorria feiras e viajava o Brasil em busca dos melhores fornecedores. Em um fórum on-line dos Estados Unidos, eles aprenderam a fabricar equipamentos caseiros e deram início à Java Chocolates.



“A cultura de cultivar cacau de alta qualidade estava avançada, mas a parte de maquinário era muito incipiente. Foi o mais difícil. O meu sogro é mecânico e nos ajudou a construir as nossas próprias máquinas, descascador, torrador e moinho. Adaptamos ideias do café, que tem semelhanças, mas muitas diferenças também”, comenta Aline.

No Brasil, eles só conheciam uma marca no Rio de Janeiro e outra em São Paulo que seguiam o mesmo caminho.

Criada por três irmãs, a Cacau Dourado transforma seu chocolate bean to bar em produtos como as lascas com praliné de amendoim e caramelo salgado (foto: Cacau Dourado/Divulgação)
A escolha não era nada fácil, mas não havia outra forma de fazer chocolate de qualidade para quem, como ela, tinha restrições alimentares. Depois Aline enxergou que o ganho seria para todos os consumidores.

“Sempre valorizei o alimento mais próximo do original. A minha mãe foi criada em roça e lá em casa não se tomava suco nem sopa de saquinho, cresci com essa cultura. E chocolate de gôndola é um alimento bastante processado. Quando descobri que só precisava de cacau, açúcar e manteiga, fiquei muito encantada com a possibilidade de ter um chocolate puro”, ela relembra.



Com o processo de fabricação bean to bar, além de eliminar aditivos químicos, os fabricantes extraem o máximo de notas que o cacau consegue entregar, realçando a sua origem. Hoje a Java trabalha com cacau do Pará, Bahia e Minas Gerais.

Para fazer o chocolate Mineirinho, eles usam apenas ingredientes mineiros: grãos dos arredores de Governador Valadares, que tem sabor mais cítrico, café de Carmo da Cachoeira e açúcar demerara orgânico de Pouso Alegre. O Intenso (70% cacau) apresenta as notas acastanhadas do cacau paraense e o Brut (100% cacau) realça a acidez do fruto baiano.

Na visão de Aline, o aumento da demanda é uma questão de tempo. “Hoje em dia, está bem mais fácil explicar o conceito, mas temos um caminho longo para que o nosso produto seja reconhecido como os cafés e as cervejas especiais. Sei que quem consome vira fã, mas ainda estamos no começo, o movimento não tem nem 10 anos a nível global”, ela analisa, acrescentando que, dificilmente, esses produtos serão acessíveis a todos, já que o cacau fino é escasso e tem um custo mais elevado.




Paixão pelo cacau

A Kalapa também surgiu na primeira onda dos chocolates mineiros bean to bar. Ideia da bióloga (e chocólatra) Luíza Santiago. “Pela biologia, sabia que o cacau era uma planta amazônica e comecei a me questionar: por que não tem ninguém fazendo chocolate com cacau do Brasil? Não conhecia o termo bean to bar e nem tinha pretensão de fabricar chocolate, muito menos abrir uma empresa. Simplesmente estava encantada com a história do cacau”, conta.

As misturas são o diferencial da Kalapa, que tem na sua linha fixa o chocolate branco ao leite de gergelim com nibs de cupuaçu (foto: Cacau Mídia/Divulgação)
Em dezembro de 2016, recém-formada em biologia, ela foi fazer um curso de chocolate bean to bar em São Paulo (entrou na segunda turma do Brasil). Ficou tão apaixonada que, um mês depois, já estava na Bahia visitando fazendas e voltou para Minas com seis quilos de cacau na mochila. Conseguiu que uma pessoa trouxesse um moinho de pedra (próprio para temperos indianos) dos Estados Unidos, fez o primeiro chocolate e desistiu de vez da carreira acadêmica.

Luíza produzia tudo em casa, no antigo quarto de estudos, só de madrugada, porque não tinha ar-condicionado. Usava secador de cabelo e lençol para separar os nibs das cascas, até que conseguiu fazer o seu próprio separador em uma oficina compartilhada. “Foi revolucionário”, diz. Hoje já existem máquinas específicas para chocolate fabricadas no Brasil.



Se antes os obstáculos eram os equipamentos, hoje a fundadora da Kalapa enxerga como desafio o fornecimento de cacau. “O movimento do chocolate bean to bar é excelente para o consumidor, mas seu principal impacto é no campo, muda a forma de se cultivar e vender cacau. Só que o campo não acompanhou a velocidade do mercado e hoje não temos oferta de cacau de qualidade para atender a demanda. Estamos entrando nesse gargalo de fornecimento”, alerta.

Ela, particularmente, não sofre com isso porque construiu uma parceria sólida, que já dura cinco anos, com as famílias do assentamento Dois Riachões, em Ibirapitanga (BA).

Luíza conhece pessoalmente os produtores, acompanha de perto todas as safras, compra direto deles (sem atravessadores) e paga um valor acima do mercado. Em contrapartida, os fornecedores dão prioridade aos seus pedidos. Mas marcas novas acabam ficando na mão, porque vale a lei do “quem paga mais leva”.

O desenho das barras da Ambar ilustra o processo que vai da flor do cacau ao produto final (foto: Fernanda Abdo/Divulgação)
Outro pilar importante para Luíza no bean to bar, além da rastreabilidade do cacau, saber de onde vem e quem produz, é a forma inovadora de se fazer chocolate, que consegue transmitir toda a riqueza do fruto in natura, valorizando sua origem. No seu caso, o cacau tem uma acidez “brilhante”. Na outra ponta, ela observa, os brasileiros estão aprendendo a consumir chocolates mais intensos, que não sejam padronizados e a valorizar o cacau nacional.



“Quando você consome um chocolate puro, vai sentir, não só prazer, mas também atentar para a forma como se relaciona com o que come. Muda a safra, muda o chocolate e isso reflete na relação com os outros alimentos, se estende para toda a cadeia de consumo.” É um caminho sem volta, garante Luíza.

Para conhecer o trabalho da Kalapa, comece pelo clássico 70% cacau, que já ganhou dois prêmios: medalha de prata no Prêmio Bean to Bar Brasil 2020 e segundo lugar CNA Brasil Artesanal 2021.

Depois, entregue-se às misturas, que são o ouro da marca, como flor de sal e limão. Tem também o Cremístiko, creme de chocolate com tahine. “Quando falamos em bean to bar, ficamos muito presos à ideia de barra, mas podemos consumir o chocolate de outras formas e termos outras experiências.”

Conexão com a natureza

Na Bahia, em visita a uma fazenda de cacau, Helena Avelar foi andando mata adentro e sentindo uma emoção inexplicável. O contato com as plantas, a umidade e os animais mexeu com ela a ponto de chorar.



Chocolate 70% cacau recheado com caramelo cremoso da Java (foto: Thobias Almeida/Divulgação)
“O que me prende no bean to bar é a conexão com o processo inteiro e a possibilidade de oferecer uma experiência completa. Por mais que as pessoas não vejam, fazemos questão de transportá-las para a mata de cacau, entregando um fruto tão maravilhoso e potente”, diz uma das sócias da Ambar.

Helena já trabalhava com chocolate, mas como confeiteira, fazendo bolos e doces para festas. Quando fazia estágio na cozinha da chocolatier Renata Penido, ela conheceu em São Paulo um chocolate bean to bar e teve vontade de se especializar nisso. Viajou para a Bahia e Amazônia, conversou com muitas pessoas, estruturou um plano de negócios e convidou Renata para ser sua sócia.

Por coincidência, a chocolatier tinha comprado uma saca de cacau com planos de fabricar o próprio chocolate.

Em 2019, elas abriram a Ambar com a ideia de que seria só uma fábrica. Aí veio a pandemia, a necessidade de abrir uma loja e o negócio se transformou. “Juntamos os dois lados. Além de termos produtos bonitos e artísticos, fazemos o nosso próprio chocolate. Esse é o nosso diferencial”, aponta Helena, que desenvolve as receitas dos chocolates. Renata fica com a parte criativa.



O cacau da Bahia é usado em quatro barras com intensidades diferentes: 42% com cumaru; 55% (que ganhou medalha de bronze no prêmio da Academy of Chocolat, em Londres, no ano passado); 70% e blend de 70% e 42% com coco caramelizado.

O desenho da forma conta a história do processo do chocolate: a flor se transforma em cacau que se transforma em chocolate. As estampas das embalagens, premiadas pela Associação Brasileira de Embalagem (Abre), homenageiam biomas brasileiros.

Com esses chocolates, Helena e Renata criam os outros produtos da Ambar. Entre os mais vendidos, estão as placas de chocolate pintadas a mão, como se fossem pedras naturais, e os bombons com cores e sabores variados.

Cacaueiro no sítio

As irmãs Maísa, Marcília e Mariza cresceram em um sítio em Dionísio, no Vale do Rio Doce, onde existia um pé de cacau. Ainda na infância, elas tentaram transformar o curioso fruto em chocolate, mas não deu certo. O projeto ficou de lado até 2019, quando Maísa, geógrafa de formação, encontrou o cacaueiro da casa dos pais carregado. Colheu todos os frutos e retomou a ideia. Deu errado de novo.



As amêndoas de cacau torradas e cobertas com chocolate ao leite são uma das opções de drageados da Cacau Dourado (foto: Cacau Dourado/Divulgação)
“Ela não fez uma das etapas importantes, que é fermentação, e ali viu que precisava estudar pra entender onde tinha errado. Começou a fazer cursos, comprou os primeiros moinhos, fez testes e nos convidou para entrar no projeto da Cacau Dourado”, conta a irmã Marcília, que é advogada e cuida do comercial e da comunicação. Mariza, também advogada, faz o administrativo.

O nome Cacau Dourado remete à variedade do fruto existente na casa dos pais. Quando amadurece, fica com um tom amarelo dourado. O pé de cacau continua lá, mas só para contar história. A empresa cresceu e passou a usar amêndoas vindas dos Espírito Santo, Bahia e Pará.

“Nós nos apaixonamos pelo bean to bar pela possibilidade de trabalhar com ingredientes de verdade, que não fazem mal para a saúde e com menos adição de açúcar. As pessoas que nos procuram já valorizam, sim, o produto artesanal, que usa cacau de qualidade e traz benefícios para a saúde, e não pechincham preço. Mas ainda é um público pequeno”, observa Marcília.



O carro-chefe da marca é a linha low carb zero açúcar (com adoçantes naturais e leite de coco). Os que têm mais saída são os brancos de pistache; maracujá com framboesa e uva com hibisco e o intenso de laranja com flor de sal. As irmãs também destacam os drageados (de macadâmia, tâmara, cacau, amêndoa e café) e os cremes de castanha de caju e de amendoim.

Cacau mineiro

O movimento bean to bar acabou jogando luz sobre o cacau cultivado em Minas Gerais. Desde 2019, a Java utiliza grãos de uma fazenda nos arredores de Governador Valadares. Aline Palmiro conta que a primeira remessa não estava com a qualidade desejada, mas a fábrica ajudou o produtor a chegar ao padrão de cacau fino, compartilhando o conhecimento adquirido ao longo de sete anos. Toda a produção, ainda pequena, é destinada para a Java.

Trufa de uísque (Ambar)

Ingredientes
70g de uísque; 30g de glucose de milho; 40g de manteiga sem sal; 225g de chocolate ao leite; 9g de manteiga de cacau; cacau em pó a gosto

Modo de fazer
Aqueça o uísque, a glucose de milho e a manteiga sem sal na panela até atingir 50 graus. Verta a mistura sobre o chocolate e a manteiga de cacau e misture rapidamente com uma espátula ou colher até ficar homogêneo. Espere a massa estabilizar, enrole as bolinhas e passe no cacau em pó.



Serviço

Odle (@odlechocolate)
Rua Benjamin Marques Ferreira, 116, Canaã – Sete Lagoas
(31) 3772-4679

Java (@javachocolates)
(31) 97326-7809

Kalapa (@kalapachocolate)
(31) 97103-4585

Ambar (@ambarchocolate)
Rua Bernardo Guimarães 229 – loja 2, Funcionários
(31) 98302-9549

Cacau Dourado (@cacaudouradochocolate)
(31) 99347-3270