Mais conhecida como Lei Maria da Penha, a Lei 11.340 de 2006, completa 15 anos neste sábado, 07 de agosto. Especialistas ouvidas pelo Estado de Minas destacam a importância da lei no combate à violência contra as mulheres e apontam os desafios para a implementação do que está previsto no papel e de ações complementares, essenciais para encerrar os ciclos de agressões de gênero. Considerada pela ONU como uma das mais avançadas legislações sobre violência contra a mulher do mundo, a Lei é um marco na luta pelos direitos das mulheres.
Desde 2006, os atos contra a saúde física e mental deixaram de ser tratados como de menor potencial ofensivo e passaram a ser tratados como uma violação dos direitos humanos. A lei também desencadeou a elaboração de políticas públicas de defesa dos direitos das mulheres, uma das mais importantes em vigor no Brasil.
Segundo Marlise Matos, professora do Departamento de Ciências Políticas da UFMG e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (Nepem) "A Lei Maria da Penha veio para normatizar e para responsabilizar os homens agressores, e uma das conquistas é, portanto, o reconhecimento público da violência contra as mulheres como um problema político e como um problema público."
Após a promulgação da Lei Maria da Penha, foram implementadas delegacias especializadas no atendimento à mulher, para atuar de forma interdisciplinar multissetorial , foi criada a Patrulha Maria da Penha em Minas Gerais. Na área da saúde houve a criação de um protocolo preenchido pelos profissionais em caso de atendimento de vítimas de violência que gera um relatório epidemiológico que auxilia no estudo e implementação de medidas para o combate às agressões.
O ambiente mais hostil para as mulheres é a própria casa. A maior parte dos atendimentos do Programa de Mediação de Conflitos é feita com vítimas de violência doméstica. Foram 778 pessoas atendidas em 2020 e 259 nos seis primeiros meses de 2021.
Dados da Polícia Civil de Minas Gerais apontam que foram 155 mulheres vítimas de violência entre janeiro e junho. No mesmo período, no ano passado, foram 167.
A Mediação de Conflitos procura ajudar as mulheres com orientações sobre como denunciar seus agressores, buscar direitos e acessar os serviços de saúde. "O programa também faz o encaminhamento para outras instituições e as auxilia com a disponibilidade de capacitações, de modo que possam sair mais fortalecidas das situações de violência vividas no dia a dia", informou a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública.
DESAFIOS
Apesar de todas as conquistas que a Lei Maria da Penha trouxe para as mulheres brasileiras, diversos desafios ainda estão presentes e impedem a total implementação da lei de forma efetiva e abrangente.
É possível apontar a disparidade de implementação de instituições especializadas em violência contra a mulher entre cidades de grande e pequeno porte, levando mulheres em cidades do interior a terem menos acessos aos mecanismos de proteção em relação àquelas que vivem em grandes cidades, e em especial na região Sudeste.
A pesquisadora do Nepem, Luciana Andrade, que é doutoranda em Ciências Políticas, aponta que "depois da implementação da Lei Maria da Penha, houve um período de retração da violência contra a mulher e de homicídios de mulheres na capital e da expansão dessa violência no interior."
A pesquisadora pontua que ampliou o número de atos de violência que passaram a ser mais denunciados. "Não necessariamente estamos falando de aumento da violência a gente pode estar falando de uma melhor implementação da Lei Maria da Penha, pela divulgação e pela maior procura das mulheres pela Lei."
Outro ponto importante é a falta de preparo para realizar um acolhimento às vítimas de violência em alguns casos, por parte de policiais e magistrados, e a diminuição expressiva de repasse de verbas do Governo Federal para execução de medidas preventivas de violência à mulher.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO CONTEXTO DA PANDEMIA
A professora Marlise salienta que, durante a pandemia, devido ao isolamento social, muitas mulheres se veem confinadas em suas casas com seus agressores. Devido à isso, além do aumento da violência doméstica, há um aumento na dificuldade para a mulher em denunciar seus parceiros sem que percebam.
"Tem um problema de registro dessa informação que precisa ser levado em consideração. Na pandemia também é bom lembrar que os casos de violência letal de mulheres brancas deram mais ou menos uma estacionada num nível muito alto, mas os assassinatos e os feminicidios contra mulheres negras continuam aumentando."
A professa salienta que o feminicídio é um ponto de chegada do ciclo da violência contra a mulher. "Infelizmente se você não estancar esse ciclo é bem provável que, na escalada da violência, se chegue aí a violência letal e terminativa da vida das mulheres então é muito importante interromper esse processo para que ele não chega nesse ponto" completa Marlise.
PERSPECTIVAS
Para continuar o avanço das políticas públicas voltados para o combate à violência contra a mulher, é necessário investir na capacitação de uma rede de organizações para atender mulheres em situação de violência como assistentes sociais, a policia, o sistema judiciário, entre outros. É necessária também a criação de um sistema nacional único e efetivo de informação para monitoramento e identificação de necessidades, a fim de aplicar medidas mais assertivas.
Luciana destaca a necessidade de criar ações complementares para garantir os direitos das mulheres. "Para a prevenção da violência contra as mulheres demandaria extrapolar a Lei Maria da Penha para criação de um regime de bem-estar social. As mulheres precisam de emprego, de educação, de saúde, precisa de uma série de ações do estado para prevenir uma situação de vulnerabilidade dessas mulheres.
A pesquisadora destaca o caráter inovador da lei, mas a necessidade de que ela saia do papel. "A Lei Maria da Penha é incrível, ela é muito inovadora e infelizmente o texto dela não é levado a sério da forma que deveria", diz. O texto propõe a prevenção das violências, que deveria ocorrer, segundo a pesquisadora, nas escolas, na mobilização dos bairros, em ações preventivas voltadas para a conscientização das mulheres, dos jovens e também dos homens.
A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública informou que destacou o trabalho executado pela Central de Acompanhamento de Alternativas Penais (Ceapa) com homens processados e julgados por crimes relacionados à Lei Maria da Penha. Os agressores são encaminhados pela Justiça até a Ceapa para participar de grupos reflexivos e de responsabilização sobre os atos cometidos.
Já a Polícia Militar atua na prevenção à violência doméstica. Uma das ações é a Patrulha de Prevenção à Violência Doméstica (PPVD), primeiro serviço preventivo policial militar da América Latina nesta temática.
O serviço é composto por conjunto de procedimentos executados depois da identificação, pela triagem das ocorrências registradas, dos casos reincidentes e de maior gravidade de violência doméstica.
A PPVD orienta o atendimento às vítimas reais e potenciais, realiza visitas aos agressores e faz os encaminhamentos da vítima à rede de atendimento, que abrange ações e serviços de setores como assistência social, Justiça, segurança pública e saúde. As mulheres são orientadas, em casos de emergência, a acionar a Polícia Militar no número 190.
QUEM FOI MARIA DA PENHA
Maria da Penha Maia Fernandes nasceu em Fortaleza no dia 1 de fevereiro de 1945. Formou-se como Farmacêutica Bioquímica pela Universidade Federal do Ceará em 1966. Quando cursava o mestrado em Parasitologia pela universidade de São Paulo conheceu o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, e se casaram em 1976.
Os primeiros anos foram tranquilos, até que Marco conseguiu a cidadania brasileira e o ciclo de agressões teve início. Em 1983 Maria da Penha sofreu duas tentativas de homicídio:a primeira foi um tiro enquanto dormia, que a deixou paraplégica, na qual Marco disse à polícia ser um caso de tentativa de roubo e foi desmentido posteriormente. A segunda foi uma tentativa de eletrocutá-la e afogá-la durante o banho, após mantê-la em cárcere privado por 15 dias.
Com o apoio de familiares e amigos, Maria da Penha saiu de casa e levou o caso ao poder judiciário, porém o primeiro julgamento ocorreu somente em 1991, com Marco condenado a 15 anos de prisão, que entrou com recursos e teve a pena revertida, permanecendo em liberdade. Um segundo julgamento ocorreu em 1996, com o mesmo desfecho.
Mesmo quando o caso ganhou visibilidade internacional, em 1998, não houve perspectiva de avanço. Apesar da denúncia para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA), o Estado brasileiro não se pronunciou, sendo acusado de negligência, omissão e tolerância em relação à violência contra a mulher em 2001.
Diante da pressão do CIDH, o Brasil se dedicou à criação de uma legislação que tratasse do tema, em um trabalho conjunto entre organizações e juristas com participação da população em audiências para a contribuição na elaboração de uma lei educativa, preventiva e que garantisse assistência à vítima. A lei foi sancionada em 07 de agosto de 2006, 23 anos após a primeira tentativa de homicídio. Maria da Penha escreveu o livro "Eu sobrevivi...Posso contar", lançado em 1994.
Maria da Penha participa ativamente na defesa dos direitos das mulheres por meio de palestras, seminários e entrevistas nos quais conta sua história contribuindo na conscientização da população e na divulgação da lei que leva seu nome.
*estagiária sob a supervisão de Márcia Maria Cruz