A polêmica em torno da arte urbana em Belo Horizonte teve mais um capítulo e movimenta o debate na cidade, tanto na Câmara Municipal, como nas redes sociais e no meio artístico. Dois episódios colocaram, na ordem do dia, a discussão acerca de como devem ser entendidos os grafismos urbanos que ocupam empenas, paredes e muros na capital mineira.
Leia Mais
Breakdance: das periferias a novo esporte olímpico em Paris 2024Abaixo-assinado pede veto ao projeto de lei contra pichação em BHConheça o Back to Black Afro Pub: um espaço que exalta a cultura negraCâmara derruba veto de Kalil a projeto contra pichadores em BHSensibilização na arte: projeto leva grafite a abrigo na Região Leste de BHCURA: cultura amazônica ocupa o Centro de BH na próxima ediçãoKalil veta projeto que aumentaria criminalização da pichação em BHAlém de Poter, na manhã do dia 13, três pichadores foram presos em uma nova operação da Polícia Civil, nomeada "Guardiões do Meio Ambiente", realizada pelo Departamento Estadual de Investigação de Crimes Contra o Meio Ambiente (Dema). De acordo com a polícia, um dos objetivos da operação é acabar com os "Melhores de Belô'', grupo de pichadores da cidade. Outros cinco investigados seguiam foragidos até o fim da tarde desta sexta (13/8).
Em um outro episódio, os artistas urbanas iniciaram movimento para pedir ao prefeito Alexandre Kalil (PSD) que vete o Projeto de Lei 230/2017, que institui penas mais severas contra as práticas de pichação, incentivando somente os grafittis em lugares autorizados na cidade.
A questão ganha ainda mais repercussão, uma vez que Poter foi um dos artistas convidados por Robinho para fazer parte da obra, contribuindo com seus grafismos ao redor da pintura que ilustra uma mãe negra com seus dois filhos. São essas intervenções que estão sendo causa principal da investigação aberta pela Polícia Civil desde sua criação. Em janeiro, o painel Deus é mãe se tornou alvo de investigação, mas depois do debate público, o caso foi arquivado. Em fevereiro, o Ministério Público deu parecer favorável para o encerramento.
Em 2020, o painel Híbrida Astral, pintado pela artista Criola, também foi alvo de uma ação na Justiça por um morador do condomínio que abrigou a pintura. Em entrevista ao programa Roda Viva, em novembro, o prefeito Alexandre Kalil (PSD) chamou esse morador de "boçalóide".
As prisões contrastam com a importância que a arte urbana ganhou na cidade, quando artistas foram convidados para pintar grandes painéis no Circuito Urbano de Arte (Cura). Os trabalhos se tornaram eventos que mobilizam a cidade e que projetaram BH nacionalmente no circuito das artes. "Há uma contradição, pois é uma cidade que se destaca internacionalmente pela qualidade de sua arte urbana. Temos inúmeros artistas com reconhecimento internacional, temos o Cura que é um festival de destaque nessa cena do muralismo no mundo." declara Comum, 34 anos, artista visual de BH.
Contramão do movimento
De acordo com organizadores do Cura, festival que promoveu a criação da obra contribuída por Poter, a prisão do artista é mais uma das ações que vão na contramão da proposta, ao apostar no controle e perseguição a pichadores e artistas urbanos.
"Somos contra a prisão de pichadores e a criminalização do picho. A prisão não resolve o problema, só contribui com a criminalidade, impedindo o crescimento artístico de jovens marginalizados.” destaca a idealizadora do Festival Cura, Janaína Macruz.
O Cura tem defendido o argumento de que a maneira como os artistas têm sido indiciados extrapola a legislação, que caracteriza o picho como um crime leve. As investigações estariam baseadas em um julgamento estético do que dos grafismos urbanos pode ser considerado arte e o que não pode. Janaína defende que é possível lidar com a pichação de maneira mais educativa.
"Nosso questionamento é sobre o peso dessa punição. O Estado não fomenta nenhum tipo de ação educativa para essa juventude que está pichando, não há outro suporte e nem outro caminho oferecido." declara, Janaína.
Discussão sobre artes
De acordo com o advogado dos jovens, Felipe Soares, não há uma distinção precisa e objetiva na lei entre o grafitti e a pichação, o que dificulta a definição dessas artes por parte da polícia e até mesmo para juízes. “O que a lei diz é que o grafitti feito com intenção artística e com autorização não é crime” aponta Felipe, destacando que essas formas de expressão artísticas são muito mais diversas e fluídas do que o enquadramento proposto por leis.
Além de "Deus é mãe", Poter também contribuiu com Robinho na obra “Algo sobre nós” no viaduto do Minhocão, em São Paulo, a convite da Secretaria de Cultura de São Paulo.
Em nota, a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) informa que todas as suas investigações são pautadas na legalidade, sempre acompanhadas pelo Ministério Público Estadual e Poder Judiciário. Salienta, ainda, que prisões realizadas estão sempre calçadas em elementos informativos robustos que indicam autoria e a materialidade de crimes previstos em leis e que, portanto, devem ser reprimidos em prol da sociedade mineira.
Pichação ainda mais criminalizada
A prisão de Poter segue as detenções realizadas pela Polícia Civil de Minas Gerais a artistas urbanos. Em julho, João Marcelo, mais conhecido como o Goma, foi preso em BH, por conta de um boletim de ocorrência de 2010, que causou sua prisão na época, na operação conhecida como BH Cidade Limpa. Goma, que é conhecido no cenário de artistas urbanos da capital mineira, também foi um dos criadores da capa do álbum “Histórias da Minha Área" do rapper Djonga.
A Câmara Municipal de BH aprovou em votação no dia 13 de julho de 2021, o Projeto de Lei 230/2017 contra as práticas de pichação, incentivando somente os grafites em lugares autorizados na cidade. Além disso, o texto inicial cita a criação de ações de conscientização sobre arte e multa de até R$ 20 mil reais a pichadores reincidentes.
Na contramão do PL, artistas urbanos de BH criaram um abaixo assinado, exigindo que o prefeito Alexandre Kalil (PSD) vete a decisão. Kalil poderá aprovar a decisão ou vetá-la parcial ou integralmente.
O debate na Câmara tem sido proposto pela Gabinetona. " A gente discute esse tema há cinco anos, desde quando entramos no mandato. Essa divisão entre picho e grafitti é algo que não existe para os pichadores e grafiteiros. Em outros países que apostam na arte urbana como potência, não existe essa divisão", afirma a atriz Cida Falabella, co-vereadora pelo Psol que integra a Gabinetona.
Cida Falabella destaca que os grafismos urbanos estão no limite entre transgressão e arte. "Eles provocam a cidade, embelezam, modificam a cidade." Ela lembra que alguns grafittis muito apreciados na cidade estão em locais que não foram previamene autorizados. Cida defende outra relação com os jovens que fazem arte urbana, que ele inclui os grafismos considerados pichos.
"A gente lamenta que, em 2021, um projeto de lei tenha sido aprovado para estimular uma cultura e criminalizar a outra, como se fosse possível separar duas linguagens ou delegar às autoridades policiais o julgamento do que é feio e do que é bonito", completa.
"A gente lamenta que, em 2021, um projeto de lei tenha sido aprovado para estimular uma cultura e criminalizar a outra, como se fosse possível separar duas linguagens ou delegar às autoridades policiais o julgamento do que é feio e do que é bonito", completa.
Falha nos critérios
Para o artista visual Comum, o critério estético da arte, levantado pela legislação atual, é incapaz de ser definido por autoridades policiais, pela ausência de conhecimento do poder público sobre o assunto, que também não possui definições precisas dentro do próprio contexto artístico. Já o critério sobre a autorização de espaços públicos também é impraticável para o artista, pois há artes, como "Deus é Mãe", em que os artistas tinham autorização e mesmo assim foram criminalizados.
"Grafitti e pichação são práticas culturais que se confundem. São práticas que se dialogam, que se complementam. Muitas vezes, o pichador é grafiteiro também, muitas vezes o grafiteiro já foi pichador no passado. Muitas vezes esse mesmo grafiteiro muralista inclui elementos da pichação nos seus trabalhos", aponta Comum, destacando como há falhas na aplicação desses critérios atualmente em BH.
PALAVRA DE ESPECIALISTA
FELIPE RICCIO - cientista político, professor e pesquisador
"A perseguição aos grupos de pichação em Belo Horizonte não é algo novo. Desde o surgimento dos primeiros grupos mais estruturados, na virada da década de 1980 para 1990, grupos como a GBS, a PE e a DP, para citar somente alguns, já estavam na mira do poder público. No entanto, é necessário destacar uma escalada persecutória ao longo das décadas seguintes, com penas mais severas, nas quais o encarceramento se torna algo recorrente. Essas ações estão intimamente ligadas a um processo mais amplo de criminalização dos movimentos sociais. Assim, as prisões de Galo, Goma e Poter são faces da mesma moeda.
A criminalização e o encarceramento fazem parte de uma cultura que deita raízes profundas na história do país. As relações sociais são vistas por um ângulo extremamente judicializado, no qual a sede por vingança, como nos ensina Juliana Borges, tem alvo certo, não atingindo da mesma maneira os diferentes grupos sociais."