A memória de Luiz Gama tem elevado a temperatura do campo literário brasileiro nas duas últimas semanas. O acontecimento da vez está relacionado diretamente à narrativa acerca da trajetória transatlântica de um dos maiores dentre todos os abolicionistas.
O calor da discussão só aumenta após a crítica redescobrir o livro ''Abc da liberdade: a história de Luís Gama, o menino que quebrou correntes'', publicado em 2015, pela Alfaguara Infantil, com guarida da Companhia das Letras. O objeto editorial conta com autoria de José Roberto Torero e Marcus Aurélio Pimenta, além das ilustrações de Edu Oliveira.
A liberdade inscrita no título do ABC esconde e ampara duas dimensões: a) a fantasia representativa do branco é procedimento literário corrente; e b) esta fantasia não é nova em nossa cena cultural. Aliás, tal fenômeno tem nome: Negrismo, algo que tenho estudado há mais de uma década e, asseguro, estou longe de me surpreender com a sua variação e diversidade. O negrismo, tal como tratamos, pode ser compreendido em duas dimensões: linhagem e procedimento.
Enquanto linhagem, trata-se de sucessivas recuperações, alusões ou representações da cultura africana ou afrodescendente promovidas por autores ocidentalizados. Trata-se de uma série apropriativa e representativa que toma lugar em vários espaços, como Europa, Caribe e América Latina. Em nosso país o negrismo, como linhagem, subdivide-se em duas atitudes: a primeira, de estruturação deliberadamente racista; a segunda, simpática aos universos africano e afrodescendente.
Da primeira atitude resultam versos de Gregório de Matos e sua tentativa de descrever a cidade da Bahia, ainda em pleno século 17: “Quem são seus doces objetos?... Pretos. / Tem outros bens mais maciços?... Mestiços. / Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos”. Tal postura passa pela narrativa romântica, tendo em ''A escrava Izaura'' (1872), de Bernardo Guimarães, outro exemplar paradigmático: “Hão de pensar que és maltratada , que és uma escrava infeliz, vítima de senhores bárbaros e cruéis. Entretanto passas aqui uma vida, que faria inveja a muita gente livre.” Além do embaraço da cor da personagem, o texto abranda os dilemas da escravidão.
Já em ''O cortiço'' (1900), de Aluísio Azevedo, Bertoleza, “continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja, sempre atrapalhada de serviço, sem domingo nem dia santo”. A lista seria imensa e nos levaria ainda a ''O demônio família'' (1857), de José de Alencar; ''O bom crioulo'' (1885), de Adolfo Caminha; ''A carne'' (1888), de Júlio Ribeiro, ''O presidente negro'' (1926), de Monteiro Lobato; ''Juca mulato'' (1917), poema de Menotti del Picchia. Nestes textos, os estereótipos são a regra.
Com relação à segunda atitude, a de um negrismo mais respeitoso em relação à afro-descendência, eis alguns livros paradigmáticos: ''O mameluco Boaventura'' (1929), de Eduardo Frieiro; ''A marcha'' (1941), de Afonso Schmidt; ''Ganga Zumba'' (1962) e ''Benedita Torreão da Sangria Desatada'' (1983), de João Felício dos Santos; ''Jubiabá'' (1935), ''O compadre Ogum'' (1964) e ''Tenda dos milagres'' (1969), de Jorge Amado; e ''Xica da Silva'' (1976), de João Felício dos Santos; ''Os tambores de São Luís'' (1975), de Josué Montello; ''O forte'' (1965) e ''Luanda beira Bahia'' (1971), de Adonias Filho; ''A casa da água'' (1969), ''O rei de Keto'' (1980) e ''Sangue na floresta'' (1981), de Antonio Olinto.
Enquanto procedimento, o negrismo incide diretamente nas orientações das seguintes instâncias: temática; autoria; ponto de vista; linguagem e as imagens veiculadas pelos objetos editoriais. E, aqui, ao meu ver, estão os argumentos que denotam a tragédia literária chamada Abc da liberdade.
Do ponto de vista da temática, o negrismo procura abordar não só o sujeito afrodescendente, enquanto indivíduo, mas seu coletivo identitário enquanto universo humano, social, cultural e artístico. Há inequívoco desejo de resgatar a história do povo negro, seja em África, seja na diáspora, passando pela escravidão e de suas consequências. Resta saber se a criação negrista realmente o faz a contento.
A instância da autoria na literatura negrista é das mais controversas. Proponho entender a autoria não apenas como um dado “exterior” ao sujeito, mas como uma constante discursiva integrada à materialidade das formas e conteúdos da construção literária. Isso porque o negrismo é composto majoritariamente por autores brancos ou mulatos, mas cujos projetos literários se identificam com o universo cultural dos mais claros. Não há “escrevivência” como operador discursivo. Os autores e as editoras, ao contrário, falam da condição externa à negritude e, portanto, o negro é apenas horizonte temático de seus projetos editoriais
Intimamente conjugada coma autoria está o ponto de vista, ou seja, o conjunto de valores que fundamentam as opções éticas e estéticas de determinada obra. Na linhagem negrista, a visão de mundo ainda se prende à cópia de modelos europeus e à assimilação cultural, entendidas como vias de expressão. Desta maneira, o ponto de vista predominante no âmbito do negrismo ainda reflete o discurso do colonizador em seus matizes passados e presentes.
Logo, o trabalho com a linguagem é de fundamental relevância. Herdeiros das renovações do código propostas desde as vanguardas do início do século passado, os autores negristas apropriam-se de um vocabulário e expressões oriundos de África ou torcem a língua portuguesa no intuito de “melhor expressar” (segundo a ótica de quem escreve, vale ressaltar) o universo afro-brasileiro. Arrisco afirmar que, na maioria das vezes, os sentidos hegemônicos da língua/ da História não são contrariados e esta incapacidade de alteração significativa influi diretamente na conformação de público pressuposta pela literatura negrista.
A literatura não consola nossas dores, assim como não oferece respostas imediatas para nenhum dos dilemas de nossa existência. Entretanto, quando nos deparamos com angústias e dramas de personagens literários, somos convidados ao exercício de nos colocarmos no lugar do outro. E a liberdade criativa do ABC rasura os reais dramas e sentidos da escravidão, ao inserir textual e imageticamente, uma fabulação da travessia transatlântica.
A travessia marítima é apresentada como se fosse um ato lúdico. Não se discutem as dores de milhares de pessoas que foram arrancadas de seus territórios de origem. E, sim, Luiz Gama, personagem-menino, é levado de roldão por um imaginário que rasura os arquivos da diáspora. Afinal, no ABC, Gama e seus amigos, pulam correntes e riem da condição cativa e, por certo, não têm a consciência do impacto da viagem oceânica em suas vidas. Por meio da ficção, podemos, sim, representar experiência alheia. Contudo, tal exercício exige ética, bom senso e preparo – para além dos conhecimentos técnicos e comerciais.
Vale considerar ainda que somos, como sociedade, herdeiros de séculos de escravização. No livro, a representação de Gama e demais personagens me leva a indagar se haveria laços entre a consciência criadora do projeto editorial e a tese da escravização benigna, sugerida por Gilberto Freire, em Casa grande e senzala. Ou mesmo entre o livro assinado por José Roberto Torero e Marcus Aurélio Pimenta e a saudade do escravo, corolário argumentativo de Joaquim Nabuco, em Minha formação.
Interrogo o que mais justificaria a voz narrativa afirmar, abaixo de uma das ilustrações de Edu Oliveira, o seguinte descalabro: “A viagem pelo mar foi tranquila. Não houve nenhuma tempestade e o navio quase não balançou”. Gostaria de lembrar aos autores, ao ilustrador e à casa editorial que o Atlântico é um dos maiores cemitérios a céu aberto do planeta. Nele, as almas não residem tranquilas. As tempestades jamais deixaram de cair sobre corpos negros brasileiros. E o navio balança muito! Por vezes, tempestade e/ou navio “coloca(m) em risco”, inclusive, a segurança dos que viajam no castelo de popa.
Em verborrágico texto publicado no jornal Rascunho, ao tentar se defender do indefensável, Torero criticou a “patrulha ideológica” por não reconhecer a livre criação de sua literatura. Para o autor, parece valer vale tudo pela liberdade inventiva – até apagar as marcas mais profundas do nosso vergonhoso passado, incluindo aí a sintomática trajetória do próprio Luiz Gama, homem livre posteriormente vendido pelo próprio pai.
A justificativa do escritor, que era ruim, ficou pior ao remendar o soneto. Por outro lado, escancarou o que sempre fomos: resultado de uma sociedade racista como fim e começo. A editora, por sua vez, além de recolher os livros, informou, em suas redes sociais, que vai “conversar com os autores”. E, claro, se desculpa pelo ocorrido. É pouco! É como se o motorista bêbado atropelasse uma criança e pedisse desculpas porque houvera bebido. O estrago já está feito, embora possamos prender o motorista e recolher o seu veículo.
Para concluir, não me surpreende o ABC. Como disse anteriormente, o livro foi publicado em 2015 e, ao que parece, só agora nós, os críticos, o (re)descobrimos! Infelizmente, nos últimos anos, o Brasil perdeu a vergonha de ter vergonha. Arrisco dizer que o desbunde ético (e estético) ganhou força a partir de 2013, com as manifestações de pautas difusas pelo país; passa pela Lava-Jato, com todos os aplausos de uma sociedade ávida por qualquer forma de caça às bruxas; e chega ao atual cenário de emergência de autoritarismos de todas as ordens, afinado por um pusilânime discurso, assentado em fake news de boca muitíssimo suja. O que o sequestro da memória de Luiz Gama, o Abc da liberdade e as lições contemporâneas do negrismo têm em comum? Para representar o outro vale tudo, até exibir nossa roupagem mais conservadora – ainda que travestida de progressista.
* Doutor em Literatura Comparada pela UFMG, professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens e do Bacharelado em Letras (Tecnologias da Edição) do Cefet-MG e coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos do Campo Editorial. Autor de ''Poéticas negras'' (2007) e ''Negrismo'' (2014)