Jornal Estado de Minas

CIDADE FEMINISTA

Ruas, bares e ônibus: leitoras apontam locais de BH hostis para mulheres


“A rua é hostil, a cultura é hostil. Bairro de rico ou de pobre, nada muda”. Essa sensação é recorrente entre mulheres ouvidas pelo Estado de Minas em enquete que coletou centenas de depoimentos como esse para tentar traçar um mapa dos espaços de Belo Horizonte, públicos ou não, que elas consideram hostis para elas.





A maioria das respostas cita ruas, praças e transporte público, corroborando que, de uma forma geral, o espaço público é inseguro. Mas há também referências a bares, casas noturnas e lojas, entre outros - o que confirma as reflexões da pesquisadora canadense Leslie Kern no livro “Cidade feminista: a luta pelo espaço em um mundo desenhado por homens”: nos espaços públicos ou privados as mulheres se sentem inseguras.

A enquete feita no perfil do EM no Instagram ficou disponível na ferramenta stories por 24 horas, com duas perguntas: “Você considera Belo Horizonte uma cidade hostil para mulheres?” e “Leitora, qual espaço público de BH você considera hostil e por quê?”. O levantamento partiu de uma reflexão proposta no livro "Cidade feminista", que fala sobre a relação entre os espaços urbanos e as mulheres.


A primeira pergunta da enquete teve resultados muito próximos entre quem considera BH uma cidade hostil para mulheres e quem acha que não. As respostas “sim”, ou seja, de que a capital mineira é ameaçadora a elas, teve 1.451 votos, o que representou 50,6% do total.



Enquanto 1.413 pessoas (49,4%) disseram “não”. No entanto, vale ressaltar que muitos homens também responderam a essa caixa de perguntas da enquete feita no stories, o que altera o resultado. A enquete demonstrou que a visão deles sobre situações hostis para mulheres dentro de cidades é diferente dos casos que elas vivem e relataram.

"Nos ônibus, os homens fica tentando tocar a gente quando está cheio" (foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)


Os estudos demográficos mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que a população de Belo Horizonte tem mais de 1,34 milhão de mulheres (53,8% do total), enquanto os homens são 1,15 milhão de homens (46,2%).

Espaços de BH hostis para mulheres

Mais de 240 mulheres participaram da segunda parte da enquete, que pediu para elas descreverem locais da capital mineira que consideravam hostis e por qual motivo. Os relatos mostram uma sensação constante de insegurança à noite, mas também de dia. Os assédios ocorrem de várias maneiras: olhares, falas, gestos, buzinas de carros e toques. “Muitos homens se sentem no direito de falar e olhar sem respeito algum”, relatou uma leitora.







O simples fato de estar sozinha em um local gera um temor constante. “Estando sozinha, qualquer espaço público é hostil: ônibus, praças, shopping, consultório”, disse outra leitora. Vias públicas, praças (entre elas a da Estação, rodoviária, Praça 7, da Savassi e Liberdade) e transportes, públicos ou por aplicativos, apareceram em dezenas de respostas.

Mas não são apenas os espaços urbanos que as leitoras consideram hostis. Comportamentos machistas e abusivos foram relatados na enquete. “Muitos homens se sentem no direito de falar e olhar sem respeito algum”. “Todas as ruas têm homens fazendo comentários nojentos”. “No Centro tem muito homem que mexe no cabelo de mulheres que estão passando. Já aconteceu comigo, infelizmente”, relataram.

Desrespeito na capital dos bares

E, apesar de BH ser considerada a “capital dos bares”, as leitoras afirmaram que se sentem desconfortáveis de passar em frente a bares e restaurantes e que esses e outros locais de lazer, como casas noturnas, são hostis para mulheres. “Amo sair em BH, mas fico com medo de sair sozinha”, desabafou uma leitora.





"Savassi à noite, sobretudo se formos beber ou sair sem a presença de um homem. Já tive muitas experiências de assédio na região" (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)


Outra, afirmou que nesses locais “acontecem vários assédios que não são denunciados”. “Se tiver boteco, tem de atravessar a rua. Se tiver obra, borracharia, homem, tem que atravessar”, relatou outra moradora da capital.

Entre as leitoras que citaram situações de violência contra a liberdade das mulheres, a Savassi foi citada como um local hostil. “Sobretudo se formos beber ou sairmos sem a presença de um homem. Já tive muitas experiências de assédio na região”, contou uma leitora.

Outras leitoras relataram não se sentirem protegidas de ofensas e abusos nem mesmo quando estão próximas a integrantes das forças de segurança. “Não consigo sair de casa com as pernas à mostra e com decote. Mesmo usando calça, sou assediada. Até mesmo por policiais militares. Em frente à minha casa eu sofri assédio e eles estavam na viatura”, relatou uma leitora. “Delegacias de polícia são um lugar hostil para mulheres”, respondeu outra leitora.





Marcas da agressão 

As agressões, muitas vezes, violam o corpo e a privacidade de mulheres. Uma leitora relatou um estupro que sofreu aos 14 anos, quando estava na região central de BH. Anos se passaram e “nada foi feito” contra o agressor.  Ao contrário dele, a jovem sofre com as cicatrizes da violência.

“Eu tinha acabado de sair de um shopping e aqueles hippies da Praça 7, que sempre nos abordam, me chamaram para beber alguma coisa. Eu, na minha inocência, fui”, contou. 


Por ingenuidade, a leitora relatou que seguiu o agressor que havia dito que compraria “drogas (cannabis sativa)”. Porém, foi levada para debaixo do Viaduto Santa Tereza. 

“A única frase que eu lembro dele me falando era: ‘Vem aqui para a gente fazer um sexo gostoso’ e eu fiquei apavorada e queria ir embora. Eu tentei correr, mas tropecei. Então, ele me agarrou”. “Eu não tinha entendido o que estava acontecendo. Fiquei apavorada. E ele conseguiu sair como se ele tivesse me feito um favor”.





As marcas da agressão continuam. “Não consigo ter relacionamentos saudáveis por isso. Tenho um medo muito grande”. Aos 18 anos, sofreu outro abuso sexual. 

Após o segundo estupro, ela foi ao hospital para tomar o coquetel que diminiu as chances de DST. Mas, em vez de encontrar apoio, foi tratada com descaso. “Fui muito maltratada. E eu estava desesperada. Me trataram como se eu fosse irresponsável”.

Dificuldade ao denunciar o crime

Além do choque do abuso, ela lidou com a pressão ao registrar queixa. “O processo foi arquivado, pois ouviram a versão do cidadão e levaram em conta o que ele falou e ponto”. “A gente não é ouvida nem acolhida, hora nenhuma. A gente pode estar totalmente fragilizada e eles vão te tratar como um nada e te por como culpada”. 

A leitora afirma que BH não é uma cidade que traz proteção para a mulher. “E por mais que seja espaço público, não é iluminado, não tem segurança, não é protegido. Não tem nada”, completa. 





Anos após a agressão, ela diz que a cidade não está menos hostil, mas que a forma de agredir e silenciar mulheres mudou. “Vejo que tem muitos grupos de mulheres que sofreram abusos em namoro, mas por um cara ser mais ‘conhecido’, as pessoas ‘passam pano’. Tipo: ‘Ele te bateu na frente da sua filha?. Ok, mas ele é meu amigo’. Relativizam, sabe?”.

Hoje, a leitora lida com depressão e ansiedade decorrentes do estresse pós-traumático e tem acompanhamento de psicóloga.

Projeto de sucesso nos ônibus de BH

Os transportes coletivos, citados por várias leitoras do Estado de Minas como ambientes hostis para mulheres, receberam em 2018 um projeto que tem ajudado a reduzir o índice de casos de violência contra passageiras em Belo Horizonte. A “Prevenção de Violência e Abuso Sexual contra Mulheres no Transporte Público”, iniciativa da Guarda Municipal, em parceria com a BHTrans e a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), instalou um botão de emergência nos ônibus para facilitar denúncias de crimes. Desde que foi implementado, o botão já foi acionado 50 vezes.
 
Ao presenciar ou ser informado de um ato de importunação sexual no veículo, o motorista aciona o botão silencioso notificando a central de inteligência da Guarda Municipal. A Guarda, então, localiza o ônibus via GPS e destaca a viatura mais próxima para fazer a abordagem e encaminhar vítima e agressor à delegacia para registro do boletim de ocorrência.




 
"Já fui assediada na Praça da Rodoviária estando ao lado do meu pai e marido" (foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)


O projeto foi motivado por um abaixo-assinado elaborado por mulheres que representavam as comissões das nove regionais de trânsito de BH, no qual elas relataram desconforto em usar o transporte público baseado na possibilidade de ocorrência de assédios, incluindo relatos de vítimas.
 
A identificação do problema foi auxiliada por pesquisas feitas em outros estados. Em São Paulo, pesquisa do Datafolha revelou que 96% das mulheres tinham sofrido assédio no transporte público e que 63% dos homens já havia presenciado uma mulher sendo vítima. No Rio de Janeiro, a campanha “Assédio não é passageiro”, encabeçada pela então vereadora Marielle Franco (1979-2018), constatou que a cada 16 horas uma mulher era assediada.
 
Aline Oliveira, que integra a Guarda Municipal de Belo Horizonte desde 2008, compõe o Núcleo de Mediação e Prevenção da Secretaria de Segurança e participa do projeto “Prevenção de Violência e Abuso Sexual contra Mulheres no Transporte Público”. Ela  estuda o fenômeno da violência e como ele se comporta na cidade e quais as possíveis ações de prevenção.  

O que são importunações sexuais 

A policial esclarece que a importunação sexual pode se configurar nos esbarrões mal-intencionados, nos toques maliciosos ou na exposição do órgão genital. “As cantadas sem consentimento também podem configurar importunação sexual. Quando as pessoas nos perguntam como diferenciar uma da outra, é a partir do primeiro 'não'. O que passar dali já pode ser considerado importunação sexual”, explica Aline.





"A rua é hostil, a cultura é hostil. Ponto. Bairro de rico ou pobre, nada muda" (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)

 
Um grande problema do combate à importunação sexual é a subnotificação. “A violência contra mulheres e meninas tem uma característica diferente do roubo e do furto, que é a subnotificação. Então, a gente tem bastante dificuldade de sustentar políticas públicas em cima de dados oficiais”. Alguns motivos que levam as mulheres a não notificar os assédios sofridos são a vergonha, o medo e a culpa que recaem sobre as vítimas devido à estrutura machista da sociedade que acarreta na impunibilidade dos infratores.
 
Para garantir a divulgação do botão do assédio, já foram realizadas mais de 230 ações de conscientização. A Guarda Municipal aborda os usuários explicando o funcionamento do dispositivo e entrega de uma cartilha sobre importunação sexual uma vez por semana em estações de grande movimento. “O mês que a gente faz mais campanhas ou consegue abarcar um maior número de pessoas abordadas refletem nos números”, conta a policial. 

Estudo para facilitar denúncias 

Aline acredita que a iniciativa pode ser potencializada na medida que melhora a situação da pandemia. “Acreditamos que poderemos visitar outros espaços além do transporte coletivo e falar com grandes empresas que têm uma concentração alta de mulheres em seus quadros. Quem sabe no futuro a gente consiga disponibilizar o acionamento via aplicativo de celular sem que a mulher precise se expor”, comenta Aline.




 
Em 2019, o projeto recebeu o Selo de Práticas Inovadoras do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), um sinal de reconhecimento nacional de que a sociedade está carente de políticas públicas de proteção para meninas e mulheres, e que as mesmas são extremamente necessárias.

A We Go, Organização Mundial de Cidades Inteligentes e Sustentáveis, da Coreia do Sul, concedeu o segundo lugar ao projeto num prêmio internacional sobre o tema. As premiações são importantes para a divulgação de práticas que transformem as cidades em ambientes mais saudáveis, com compartilhamento de experiências e disseminação de ideias.

*Estagiárias sob supervisão do subeditor Rafael Alves