No decorrer do período republicano brasileiro, em diferentes momentos e lugares, militantes, agentes culturais, acadêmicxs, dentre outrxs, propuseram que a história e cultura negra-brasileira, africana e afro-diaspórica se tornassem conteúdos indispensáveis durante a escolarização básica.
Leia Mais
Conheça as associações negras em Minas e a gênese da luta antirracistaMês da consciência: EM celebra parceria com Rede de Historiadores Negros O jovem que criou sistema de entregas onde os Correios não vãoE depois do 13 de maio? Lutas negras mineiras em um contexto de liberdadePatrimônio da humanidade: capoeiristas resgatam história da luta que é arteA Lei 10.639/03 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação ao tornar obrigatório o ensino da História e cultura africana e afro-brasileira nas instituições de ensino fundamental e médio e ao instituir no calendário escolar o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra'. Posteriormente, em 2008, a lei foi complementada pela Lei 11.645/2008, ao incluir à obrigatoriedade o ensino da História indígena.
Considero a ampliação da obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena um passo fundamental para a reeducação das relações étnico-raciais tendo a escola como espaço de construção de práticas pedagógicas antirracistas, contudo neste texto, por questão de foco e espaço, trato somente da perspectiva da história negra relacionada à Lei 10.639/03.
Além das normativas apontadas, as 'Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana', o Parecer nº 03/2004 do CP (Conselho Pleno)7 /CNE e a Resolução nº 01 de 17 de junho de 2004 do CP/CNE buscaram auxiliar na implementação da Lei 10.639/2003 ao proporem parâmetros, perspectivas de abordagem e de encaminhamentos didáticos para a implementação da obrigatoriedade citada, além de acrescer o ensino superior ao escopo da legislação.
Esses dispositivos legais em conjunto configuram-se como um ato de força política e de redefinição simbólica na discussão das questões étnico-raciais na educação brasileira. A partir da Lei 10.639/2003 percebe-se o indicativo de que novas referências epistemológicas e étnico-raciais passem a compor o currículo escolar, tensionando concepções de currículos escolares limitadas a pressupostos referenciados exclusivamente em tradições europeias e ocidentais.
A incorporação da história e cultura africana e afro-brasileira à escolarização traz consigo diversas perspectivas importantes para a proposição de uma pedagogia antirracismo, dentre elas, possibilita criar um deslocamento no lugar historicamente construído para as populações negras na história e memória nacional e transnacional. Neste sentido, entendo que a urgência do reposicionamento da experiência histórica negra na história e na narrativa nacional seja uma perspectiva que a referida legislação nos traz.
Trata-se de um reposicionamento orientado pelo não-esquecimento da agência e do protagonismo de negros e negras em diferentes contextos, uma espécie de antídoto contra o esquecimento e apagamento histórico racialmente orientado contra as populações negras, composição das narrativas sobre a nação, uma ação de combate à produção e circulação de leituras e interpretações históricas que circunscrevem negros e negras em posições subalternas.
A ação de incorporar sujeitos históricos, outrora esquecidos, aos currículos escolares, tal como prescrito na legislação educacional citada, não está limitada a apenas criar um espaço no currículo para tais sujeitos. Ou seja, criar apêndices, espaços complementares, arranjos periféricos, tratamentos orientados pelo exotismo em suposto cumprimento legal.
Trata-se de recompor o lugar desses sujeitos na narrativa do passado nacional, sem, contudo, apagar suas particularidades étnico-raciais e culturais. Neste sentido, a história negra seria um elemento estruturante para a construção de uma reeducação das relações étnico-raciais.
A história e cultura afro-brasileira e africana como conteúdos curriculares e a reeducação das relações étnico-raciais como finalidade apresentam-se como um conjunto organizado na escolha da educação como espaço de luta antirracista.
Compreendendo que o racismo não é um fato natural, ao contrário, trata-se de um complexo que estrutura a formação sócio-histórica brasileira, é socialmente reproduzido, e se expressa nas instituições e nas diferentes formas de relações políticas, econômicas, culturais e sociais, o investimento na educação e na escola como um dos espaços de potencial construção de combate antirracista reafirma-se.
Passados 18 anos da promulgação da obrigatoriedade da alteração curricular em foco, esse processo ainda se apresenta inconcluso e incompleto. Neste processo, se por um lado, a intelectualidade comprometida com a reeducação das relações étnico-raciais e uma educação antirracismo, especialmente a intelectualidade negra, dentro e fora da academia, nos movimentos sociais e culturais, redes, coletivos, na educação formal e não-formal, vem produzindo reflexões e materiais relacionados à história e cultura africana e afro-brasileira.
Processo que dá continuidade e amplia uma prática que antecede a Lei 10.639/03, por outro, diagnósticos e produções sobre a implementação da lei apontam para um complexo cenário no qual destacam-se uma relativa incompreensão sobre a dimensão político-pedagógica acerca do Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e da Educação das Relações Étnico-Raciais, bem como, a necessidade de ampliação do conhecimento sobre a legislação educacional sobre a temática racial entre gestores e profissionais da educação, e uma fragilidade nos processos de controle, monitoramento e fiscalização voltados para o cumprimento e a obrigatoriedade em foco.
A incompletude do processo da implementação aponta desafios e a necessidade de continuidade. Neste sentido, acredito que seja importante que não se perca de vista as perspectivas que motivaram e motivam as históricas reivindicações do movimento negro brasileiro no campo da educação até a sua completude, dentre elas, a garantia do acesso aos conhecimentos, especialmente em contexto escolar, sobre a experiência histórica negra brasileira, africana e em outros territórios da diáspora, em suas profundas dimensões epistemológicas, políticas e civilizacionais.
* professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em história da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).