Oliveira, Minas Gerais, ano de 1896. Uma mulher negra, identificada como Belmira, foi denunciada pelo fazendeiro Revalino Ribeiro por manter um menor de idade sob sua custódia, sem autorização da Justiça. O menor era Quirino, na época com 11 anos de idade. O fato que chama atenção é que o menino era filho biológico de Belmira. Mas porque uma mulher seria acusada por viver na companhia de seu próprio filho?
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Essa foi uma das histórias com as quais me deparei quando decidi investigar, por meio de processos criminais, as trajetórias de pessoas negras no imediato pós-abolição em Minas Gerais. No caso envolvendo Belmira, percebemos que o contexto de liberdade veio acompanhado de novos desafios. Assim como ela, outras mulheres tiveram de se empenhar para garantir direitos básicos, como o exercício da própria maternidade.
Eram operários, costureiras, lavradores, empregadas domésticas, cozinheiras, entre tantas outras profissões que serviam para garantir o sustento de si e de suas famílias. Após 1888, essas mulheres e homens permaneciam lutando, mas dessa vez, para afirmar seus lugares como cidadãs e cidadãos.
É certo que muitos deles já eram livres antes mesmo da abolição em massa. Grande parte a população negra do país havia alcançado a liberdade antes mesmo da data, por meio de esforços árduos diversos para obtenção de alforrias. No entanto, o 13 de maio trouxe enormes significados. A sociedade agora era totalmente livre. Conquista obtida principalmente pelo mérito de negros e negras que lutaram incansavelmente pela liberdade durante todos os anos de escravidão.
Em 1893, no antigo Distrito de Cláudio, também em Oliveira, a lavradora Narciza da Conceição, outra mulher negra, abriu uma queixa contra seu patrão José Martins Campos. O fazendeiro teria mandado um administrador de sua fazenda, denominado como Carlos Libânio, agredir a trabalhadora. O crime teria ocorrido na mesma propriedade, onde Narciza atuava como colhedora de café.
Segundo testemunhas do caso, a ofensa física teria sido dada como uma espécie de castigo, pois Narciza costumava falar alto e brigar com outras companheiras de lavoura. Mas devemos nos lembrar que já se tratava de um contexto pós-abolição. Portanto, a prática de ser castigada como nos tempos da escravidão era inaceitável. Narciza procurou, dessa maneira, os órgãos públicos para fazer sua denúncia. Entretanto, ao final do caso, tanto o patrão quanto o administrador foram absolvidos.
Conflitos de trabalhadores negros contra seus patrões não eram situações isoladas. Apesar do advento da liberdade, as formas de relações não mudaram do dia para a noite. As hierarquias raciais continuavam e foram recriadas. Muitos chefes empregatícios ainda tentavam direcionar, aos seus empregados, tratamentos formulados durante os anos de escravismo. É importante lembrar que as leis trabalhistas que conhecemos hoje estavam bem longe de serem decretadas.
Além do âmbito do trabalho, outros elementos de vida de mulheres e homens negros foram atravessados pelas desigualdades do contexto. Assim como no exemplo de Belmira, muitas mães negras, dadas como incapazes na criação de seus filhos, foram afastadas de suas crianças. As fontes judiciais do período mostram que além dos recursos materiais, os laços familiares e as relações de afeto eram imprescindíveis para a reconstituição de vida numa sociedade livre. Aquelas pessoas não eram apenas braços de trabalho, mas seres humanos que também priorizavam seus sentimentos.
Em 1893 em Cláudio, Minas Gerais, a idosa Bárbara, uma ex-escrava, foi agredida por Simião e Francisco. Os dois homens tentavam manter relações passionais com Rosaura e Cândida, netas da ofendida. Bárbara buscou impedir essa aproximação com as duas moças, pois os dois rapazes eram casados com outras mulheres. Num momento de fortes moralizações sociais sobre o comportamento feminino, a idosa pode ter tentado proteger a imagem das jovens e mesmo, de sua família.
A legislação da época previa também punição pelo crime de adultério. Mulheres, inclusive, poderiam receber culpabilização com mais facilidade que os homens. O homem só seria figurado no crime caso fosse provado que estivesse mantendo financeiramente sua amante. Outro fato que mostra como a preservação moral de suas netas, levantada por Bárbara, poderia ser relevante. Os dois agressores foram condenados.
Após a abolição, as estratégias de lutas do povo negro mineiro foram diversificadas. Assim como nas muitas partes do Brasil, aquela gente não assistiu passiva às novas segregações do contexto. Trabalhavam, defendiam sua família, buscavam estratégias materiais e morais de sobrevivência, para si e os seus iguais. Queriam exercer sua humanidade, sua cidadania. É por meio dessas histórias diversas que podemos compreender a potente presença afrodescendente em Minas Gerais, que não está limitada à escravidão.
*Doutoranda em História Social na UFRJ e integrante da Rede de Historiadorxs Negrxs