Jornal Estado de Minas

VIOLÊNCIA VIRTUAL

Três a cada dez mulheres têm medo de sair de casa



A pandemia de COVID-19 levou o mundo ao isolamento social e, consequentemente, a população se voltou cada vez mais para o ambiente online. A pesquisa “Além Do Cyberbullying: A Violência Real Do Mundo Virtual” mostra como a violência contra a mulher se adaptou aos modos de interação que surgiram, resultando no aumento do assédio virtual, do stalking e do consumo de pornografia.



O estudo inédito realizado pelo Instituto Avon, em parceria com a Decode, empresa especializada em mineração, manejo e análise de dados, mostra a mudança dos comportamentos do cyberbullying antes e durante a pandemia. Foram realizadas duas pesquisas, a primeira, entre janeiro de 2019 e março de 2020, e a segunda, entre julho de 2020 e fevereiro de 2021.

Sem ter conhecimento da pandemia de COVID-19, a primeira pesquisa ficou datada no momento em que foi finalizada, uma vez que o isolamento social mudou a forma de interação e os comportamentos na internet. 

“Com isso em mente a gente fez uma segunda tomada da pesquisa para prestar atenção de que maneira a pandemia estava incidindo sobre esse universo das violências contra mulheres nos espaços digitais”, declara Beatriz Accioly, coordenadora de pesquisa e impacto do Instituto Avon.

A pesquisa foi baseada em dados já existentes na internet, como postagens, comentários e vídeos postados espontaneamente pelos usuários, respeitando sua privacidade. Foram analisados 286 mil vídeos e 154 mil menções, comentários e reações na forma de curtidas, compartilhamentos e repercussões em ambientes digitais, bem como mais de 164 mil postagens de notícias sobre o tema.





GÊNERO E A VIOLÊNCIA DIGITAL

A violência no meio digital é intimamente ligada à desigualdade de gênero, uma vez que a ONU estima que 95% de todos os comportamentos agressivos e difamatórios na internet têm mulheres como alvos. Dentre as vítimas de assédio online, a pesquisa indica que 75% são mulheres e meninas de até 24 anos.

“A internet é ambivalente. Ela permite uma série de possibilidades positivas, mas ela também reproduz as desigualdades que a gente tem no offline. Se a gente tem desigualdades e violações baseadas em gênero, a gente encontra isso na internet também com as especificidades da internet”, afirma Beatriz.

Beatriz Accioly, Coordenadora de Pesquisa e impacto do Instituto Avon, afirma que %u201CA gente mostra nessa pesquisa que o que acontece no digital, ele atravessa a vida das pessoas de maneira completa" (foto: Roberto Setton)


Durante a pandemia os relatos de assédio virtual subiram de 28% para 38%, e os de stalking de 23% para 32%. Do total de relatos de assédio, metade são casos que envolvem recebimento de mensagens não consensuais com conteúdo de conotação sexual, e, em seguida, aparece o envio de fotos íntimas e comentários de ódio. 



Os relacionamentos aparecem com destaque nos números do estudo. A pesquisa revela que 84% dos relatos mostram que ex-companheiros e ex-cônjuges são os mais citados em casos de stalking/perseguição. Do mesmo modo, o número de situações de violência doméstica relatadas por vizinhos subiu de 7.186 para 22.323, que corresponde a um aumento de 211%.


DIGITAL Vs REAL

Existe uma falsa separação entre o “mundo real” e o “mundo digital”, porém o estudo realizado pelo Instituto Avon mostra que o ambiente virtual é uma extensão do mundo físico, de modo que as violências sofridas na internet têm sérias consequências nas vidas das vítimas. As “agressões invisíveis” são, por vezes, mais difíceis de serem tratadas do que as agressões físicas.

“A gente mostra, nessa pesquisa, que o que acontece no digital, ele atravessa a vida das pessoas de maneira completa, gerando o adoecimento psíquico, medo vergonha, uma série de situações que vão atravessar a vida de forma geral”, afirma Beatriz.



Um ponto importante é a saúde mental das vítimas, uma vez que 30% relatam efeitos psicológicos sérios. Os dados revelam que 10% das mulheres e meninas que passaram por uma situação de vazamento de imagens apresentaram pensamentos suicidas, 35% desenvolveram medo de sair de casa e 21% excluem suas contas das redes sociais. 

Como fonte dos impactos na vida das mulheres, em especial no ponto de vista psicológico é a moralização do exercício da sexualidade da mulher. A sociedade, muitas vezes, culpa a vítima que teve a sexualidade exposta.
 
“Nas profundezas desse problema estão as desigualdades de gêneros, que viram violações muito graves, afinal de contas o direito a sexualidade, o direito ao exercício livre, consentido e sadio da sexualidade é um direito de todo mundo. Mas a gente ainda moraliza o comportamento sexual de meninas e mulheres com consequências trágicas”, explica Beatriz.





PORNOGRAFIA E VIOLÊNICA SEXUAL

Sites com vídeos de conteúdo sexual recebem grande volume de acessos todos os dias. Como aconteceu em outras áreas do entretenimento virtual, o isolamento social causado pela pandemia levou a um aumento de 35% no volume de acessos a um dos principais sites de pornografia. 

Porém os números também revelam que a desigualdade de gênero e a violência contra a mulher também estão presentes nesses ambientes. Segundo a pesquisa, dois a cada dez vídeos apresentam alguma menção à violência contra meninas e mulheres. Entre os termos mais comuns nos títulos dos vídeos aparecem: “sexo com menina dormindo/ bêbada/drogada”, “gravação por baixo da saia no transporte público”, “câmera escondida”, “exposição da ex-namorada/ pornografia de vingança” e “estupro”.

TERRA SEM LEI?

Apesar de não haver interações físicas e da possibilidade dos agressores se esconderem atrás de perfis “fake”, já existe na legislação brasileira a criminalização de diversos dos comportamentos violentos realizados por meio da internet.
 
Entretanto, apenas a existência das leis não garante que sejam executadas ou que haja uma mudança de mentalidade na sociedade, de modo a diminuir tais violências.

“Enquanto a gente, como sociedade, não discutir uma cidadania digital, que a internet é um espaço de deveres e direitos e não é uma terra sem lei, a tendencia é que a internet seja bastante insegura para meninas e mulheres, que ela reproduza as violências que a gente tem no offline e que as amplifique”, declara Beatriz.



COMPORTAMENTOS CRIMINALIZADOS NO BRASIL 

  • Artigo 21 do Marco Civil da Internet estipula que os provedores e plataformas de internet devem retirar conteúdos que violem a intimidade de usuários e usuárias e que foram compartilhados em seus serviços.
  • Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade. Pena: Reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
  • Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro: Pena: Reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.
  • Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes: Pena Detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa.
  • Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza à prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia. Pena Reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave.

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