A estudante de psicologia Joyce Luz, de 19 anos, sofre com tiques desde a infância. Ao longo dos anos, o transtorno passava desapercebido, e ela e os pais acreditavam que podia ser algo normal.
"Começou por volta dos oito anos de idade e eram imperceptíveis. Eu piscava o olho, estalava o dedo e me dava socos aleatórios. Mas não a ponto de ir ao médico", relembra.
Com o avanço da pandemia, os sintomas se agravaram e a jovem decidiu ir atrás de especialistas para investigar as causas do problema. Em maio deste ano, ela recebeu o diagnóstico de síndrome de Tourette, distúrbio que se caracteriza por tiques motores e verbais crônicos.
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No mesmo ano, também descobriu que sofria com TFM (transtorno funcional do movimento), responsável por paralisias momentâneas em suas pernas e convulsões.
"Eu já tinha os sintomas há muito tempo, mas descobri tudo junto", conta à BBC News Brasil.
Na época, seu psicólogo sugeriu que ela compartilhasse no Tik Tok todo o processo de diagnóstico. Foi então que Joyce começou a postar conteúdos informativos sobre o transtorno e também sobre seu dia a dia. Como a síndrome ainda é muito estigmatizada, ela pensou que poderia ajudar outras pessoas a seguirem com uma vida normal, já que muitos sofrem limitações.A iniciativa deu certo, e hoje ela já tem 720 mil seguidores em menos de sete meses. Alguns vídeos chegam a ter quase dois milhões de visualizações e centenas de compartilhamentos. Um dos conteúdos que mais viralizou foi quando ela explica para que serve o cordão de girassol, peça para%u202Fidentificação de pessoas com deficiência. Além deste, vídeos respondendo aos seguidores também viralizam em poucos dias.
Descoberta de outros transtornos
Quando era adolescente, por volta dos 15 anos, a maranhense foi diagnosticada com TOC (transtorno obsessivo-compulsivo), depressão e ansiedade. Mesmo diante dessas doenças, ela tentava seguir com uma rotina normal.
Meses depois descobriu que sofria com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), o que atrapalhava ainda mais seu desempenho escolar. Mesmo reportando o problema aos professores, ela não tinha apoio psicológico e ainda sofria com bullying por parte dos colegas.
"Nenhum adulto acreditava em mim. Eu passei o ensino médio tendo dificuldade de aprendizado e ninguém acreditava na minha palavra. A escola se tornou um inferno para mim", relembra.
A estudante acredita que, na época, a ansiedade foi agravada ainda mais por causa dessas situações no colégio. Já a depressão ocorreu devido à perda de um amigo próximo quando ela ainda estava no ensino fundamental.
"Não tinha coragem de pedir ajuda para ninguém. Nem para os meus pais".
Depois da descoberta, Joyce começou a fazer psicoterapia e ter ajuda de profissionais de saúde mental.
Ao receber o diagnóstico da síndrome de Tourette, ela acreditou que poderia ser o fim e a notícia foi bem traumática.
"No início não foi fácil e eu sempre me sentia um ser de outro planeta. Eu pensava: 'Meu Deus. Vou ter que conviver com isso pelo resto da vida'. Mas depois de um tempo, comecei a encontrar pessoas iguais a mim", relembra. Ao longo desses anos, ela perdeu muitos amigos, que se afastaram simplesmente por não entenderem o transtorno.
Estigma e pouca qualidade de vida
Quem sofre com a síndrome de Tourette ainda enfrenta muito preconceito no dia a dia. Muitas vezes, os tiques podem ser leves, mas também surgem de forma agressiva e permanecem por minutos e até horas.
Normalmente, quando isso ocorre, eles são desencadeados por situações de estresse e fatores ambientais como luz, barulho, entre outros. Diante dessas crises, a estudante conta que já chegou a torcer o pulso, deixou a bochecha em carne viva e até socou a garganta. Quando Joyce está em casa é mais fácil de controlar, porém, em lugares públicos ela ainda passa por situações constrangedoras.
Uma vez estava com uma amiga na praia e os tiques ficaram fortes. Ela foi até o banheiro de um estabelecimento e se trancou para não se expor. No entanto, ela gritava muito, e a dona do local disse que iria chamar a polícia.
Por conta dos tiques, a estudante ainda dizia palavras de baixo calão. Quando saiu, foi agredida. "Eu disse palavras obscenas e veio o tique de mostrar o dedo. Aí a mulher me deu um tapa na cara", relembra.
Na hora, ela e sua amiga tentaram explicar, mas a dona do estabelecimento não quis entender e ainda disse que seu marido estava armado. "Essa foi a situação mais louca que vivi", conta indignada.
Ajuda para outras pessoas
Graças à rede social, a maranhense acredita que pôde impactar a vida de muitas pessoas que também sofrem com tiques e têm medo de ter uma vida normal.
Com crescimento orgânico na rede social chinesa, ela não esperava ter tantos seguidores em tão pouco tempo e ainda conscientizar muitas pessoas, inclusive quem também sofre com a síndrome. Hoje, ela segue engajada e posta diariamente conteúdo na internet.
Desde o diagnóstico, ela também criou sua própria loja de cordões de girassol, que possibilitam a identificação de pessoas com deficiência. O acessório funciona como um crachá com foto, nome, data de nascimento, endereço, nome do contato, telefone do contato e identificação de doenças, deficiências e/ou transtornos que a pessoa tem.
A jovem conta que ao postar contando um pouco mais sobre essa iniciativa, muitas pessoas não sabiam o verdadeiro significado do colar e como ele pode ser útil em ajudar quem também sofre com esse transtorno e outras condições.
Agora, ela pretende seguir com os conteúdos nas redes sociais e dar mais voz à causa. Também escolheu cursar psicologia, justamente para ajudar pacientes com a mesma síndrome. "Eu nunca pensei em cursar psicologia. Mas escolhi depois de ser diagnosticada, já que é muito escasso profissionais que tratam essa síndrome e outras doenças. Como não tive essa ajuda também, segui numa escola normal e foi horrível", diz. Ela ainda tem o sonho de cursar medicina como ensino superior.
Joyce diz que deseja ter uma vida normal e espera poder mobilizar mais pessoas no futuro. Enquanto vai para faculdade, ela divide seu tempo no tratamento da doença, que envolve acompanhamento com psicólogos, neurologistas, psiquiatras e terapeutas ocupacionais.
O que é síndrome de Tourette?
O transtorno se manifesta por tiques que podem ser motores ou verbais. Ele ocorre devido uma desregulação do circuito mesolímbico, região do cérebro que é responsável pelos pensamentos, emoções e movimentos. A síndrome também pode ter origem genética.
"Existe uma possibilidade que uma mutação no gene SLITRK1 seja uma causa de Tourette à parte, mas acontece em casos isolados", explica Marcelo Heyde, psiquiatra e professor da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
Geralmente, se inicia na infância e é menos comum na adolescência e vida adulta. Também é mais frequente em meninos do que em meninas. "A evolução clássica do transtorno ocorre a partir dos oito e dez anos de idade. Na adolescência vai piorando e dentro do primeiro ano surgem os tiques vocálicos", destaca Marcela Ferreira Cordellini, neurologista do Hospital INC (Instituto de Neurologia de Curitiba) e especialista em distúrbios de movimento.
Assim como Joyce, quem sofre com a síndrome também tem maior predisposição de receber o diagnóstico de TDAH e transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Segundo Ana Hounie, psiquiatra e colaboradora do PROTOC do Hospital das Clínicas de São Paulo (HC FMUSP), estima-se que o TOC afeta 2% da população. Já a síndrome de Tourette, 1%.
Os tiques são variados e podem ser desencadeados por situações estressantes, condições ambientais e até alimentos estimulantes como o café. Podem começar com movimentos simples que são piscada de olhos, movimentos corporais e de repetição, sons com a boca e outros.
"A pessoa consegue segurar por um tempo, mas a vontade vai acumulando e tem horas que é impossível controlar. É involuntário", explica Hounie, que também é doutoranda em ciências pela Faculdade de Medicina da USP.
Tiques mais comuns
Existem muitos tiques, eles podem se manifestar de diferentes formas e ter nomenclaturas específicas. Entre o mais frequentes estão:
- Coprolalia: é o tique provocado por palavras obscenas
- Ecolalia: repetição das mesmas palavras ditas por outra pessoa
- Palilalia: repetição das mesmas palavras
- Copropraxia: gestos obscenos, principalmente "dedo do meio".
Tratamento
No caso da síndrome, não se pode falar em cura. O mais correto é a remissão (atenuação) do transtorno.
O tratamento é feito de forma multidisciplinar e deve seguir com médicos especializados.
"O mais recomendado é tratar com um neurologista que trate distúrbios de movimento. Além dele, psiquiatras, já que muitos pacientes sofrem com outros transtornos", diz Cordellini.
A especialista destaca que, quanto mais cedo o paciente receber o diagnóstico, maior será a chance de ter uma qualidade de vida e controle dos sintomas. Vale lembrar que o acompanhamento dura anos, podendo ser pelo resto da vida.
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