“Baseado em possíveis fatos reais”, o filme Não olhe para cima se apresenta como uma sátira aos diversos dilemas enfrentados pela sociedade atual: negacionismo, capitalismo, machismo, o poder da mídia, entre outros. O longa dirigido por Adam Mckay (A grande aposta e Vice) foi lançado pela Netflix na sexta feira (24/12) e já está entre os top dez da plataforma.
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Satirizando o negacionismo nos Estados Unidos e em outras partes do mundo, como o Brasil, Não olhe para cima é recheado de frases como “o melhor é esperar e avaliar” e um literal “não olhe para cima” (para o asteroide), que remete à demora na tomada de decisão por alguns líderes mundiais frente à pandemia de COVID-19.
Quando a sobrevivência e o capitalismo se esbarram, a resposta à pergunta “o que importam esses trilhões de dólares quando todos vamos morrer?” é um irônico “ah não, e se ficarmos ricos e ilesos?”. A frase tem uma correspondente aqui no Brasil: “é melhor perder a vida do que a liberdade”.
Representação fictícia de problemas reais
Muito além da sátira ao negacionismo, que é explícito na obra, a representação das personagens femininas levanta o debate do machismo. O filme mostra a presidente, bonita, loira e digna da capa da Playboy, que chegou ao poder e se nega a deixar que o asteroide afete sua popularidade e sua campanha.
A âncora do jornal também loira, que sempre está perfeitamente alinhada e glamurosa, e a cientista que é desacreditada por ser mulher e é questionada pela sua aparência.
A desqualificação da personagem da Jennifer Lawrence se inicia quando o crédito pela descoberta vai para o professor vivido por DiCaprio.
Posteriormente, ao se indignar com a falta de seriedade com a questão por parte dos âncoras do jornal, a cientista é taxada de histérica e vira meme, o que não ocorre com o professor, quando faz o mesmo na segunda metade do filme.
“O filme nos diz sobre isso, sobre essa invalidação do discurso através da loucura”, declara Lívia Souza, doutora em ciência política e feminista. “Tem o tempo inteiro essa ideia de invalidar o discurso da mulher como se ela valesse menos, como se ela fosse histérica, como se qualquer fala da mulher fosse mal vista. Tem uma forma de se falar que é masculina, quando se desvia disso é visto como loucura”, completa.
Outro ponto de reflexão a ser analisado a partir da representação da personagem de Lawrence é a estética, aspecto apresentado, algumas vezes, ao longo do filme, mostrando uma realidade que as mulheres enfrentam no mercado de trabalho. Em diversos ambientes, a aparência da mulher, mesmo em cargo de chefia ou detentora do conhecimento a ser divulgado, é colocada em primeiro plano, e sua fala é deixada de lado.
Existe uma dualidade no padrão de beleza imposto pela sociedade, da mulher bonita, bem arrumada e geralmente magra, mas que, quando se encaixa nesse padrão, sua capacidade ali é duvidada e recorrentemente questionada com a famigerada pergunta “dormiu com quem pra conseguir esse cargo?”
“Que lugar é esse que a mulher tem que ter? Que sua competência vale muito menos que sua aparência, mas se sua aparência for se enquadrar em um modelo ideal ainda sim ela não deveria estar ali. É sempre o não-lugar que as mulheres trabalham”, aponta Lívia.
Crítica certeira
Extrapolando o ambiente do filme, a caracterização da personagem foi alvo de comentários e críticas nas redes sociais. O corte de cabelo foi considerado um “crime” contra a beleza de Jennifer Lawrence. A caracterização proposital para a personagem no filme foi alvo de críticas para a atriz na vida real, o que evidencia a reflexão proposta no filme.
No caso da política brasileira, independentemente do posicionamento político, as mulheres são recorrentes alvos de comentários machistas e de memes. A senadora Simone Tebet foi chamada de descontrolada durante a CPI da COVID-19, Janaina Paschoal foi alvo de diversos memes a comparando à filmes de exorcismo e bandas de heavy metal, Manuela D’Ávila foi taxada de patricinha, Áurea Carolina, então candidata a prefeitura de BH foi questionada como cuidaria da cidade e do filho pequeno, um questionamento que nunca é feito aos homens.
“No caso da Dilma, por exemplo, eu lembro da segunda posse dela, o vestido dela comparado à roupinha de botijão de gás, um nível baixo das pessoas falando da roupa da presidenta que não tinha cabimento nenhum, que não se faz com nenhum homem na presidência”, lembra Lívia.
*Estagiária sob a supervisão de Márcia Maria Cruz