Jornal Estado de Minas

MARVEL

Shang-Chi: representatividade e autoestima de amarelos

Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis foi lançado nos cinemas brasileiros no dia 2 de setembro de 2021 e no dia 12 de novembro de 2021 na plataforma de streaming Disney+. O filme apresenta um novo herói ao MCU (Universo Cinematográfico da Marvel), Shang-Chi, interpretado pelo ator sino-canadense Simu Liu e conta com direção do nipo-americano Destin Daniel Cretton e co-roteirização do sino-americano Dave Callaham.





A trama mostra a origem de Shang-Chi e a sua relação conturbada com seu pai, Wenhu (Tony Leung). Além deles, há um número considerável de personagens, amarelos em sua maioria, que recebem atenção e tempo de tela. Sem a estereotipação comumente vista até mesmo nas HQs do herói, o filme tenta quebrar paradigmas sobre pessoas amarelas sem precisar forçar nenhum elemento goela abaixo do espectador, que recebe essas informações de maneira sutil.

Representações amarelas na mídia

Amarelos possuem ascendência proveniente do leste-asiático, a exemplo do Japão, China, Mongólia e as Coreias, mas não são, necessariamente, asiáticos. Uma pessoa amarela nascida no Brasil não deve ser chamada de asiática, pois o primeiro termo se refere à  etnia (assim como negros e brancos) e o segundo se refere à nacionalidade.

Não é fácil achar representações amarelas na mídia, principalmente em regiões onde a concentração dessa população é baixa. “São poucos os espaços que temos na mídia e, quando há, normalmente é uma representação estereotipada”, comenta Bruna Tukamoto, produtora de conteúdo.




 

“Também não vemos amarelos em elencos de novelas e, quando tem, são atores que estão ali apenas para ‘serem amarelos’, nada mais”, complementa ela, evidenciando a falta de profundidade que é dada a esse grupo em produções audiovisuais.


Em entrevista à Revista Claudia, a atriz nipo-brasileira Jacqueline Sato comenta que apenas aos 15 anos pôde ter alguma referência de uma pessoa parecida com ela na televisão aberta. Foi em Malhação, que introduziu Miyuki, interpretada pela atriz Daniele Suzuki em 2003. “Antes disso, ligava a TV e não via ninguém parecida comigo. Eu não me sentia parte de nada e sonhava em poder ser diferente”, diz Jacqueline.

Hide Haseyama, estudante de teatro, conta que já teve vários problemas de autoestima pela falta de representatividade e que se incomodava com várias representações estereotipadas. “Eu não me via daquele jeito, e isso deturpou a maneira com que eu me enxergava. Sou japonês e não sou bom em exatas? O que é isso? Por que eu sou assim? Já cheguei a pensar que era um erro por tudo isso”, comenta.





Em um desabafo, Hide também comenta que fez um teste para a gravação de um material publicitário e foi aprovado. Já com a gravação e o teste de COVID-19 agendados, recebeu uma ligação de sua agência falando que o diretor não o queria no elenco, pois precisava de uma família brasileira e um “asiático” não faria sentido no contexto planejado. Num depoimento semelhante, o ator Carlos Takeshi conta que já ouviu de um produtor de elenco que “ator japonês marca muito, chama muito a atenção”, e que por isso, não são contratados com frequência.


'Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis' conta com elenco e equipe técnica majoritariamente amarela. (foto: Marvel/Divulgação)

Infância, representatividade e autoestima

Um elemento que Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis faz brilhar aos olhos é o esforço feito para que não apenas o elenco tenha sido quase que completamente amarelo, mas também que a produção criativa tivesse uma equipe amarela. “Antes de assistir ao filme, eu já tinha escutado toda a trilha sonora porque ela foi criada por amarelos. Quando escutei, soube que o filme seria bom”, comentou Lívia Kaori Shiba, estudante e artista, sobre suas expectativas em relação à produção do longa.



“Quem pertence a um povo é mostrado, e se eu estou sempre vendo rostos diferentes do meu, como crio para mim a ideia de que sou ‘normal’, e não ‘exótico’? Eu tomo consciência sobre mim e sobre a minha existência a partir do momento em que alguém me conscientiza sobre isso”, explica Eliana Chen, psicóloga clínica.




 
A representatividade é fundamental para que as pessoas possam se ver e, a partir dessa visibilidade, desenvolver a autoestima. “A ideia de representatividade é demonstrar variedades, e se eu não vejo diversidade, possivelmente vou me achar um ‘ponto fora da curva’”, complementa ela. É por isso que a representatividade em Shang-Chi se faz tão importante para grupos amarelos.

O novo filme da Marvel, que se baseou em um personagem que nunca teve muita popularidade, acabou tendo maior liberdade para desenvolvimento criativo, principalmente por não precisar se prender a conceitos sólidos na história do herói e do vilão. “Eu não sabia o que esperar do filme, porque não tinha lido sobre ele e nem conheço direito a história da Marvel, mas o que mais me marcou foi a tentativa de se despirem de estereótipos”, comenta Bruna.


A problemática de não se representar - ou representar de maneira estereotipada - cria receios entre pessoas racializadas. As associações entre representações estereotipadas também têm feito com que muitos jovens amarelos negassem sua ancestralidade por vergonha, e chegassem a se considerar um “erro” por não atenderem aos padrões da branquitude.





Bruna teve a autoestima afetada por conta dessa falta de representatividade ao ponto de evitar fazer amizade com outras pessoas amarelas. “Achava que eram muito diferentes de mim. Sempre fui muito comunicativa e extrovertida, o oposto do ‘modelo’ de asiático. Estar junto de amigos amarelos daria abertura para ouvir coisas como ‘olha lá, os estranhos reunidos’, ou ‘por que vocês, ‘japas’, andam sempre juntos?’. Sempre quis mostrar que era diferente, amava ser chamada de ‘japa do Paraguai’”, conta ela.


Quem sempre viveu em um ambiente amarelo, geralmente sofre bastante quando se distancia desse meio. Lívia também conta que quando sai de sua bolha, se sente sozinha, deslocada e que é comum ser chamada de palavras aleatórias da língua japonesa, como “sushi”, “sashimi”, “arigatô”. Apesar de ser frequente, sempre fica chocada quando isso acontece. Ela também comenta sobre as dificuldades de ser fã de k-pop e amarela ao mesmo tempo. É comum, nesse meio, ter sua ancestralidade questionada, ou ser frequentemente fetichizada por suas características físicas.

Muitos amarelos nem chegam a se entender como tal até um período mais avançado da adolescência ou da vida adulta. “Eu não achava que tinha olho puxado até minha mãe me falar que era descendente de japoneses. Foi um choque para mim. Eu achava que era branco”, diz Enzzo Sato, estudante de história.





“O conceito de autoestima se associa a várias ideias”, explica Eliana. “A formação de um Eu é atrelada à minha identificação com o outro, e se eu vejo gente parecida comigo ocupando determinados espaços, significa que eu também posso ter um lugar lá”, diz. Isso é particularmente importante para as crianças racializadas, pois estão num período de desenvolvimento e construção de identidade, além de serem a parte inicial da estrutura social.


Crescer naturalizando ideias sobre quem tem, ou não, valor é parte de uma estrutura que precisa de grupos subjugados para manter seus privilégios. “Estereótipo serve para limitar pessoas a ideias em uma caixa. É assim, e ponto. Desconsidera muitas variáveis na criação, dificuldades reais, como fisiológicas, geográficas e financeiras, e acesso - ou não - a privilégios”, afirma Eliana.

Shang-Chi era um dos heróis mais desconhecidos do universo da Marvel. (foto: Marvel/Divulgação)

Mídia e representatividade

Ter uma equipe que faz parte do grupo étnico a ser representado nas telas é extremamente importante para que haja coerência nos conteúdos produzidos. Parece óbvio, mas há exemplos bastante negativos até mesmo na Disney, empresa que detém os direitos da Marvel.





Ao contrário dos vários pontos positivos de Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis, o filme live-action de Mulan teve muitos pontos questionáveis em relação à representação e à representatividade. O filme, lançado apenas em streaming no Disney , sofreu várias críticas por parte da comunidade amarela.


“Tenho ciência de que qualquer produção de grandes empresas vai ser feita visando o lucro, então todo tipo de representatividade que eles fazem, pensa no lucro”, diz Enzzo sobre os filmes.
 
Em um contexto de preconceitos e visões  atribuídas a grupos minorizados, representações não estigmatizadas são importantes. "Colocando tudo isso na balança, acho que é importante a gente não supervalorizar como algo revolucionário, mas também reconhecer que é importante, sim. Nos faz pensar que, provavelmente, a próxima geração de crianças amarelas vai crescer menos complexada que a gente”, afirma Enzzo.