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Estado de Minas Carnaval

Carnaval elitista: festas privadas segregam e evidenciam racismo estrutural

Historicamente perseguido, carnaval de rua foi cancelado por conta da pandemia da COVID-19, mas eventos privados continuam permitidos


25/02/2022 13:11 - atualizado 25/02/2022 13:33

Foto de carnaval de rua do Bloco Então, Brilha de 2020, um mês antes de as restrições em Belo Horizonte serem estabelecidas por conta da pandemia. Há um trio elétrico e várias pessoas aglomeradas
Carnaval de rua foi cancelado em 2022, mas festas privadas com ingressos pagos e convites continuam sem restrições rígidas (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)


O carnaval de rua foi cancelado por conta da pandemia do coronavírus em várias cidades brasileiras, principalmente naquelas em que a festa é tradicional e atrai um número expressivo de pessoas. Um levantamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM) com 2.193 prefeituras de todas as regiões brasileiras, entretanto, aponta que 24,5% ainda permitirão eventos privados com o controle pelo passaporte da vacina como argumento de segurança sanitária.

Apesar de parte dos estados e municípios terem cancelado o ponto facultativo dos servidores públicos, os 4 dias de carnaval, que começam nesta sexta-feira (25/02), ainda terão centenas de festas e shows variando em porte e em valor, podendo chegar a R$700. Eventos pré-carnaval já vêm sendo realizados há alguns dias, com destaque a um show da cantora Anitta no Memorial da América Latina, em São Paulo (SP), que fez parte de um festival de cinco dias que recebeu autorização para comportar até 12 mil pessoas.

 Apesar de a organização ter alegado seguir todas as exigências de segurança sanitária, o festival recebeu muitas críticas, principalmente pelo fato de aglomerar tantas pessoas em meio à pandemia, mesmo com as proibições do carnaval de rua na cidade. “Já que a variante [do vírus da COVID-19] ômicron exigiu uma dose extra de cuidado, por que não cancelar o Carnaval como um todo?”, questiona uma postagem da página Lélia Gonzalez Vive no Instagram. 


Elitização do carnaval

Em 2022, devido à pandemia da COVID-19, muitas das festas populares foram proibidas, mas eventos privados continuam permitidos, revelando uma contradição sanitária e um Estado favorável aos interesses particulares. “As festas privadas são segregacionistas pelo simples fato de serem pagas ou feitas para convidados. No nosso país, sabemos qual a cor da população que, nesse momento de grande crise econômica, está podendo pagar caro para ir a essas festas”, comenta a historiadora Melina de Lima.

Na capital carioca, a decisão do prefeito Eduardo Paes (PSD) em manter os desfiles na Sapucaí gerou repercussão, principalmente sobre a ineficácia do passaporte vacinal em casos como esse. “Não me parece adequado simplesmente diferenciar eventos carnavalescos em espaços fechados daqueles feitos em áreas abertas. Infelizmente, isso significa que pode não ser seguro ter carnaval na Sapucaí, muito menos cortejos de blocos em espaços fechados”, comenta o vereador Tarcísio Motta (Psol), que chamou a liberação de bailes em clubes e locais fechados de “elitização do carnaval carioca”.

As primeiras contaminações da COVID-19 no Brasil vieram de pessoas que viajaram para a Europa, apesar de serem comumente associadas à folia de 2020. Milton Cunha, que estudou o carnaval até seu pós-doutorado, comenta que esse pensamento tem relação com o conservadorismo que, historicamente, atua contra artistas populares. "O samba apanha desde que ele nasceu, é coisa de preto, de pobre, de comunidade”, diz.
 

As origens do carnaval

Para estudiosos, a segregação presente no carnaval é apenas um reflexo do racismo estrutural da sociedade. “Em 2022 ainda estamos tentando nos livrar dessa falsa ideia de democracia racial, como se não bastassem os horrores do período da escravidão. No [período] pós-abolição tivemos políticas do Estado para aniquilação da raça negra. Precisamos reconhecer que vivemos num país extremamente racista para podermos acabar com esse mal”, diz Melina de Lima. “Mas o carnaval é negro, e é uma resistência nossa. Nossa luta é ancestral e ela continua dia após dia”, completa.

O carnaval é um evento importado que recebeu influências de culturas negras e indígenas, sendo perseguido e atacado durante toda a sua história. Apesar de seu teor relativamente democrático por unir diferentes idades, classes econômicas e sociais, além de diversas culturas, o momento atual não é agradável, principalmente para os grupos responsáveis por construir praticamente toda a estrutura carnavalesca.

Tendo elaborado gêneros musicais para a folia, como o samba, o samba-enredo, o axé e o maracatu, o povo negro também foi responsável por ter criado algumas modalidades da festa, como os cordões, as escolas de samba e muitos blocos de rua populares como forma de expressão e contestação das pessoas negras e periféricas.

“O carnaval, na verdade, sempre teve uma perseguição histórica da polícia a blocos, escolas de samba e terreiros, que se mantiveram firmes graças à resistência, por exemplo, de mães e tias pretas, como Mãe Aninha, Mãe Senhora e Tia Ciata”, comenta Melina.

Responsável por colocar em relevância personalidades negligenciadas pela “história oficial” do Brasil, o carnaval tornou-se um instrumento de resistência e celebração. “A festa contribuiu decisivamente para levar ao conhecimento da população a existência e a importância de nomes como Zumbi dos Palmares, Chico Rei e Chica da Silva, ignorados nos livros escolares”, conta o jornalista e pesquisador do carnaval Rafael Rezende. Para ele, a cultura negra mantém-se viva e ativa nessas celebrações a partir do protagonismo dado a ela. “Pelas vias culturais, pode encontrar o espaço que ainda lhe é negado”, conta.

Além disso, o carnaval também é um meio de resgatar a ancestralidade de povos negros. “Vivemos num país que, ainda em 2022, liga tudo que é de origem africana a algo ruim, inferior. Então, a importância dessa festa se mostra quando vemos nossa cultura sendo exaltada, aplaudida, reverenciada. É mais um motivo de orgulho”, comenta Melina, que ressalta a idealização sobre o evento, nem sempre positiva.

“Infelizmente, ainda vemos muito a erotização da mulher negra, por exemplo. No carnaval, está liberado ser pecaminoso, então está liberado endeusar a mulher preta. Para mim, não é uma questão de esquecer o preconceito, mas sim de relevar, porque no carnaval pode tudo”, completa.

Nas redes sociais, internautas comentam sobre a elitização do evento. “Nenhuma privatização doeu tanto quanto a do carnaval”, comenta um deles.



 
* Estagiária sob supervisão da subeditora Ellen Cristie.  
 


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