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Estado de Minas EMPATIA SELETIVA

'Kiev não é Iraque ou Afeganistão': racismo e xenofobia na guerra da Rússia

Desde o início dos ataques da Rússia à Ucrânia, comentários racistas na mídia ocidental e nas redes sociais; pessoas negras têm sido impedidas de se refugiarem


02/03/2022 09:00 - atualizado 02/03/2022 14:04

Montagem com imagens de pessoas negras, tentando pegar um trem
Há relatos de pessoas negras que estão sendo impedidas de fugir das cidades ucranianas (foto: Montagem/EM)


As imagens produzidas na Ucrânia mostram, quase que em tempo real, o horror da guerra, que traz morte e destruição. A dor gerada pelos conflitos é para todos, mas a comoção e a empatia parecem ser destinadas a um grupo específico, a ver comentários de especialistas, jornalistas e mobilização nas redes sociais. Também há inúmeros relatos de pessoas negras que tentaram deixar as áreas de conflito, mas foram impedidas, o que acende o alerta se preconceito e racismo estão presentes também neste momento de desespero.
 
“É muito emocional para mim porque eu vejo europeus com olhos azuis e cabelos loiros sendo mortos todos os dias com mísseis de Putin, seus helicópteros e seus foguetes”, comentou o ex-procurador-geral adjunto da Ucrânia, David Sakvarelidze. No último sábado (26/02), em entrevista à BBC, ele disse estar comovido por pessoas brancas estarem sendo mortas em uma guerra.
  
 
Na última quinta-feira (24/02), a mídia foi tomada por relatos dos primeiros ataques russos à capital ucraniana, Kiev. Com o desenrolar dos eventos, comentários de alguns jornalistas vieram à tona revelando não apenas um conflito físico entre Rússia e Ucrânia, mas também uma guerra de narrativas que se criou sobre a representação de pessoas brancas versus não-brancas.

Um dos exemplos que mais circularam nas redes sociais foi a fala de Charlie D’Agata, do canal norte-americano CBS News. Na ocasião, na última sexta-feira (25/02), o jornalista disse que a guerra entre a Rússia e a Ucrânia não era esperada por se trararem de países europeus.

“Esse não é um lugar, com todo respeito, como Iraque, ou Afeganistão, que tem visto conflitos por décadas. Essa é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia. Preciso escolher essas palavras com cuidado, também. É uma cidade que você não espera que isso aconteça”, comenta o jornalista ao vivo.

Horas após a transmissão, D’Agata pediu desculpas em suas redes sociais, mas os comentários continuaram a ser amplamente criticados e apontados como ferramenta de desumanização de pessoas não-brancas e não-europeias, principalmente daquelas que pertencem ao Oriente Médio e que sofrem com conflitos armados.

Outros casos


Também foi no dia 26 que o jornal The Telegraph publicou um artigo do jornalista Daniel Hannan, que escreveu: "Eles se parecem tanto com a gente. Isso é o que faz ser tão chocante. A Ucrânia é um país europeu. Sua população assiste Netflix e tem contas no Instagram, votam em eleições livres e leem jornais não censurados. A guerra não é mais uma coisa que atinge populações empobrecidas e remotas. Pode acontecer com qualquer um".

No domingo (27/02), o apresentador inglês da Al Jazeera, Peter Dobbie, também disse que os ucranianos que estão fugindo do país não são como os refugiados, mas sim pessoas prósperas que pertencem à classe média.

“Essas são pessoas prósperas, de classe média. Obviamente, não são refugiados tentando fugir de áreas como o Oriente Médio, que ainda estão em estado de guerra. Essas não são pessoas tentando fugir do Norte da África. Eles se parecem com qualquer família europeia que você poderia ter como vizinhos”, comenta.


A fala é emblemática por ocorrer próxima do período em que migrantes africanos que moram na Ucrânia são impedidos de embarcar em trens para fugir da região.

Em comunicado publicado nas redes sociais, a Al Jazeera pediu desculpas, esclarecendo que “essa violação desse profissionalismo será tratada por meio de medidas disciplinares” que que os comentários “eram inapropriados, insensíveis e irresponsáveis”..

Racismo, xenofobia e orientalismo

Prédio bombardeado na Ucrânia. Há muitos destroços e um homem revira-os em busca de algo que possa ser recupeado
Desde a última quarta-feira (24/02), a mídia tem feito coberturas pesadas sobre os conflitos entre Rússia e Ucrânia (foto: Daniel LEAL/AFP)
 

Assim que os primeiros ataques russos foram noticiados, a foto de uma senhora branca de olhos azuis ferida começou a circular nas redes sociais. A imagem gerou comoção, sendo amplamente compartilhada em jornais do mundo inteiro e nas redes sociais como o “retrato da guerra”.

Imagem de uma senhora branca de olhos claros sangrando. Sua cabeça está enfaixada e ela olha para a câmera
Imagem de uma senhora branca de olhos claros viralizou na mídia e nas redes sociais (foto: Wolfgang Schwan/Anadolu Agency via Getty Images)

Danilo Matoso, arquiteto formado pela Universidade Federal de Minas Gerais e membro do veículo de imprensa O Partisano, comenta que a circulação dessa imagem específica é proposital e visa “criar, justamente, um efeito de empatia com as classes média e alta ocidentais, sobretudo as formadoras de opinião. A imagem do conflito corrente na Ucrânia deve ser a de uma civil inocente ferida, e não da milícia neonazista do Batalhão Azov, que nos últimos oito anos queimou pessoas vivas e matou ativistas antifascistas a pauladas”.

“São jornalistas que sentem empatia por um regime neonazista que ‘se parece com eles’, mas que não sentiram empatia pelos milhares de mortos e perseguidos por esse mesmo regime, ou pelas dezenas de guerras, pobreza e miséria promovidas pelos chamados ‘países civilizados’ em todo o restante do mundo”, completa Danilo.

Um livro de 1978 explica bem como funciona essa dinâmica: “Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente”, de Edward Said, fala sobre alguns dos dogmas desse conceito, que objetivam colocar o Ocidente como racional, desenvolvido humanitário e superior, e o Oriente como aberrante, subdesenvolvido e inferior. Aplicando-o a qualquer sociedade não-branca, entende-se como a opressão, a exploração e a miséria podem ser aceitos e normalizados pela mídia.

Comoção nas redes

A desumanização de pessoas não-brancas, no entanto, ainda causa comoção nas redes sociais. “Não deveria, mas estou um pouco impressionado com a naturalidade com que a imprensa europeia/ocidental está falando ‘não merecemos uma guerra aqui, pois somos brancos”, diz um internauta.


Um recente conflito em que crianças palestinas foram atacadas por israelenses também levantou o debate sobre a empatia seletiva. “Vai ter cobertura internacional? Ou isso que nós vemos no vídeo não são os humanos europeus civilizados que merecem nossa empatia?”, diz um usuário do Twitter ao citar um vídeo do ocorrido.


Algumas páginas também fazem piada em tom de crítica:




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*Estagiária sob a supervisão de Márcia Maria Cruz 


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