Marinhos é uma das quatro comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Palmares em Brumadinho. Está localizada no Vale da Serra da Moeda, a cerca de 62 km de Belo Horizonte e foi fortemente impactada pelo rompimento da barragem em janeiro de 2019. O líder dessa comunidade, ainda associado à sua fundação, é Antônio Alves da Silva, conhecido como Seu Cambão.
Nascido em Vargem do Sapé e filho de Olandina Alves da Silva, mãe solo, a referência paterna de Antônio foi seu avô, Joaquim Gerônimo, o qual carinhosamente chamava de “Inhô-pai”. Aos 74 anos, apesar da voz mansa, Seu Cambão tem uma história sólida e repleta de lutas. Hoje, ele é o primeiro mordomo de São Benedito e faz parte da Pastoral da Família, oferecendo o curso de noivos e de batizado.
Leia Mais
'Largo do Rosário' é reconhecido como patrimônio cultural de Belo HorizonteSérgio Camargo é exonerado da Fundação Palmares para se candidatarCongados e reinados mostram a identidade negra Jovem denuncia racismo em academia: 'Dinheiro vale menos porque sou preto?'Espetáculo apresenta a religiosidade de matriz africana por meio da dança'Por favor, case com um branco', disse professor demitido por racismoMovimento indígena entrega petição 'Basta de violência' ao MJAcademia Brasileira de Ciências elege 1ª presidente mulher em 105 anos“Minha amada, Leide”
Seu Cambão se autodescreve como um passarinho de uma só asa. O falecimento de sua esposa, de quem fala com muito carinho - “minha amada, Leide” - ainda o afeta, mesmo depois de três anos. “Estou sem ela em matéria, mas não a perdi e sei onde ela está: no céu. Essa saudade só vai passar no nosso próximo encontro”, conta ele.
De fato, foi sua amada, Leide, que o motivou a continuar explorando a cultura de seu passado e de sua comunidade, o que resultou em um livro sobre sua própria história. “Ela gostava muito da cultura, vivia falando sobre os antepassados. Eu, como gosto de manter essas coisas antigas, escrevi um livro de pensamentos meus e de minha amada: ‘Olhar o Passado, para Viver o Presente”.
Publicado em 2021, o livro faz parte do projeto de extensão Oficinas Psicossociais – fortalecendo vínculos familiares e comunitários em Brumadinho, que integra o programa PUC Minas e Brumadinho – Unindo Forças e conta com um capítulo inteiro para contar a história de amor de Seu Cambão e de Leide: “eu e minha amada”.
Ações comunitárias
“Cambão é uma peça de madeira encaixada sobre o pescoço dos bois para que possam ser atrelados. E esse é o trabalho social que realizo, de ligar as pessoas e as comunidades”, explica o quilombola.
Com o incentivo de sua esposa, Seu Cambão foi responsável por liderar diversos movimentos que levaram uma qualidade de vida melhor a diversas famílias de Marinhos e região, incluindo Belo Horizonte.
“Sempre gostamos de fazer trabalho social para pessoas menos favorecidas. Na comunidade, já estávamos acostumados, todos os lugares tinham pessoas precisando de ajuda. Um dia, minha amada disse que precisávamos fazer alguma coisa, dar um jeito de melhorar e começamos com duas viúvas. Daí, surgiu o grupo de roça ‘Quem Planta e Cria, Tem Alegria”, relata Seu Cambão sobre o sustento por meio da agricultura. “Foi fantástico. Ajudou muitas pessoas de rua de Belo Horizonte, da APAE, da Sociedade de São Vicente de Paula… dividíamos tudo entre as instituições”, completa ele.
Após a partida de sua esposa, entretanto, Seu Cambão perdeu o rumo e teve que descontinuar o grupo de roça. Apesar disso, pediu a Deus que mostrasse um novo caminho para continuar seu trabalho de servir a outras pessoas.
Depois de um período sofrido de mendicância para conseguir insumos para suas plantações e ajudar outras famílias, Seu Cambão foi convidado para um encontro com a Fundação Alphaville, no qual pôde aprender a fazer seu próprio adubo orgânico. Com essa nova técnica, foi contribuindo com as atividades na roça até se encontrar em seu ofício atual: o bordado.
Seu Cambão começou aos poucos e foi se aperfeiçoando, segundo ele mesmo, com forças de Deus e de sua amada, Leide. “Deus tem sido muito generoso comigo. Já perguntei a Ele o que vê em mim e já agradeci pelo tanto que fez por mim. Pedi que me mostrasse o jeito para bordar, e Ele o fez. Meus bordados não têm preço”, explica ele, que, realmente, não vende seu trabalho e, sim, troca por alimentos que compõem cestas básicas que são doadas a moradores da comunidade que estão passando por dificuldades financeiras.
Além de tudo isso, Seu Cambão também é atual presidente da Associação Água Cristalina 2000, iniciada pelos padres da Congregação dos Sagrados Corações. Responsável pelo fornecimento de água limpa a baixo custo para oito comunidades quilombolas, a associação possui o próprio poço artesiano. “Foi uma história sofrida, mas foi bonita. E a gente continua mantendo essa relação com a água. É água de qualidade na torneira de todos”, comenta ele.
Guardião cultural
Seu Cambão também é uma figura importante na conservação das manifestações culturais de seu povo, como o Congado de São Benedito, do qual participa há anos e, hoje, é primeiro mordomo, tradição herdada de sua sogra.
Ele também é responsável por guardar, em sua casa, relíquias do Congado de São Benedito, e por colher sementes de caeté e latinhas para fazer instrumentos usados nos pés durante as apresentações da festa. Para Seu Cambão, um dos bens mais preciosos é uma bandeira de Nossa Senhora do Rosário, que estava em processo de restauração há mais de um ano.
“Essa bandeira ficava na casa do meu padrinho macedonho, aquele que me levou à pia batismal. Depois que ele faleceu, seu filho quis deixar a bandeira comigo e, então, juntamente com o santo bispo Dom Vicente e Santa Maria, jurei que daria um jeito de restaurá-la”, conta ele, que também é Ministro Extraordinário da Eucaristia.
Em seu livro, Seu Cambão explica que preservar sua cultura faz parte da resistência de ser quilombola. “Para mim, ser quilombola é ser uma pessoa resistente, resistir em minha cultura, naquilo que temos na comunidade. Por exemplo, quando a Ferrous, a mineradora, queria acampar aqui na nossa região, eu fui um dos “cabeças-de-ferro” que lutou para que ela não entrasse, para proteger a nossa cultura”, explica.
Ouça e acompanhe as edições do podcast DiversEM
*Estagiária sob a supervisão de Márcia Maria Cruz