Jornal Estado de Minas

QUEBRAR TABUS

Conheça a primeira mulher trans de Ouro Branco a fazer redesignação sexual


A Igreja Matriz de Santo Antônio, uma das mais antigas de Minas Gerais, mostra a importância de Ouro Branco, cidade na Região Central. Datada de 1779, a construção marca o período colonial, quando o povoado ainda era parte de Ouro Preto. A arquitetura barroca da Matriz contrasta com o urbanismo da praça em frente, inspirada no modernismo. Foi nesse encontro entre dois tempos que Spencer Jill Hastings recebeu a reportagem do Estado de Minas, em 5 de abril de 2022. A data é muito simbólica para ela, pois é o dia seguinte ao seu renascimento.




 
"Sempre me vi como mulher desde criança. Vestia as roupas das minhas primas, inclusive apanhei por causa disso. Na minha cidade, fui a primeira transexual a procurar o Sistema Único de Saúde (SUS)", afirma.

Depois de iniciar o processo de transição de gênero no centro de saúde da cidade, ele pretende ir para Belo Horizonte para fazer a cirurgia de redesignação sexual no Hospital Eduardo de Menezes. Ao olhar para o espelho, ela se sente no corpo errado. Então, iniciar o processo de transição foi o início de uma libertação. "Sentimento de alívio, ansiedade e de muita esperança".


 
Depois da publicação da série especial Bonequinhas, na qual o EM contou como é a vivência de travestis e mulheres trans na capital mineira, fomos a Ouro Branco para acompanhar o processo de transição de Spencer Jill Hastings, de 27 anos.





Feminilidade destacada

Spencer estava com os cabelos longos cacheados, usava esmalte na cor verde esmeralda, conjunto de moletom e tênis, bem ao estilo de uma jovem despojada dessas dos filmes norte-americanos de high school. Estava maquiada, com o delineador nos olhos perfeito e feliz da vida com o resultado da maquiagem feita com os produtos da Avon, marca que ela fez questão de destacar. 


Com 13 mil seguidores no Instagram, ela é influenciadora, mas não é embaixadora da empresa de beleza. Destaca que é só consumidora mesmo. Tem uma gratidão, pois a maquiagem permite a ela se ver, quando olha no espelho, como gostaria de ter nascido. O batom ressalta não só a beleza, mas a feminilidade.

(foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA PRESS)


O dia  4 de abril de 2022 é o renascimento de Spencer, por ter sido a data em que a advogada Janaína Vieira Vargas deu início ao processo de mudança no registro civil. Spencer vai alterar o nome e o gênero de nascimento, mas já abandonou o nome com que foi registrada. Ela escolheu Spencer Jill Hastings por duas razões: homenagem a Lady Di, que se chamava Diana Spencer (1961-1997) e a personagem  Spencer Hastings da série Pretty Little Liars.





"O nome é um direito personalíssimo. É um ramo do direito. É um direito da pessoa ter o nome  que ela mais se sente grata em ouvir e receber  o outro. É um direito imensurável", afirma a advogada.

A família e a comunidade

A mudança de nome é o primeiro passo em rumo a transformação que Spencer deseja, que prevê colocação de silicone nos seios, uma abdominoplastia e uma cirurgia de redesignação sexual. Depois, ela será a mulher que sempre sonhou, desde a infância. Nesse processo ela tem o apoio da mãe,  Rosemary Aparecida Muniz, de 54 anos, que, como ela gosta de frisar, desde a infância percebeu o jeito feminino da filha. 
(foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA PRESS)

"A Spencer, ela para mim assim… Não vou dizer que surpreendi, porque mãe sabe de tudo que passa com o filho. Mas agora, é como se um novo caminho abrisse para ela e abrisse para nós também. Ele está realizando o sonho dele, digo o sonho dela. Eu disse para ela: 'você nasceu com um corpo masculino, mas tem a alma feminina'", diz a mãe. 




"Cabeça aberta"

Spencer é de uma família tradicional de Ouro Branco, com familiares proprietários de comércio e que ocupam cargos litúrgicos na Igreja Matriz de Santo Antônio. Mas a mãe garante que tem a "cabeça aberta". "Qualquer forma de a pessoa se transformar é maravilhoso. Ela vai ser feliz. Ela melhorou 100%. Tadinho do meu amor, eu amo ela demais".
O primo Luís Fernando Ribeiro de Paula sempre foi um ponto de apoio para Spencer (foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA PRESS)

A mãe ainda oscila, algumas poucas vezes, entre a forma de tratar a filha, chamando de ele, mas sempre se auto-corrige quando percebe que usou o pronome no masculino. "Às vezes, a gente troca, mas ela é ela.  Não tem dúvida. É ela.” Rosemary diz que os tabus estão aí para serem quebrados. “Essa coisa de tabu, não é assim não. As pessoas têm que mudar a mente”, afirma ela que nasceu em Conselheiro Lafayete, mas foi criada em Ouro Branco.

A mãe gostaria que todos olhassem para a filha da maneira que ela a enxerga, mas admite que ainda há preconceito. "Tenho medo dos homofóbicos", revela. Mas diz que nunca viveu uma situação de preconceito com a filha. 





"A gente tem uma relação muito massa" 

O primo, o músico Luís Fernando Ribeiro de Paula, de 24 anos, desde a infância é o confidente de Spencer. Ele não só compreende a prima como sempre procurou ajudá-la no processo de autoconhecimento. "A gente tem uma relação muito massa, que foi construída desde pequenos. Crescemos juntos no quintal da nossa avó. Brincamos de pique pega, bolinha de gude", diz. 
 
Spencer recebendo os cuidados no Salão Beleza Pura (foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA PRESS)
O jovem lembra que a família, embora tradicional, se colocou aberta para o processo vivido por Spencer. "A maneira que minha prima contava, demonstrando outro lado, foi uma maneira diferente de terem esse aprendizado, mas tenho certeza que todo mundo abriu a menta com a nossa prima", afirma.
 
A cabeleireira Adriana Batista, de 48 anos, ajuda Spencer a ficar mais bonita em seu salão  Beleza Pura, que trabalha no ramo há 27 anos.  O estabelecimento está localizado no Centro há três anos. “A gente apoia todas as partes da mudança. A Spencer é uma carinhosa com a gente no salão. Ela gosta muito dessa área da beleza, busca muitas informações e traz para gente”, afirma. A mudança foi radical, mas Adriana não estranhou. “A gente conhece e percebe a transformação.”  Adriana reforça que é preciso respeitar a vontade de Spencer.






 
O presidente da Associação Comunitária do Bairro Siderurgia Michel Nicolau da Silva afirma que há uma discussão sobre diversidade na cidade, inclusive esse é um dos projetos implantados por ele. Ele defende o direito de Spencer seguir com o gênero com que mais se identifica sem sofrer qualquer tipo de preconceito. 

O processo de transição

A advogada ajuizou ação na Comarca de Ouro Branco em 4 de abril de 2022. Ela escolheu o nome Spencer Jill Hastings. "Você pode mudar o nome e o sobrenome e por opção da minha cliente ela vai alterar por completo". A documentação é bastante extensa. Ela terá que mudar a carteira de identidade, CPF, certidão de nascimento, passaporte. 

(foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA PRESS)

Também é preciso enviar ao juiz um relatório informando que o processo de transição está sendo acompanhado por psicólogos e por profissionais de saúde. Ainda são exigidas certidões negativas civil, trabalhista, penal e de cartório. 





"A mudança do nome para um nome social abre-se um leque de modificar toda a documentação em todos os órgãos. É bom ressaltar que com a ordem judicial, solicitamos que o cartório mantenha essa situação em sigilo para não haver nenhum tipo de constrangimento", diz a advogada. Spencer guardou o nome de batismo, para nascer de novo. "O cartório se compromete a guardar todas essas informações em segredo", diz.

O processo de transformação de Spencer deve ser acompanhado por profissionais de saúde, médicos de várias áreas e psicólogos. Os primeiros atendimentos foram no centro de saúde em Ouro Branco.

"Por ser uma cidade pequena, nós temos um atendimento de saúde muito bom. Mas eu gostaria de reforçar o pedido de ajuda da assistência social e o secretário de saúde, se puder agilizar, para que a Spencer se torne não só o nome social, mas a primeira levantar essa bandeira tão importante por completo na nossa cidade", afirma a advogada.



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