Uma candidata a uma das vagas destinadas ao público PcD (pessoas com deficiência) da UFMG teve a matrícula indeferida depois de ter recorrido à decisão da Banca de Verificação e Validação PcD, que havia avaliado a deficiência. Segundo a jovem, que é diagnosticada autista e prefere ter sua identidade preservada, além de capacitista, a ação da universidade foi inconstitucional. A jovem recebeu o comunicado oficial da universidade na tarde desta segunda-feira (11/4).
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A vítima conta que se matriculou em Ciências Biológicas na modalidade “1.1- Escola pública, renda familiar bruta mensal per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo, autodeclarados pretos, pardos e indígenas, pessoas com deficiência” e enviou à UFMG todos os documentos solicitados, inclusive dois laudos e relatórios médicos que detalham sua situação. Solicitada pela universidade, no dia 15 de março, passou pela avaliação da Banca de Verificação e Validação PcD.
“Foi um processo extremamente desgastante e humilhante. A banca questionou minha deficiência mesmo com a apresentação dos laudos da minha psiquiatra e da médica responsável pelo enquadramento da vaga PcD da empresa em que trabalho, além de me fazerem perguntas capacitistas que invalidaram toda a minha existência como pessoa autista. Agiram como se não houvesse demandas diferentes para pessoas autistas e não autistas”, comenta ela em entrevista ao EM.
Após alguns dias, a jovem recebeu um e-mail informando que sua matrícula seria indeferida porque a avaliação da banca não a considerou apta para a vaga, mas que poderia entrar com um recurso caso não tenha achado justa a decisão. Assim foi feito e, depois de passar por todo o procedimento estabelecido pela universidade, recebeu a reafirmação do indeferimento ontem, 11 de abril. A justificativa, segundo a vítima, foi de que seu desempenho escolar nos anos anteriores não apresentava irregularidade e, por isso, não se enquadraria na avaliação, mesmo com os laudos especificando suas limitações.
“Eu comentei na minha entrevista com a banca que repeti o terceiro ano do ensino médio por não ter me adaptado ao ensino remoto. Apesar das notas excelentes, eu repeti. Então, a argumentação deles não faz sentido. A UFMG simplesmente decidiu que eu não possuo limitações por meio de uma entrevista em que eu estava desconfortável e entrando em crise”, explica ela. “E ainda existe uma ilegalidade no edital da universidade, que seleciona quais PcD podem ou não ingressar nas vagas. Isso vai contra a lei federal que enquadra todos os PcD como iguais”, completa.
Ponto de vista jurídico
Segundo Daniele Avelar, advogada especialista na defesa dos direitos das pessoas com deficiência, o autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento e é considerado uma deficiência. Portanto, pessoas autistas contemplam os mesmos direitos de todas as pessoas com deficiência e têm direito à educação.
“É direito constitucional, líquido e certo que ela seja declarada pessoa com deficiência, haja vista que, pela Lei Berenice Piana (12.764/2012), chancelada pela Lei Brasileira de Inclusão (Nº 13.146/2015), o autista é uma pessoa com deficiência”, explica Daniele.
“O edital da UFMG é extremamente capacitista e chega ao absurdo de retirar da concorrência das cotas das pessoas com deficiência todas as pessoas que têm algum tipo de deficiência mental, ou sensorial, por exemplo. Isso é leviano, equivocado e inconstitucional”, completa.
"Direito cerceado"
Michelly Siqueira, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Minas Gerais (OAB/MG), acrescenta que a educação, como direito da pessoa com deficiência, deve ser assegurada em todos os níveis de aprendizado ao longo da vida. “É dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a salva de toda forma de violência, negligência e discriminação”, explica ela.
“Essa pessoa com autismo teve seu direito cerceado porque a universidade não a reconheceu como uma pessoa com deficiência. O que podemos falar aqui é que essa universidade não conhece a Lei Berenice Piana, e muito menos a Lei Brasileira de Inclusão", diz Michelly. A advogada considera "lamentável" o episódio mesmo já em vigor leis de 2015 e de 2012. "As faculdades e as escolas já tiveram tempo suficiente para conhecerem a Legislação e entenderem que as pessoas com autismo estão nos ambientes escolares e universitários e devem ter seus direitos respeitados”, completa.
Por meio de nota, a UFMG informou que "candidatos/as que optaram pela modalidade deficiência no sistema de reserva de vagas, além de apresentarem a documentação exigida pelo edital, passam por uma comissão integrada por diferentes profissionais das áreas da Saúde e Ciências Humanas – médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, pedagogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, farmacêuticos, enfermeiros, etc." Confira a íntegra da nota no fim da reportagem.
Auxílio ao caso
A jovem contou, em entrevista ao EM, que não possui condições financeiras para contratar um advogado que possa auxiliá-la com o caso, mas que aguarda retorno da Defensoria Pública de Minas Gerais.
Daniele Avelar foi acionada pelo gabinete do Deputado Estadual Cristiano Silveira (PT) a orientar a vítima e sua família sobre a negativa de matrícula. A advogada recomendou que a jovem corra atrás dos direitos, caso ainda seja do interesse dela ingressar na universidade. Michelly ainda defendeu a proposição de um mandado de segurança exigindo a matrícula e que a Promotoria de Defesa de Direitos das Pessoas com Deficiência seja acionada.
“Essas ações são necessárias não apenas para essa jovem, mas para que a UFMG e outras universidades brasileiras façam um ajustamento de conduta e alterem essas questões em seus editais”, explica Daniele.
Críticas à UFMG
No dia 5 de abril, a UFMG publicou em seu perfil no Twitter uma reportagem produzida pela TV UFMG sobre a importância do diagnóstico do autismo, o que levou a amplas críticas após a viralização do caso da jovem autista, que ocorreu na mesma rede social.
Internautas ressaltam a hipocrisia e a inconsistência entre a publicação e o indeferimento da matrícula da jovem. “A cara de pau da UFMG em fingir que se importa com pessoas com deficiência! Tomem vergonha na cara!!! Capacitismo é mato nesta instituição”, comenta um deles.
Confira a nota da UFMG na íntegra
A reserva de vagas nas instituições federais de ensino superior foi instituída pela Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012, com o objetivo de corrigir desigualdades históricas presentes na sociedade brasileira. A lei determina que 50% das vagas dos processos seletivos de graduação devem ser reservadas para estudantes de escolas públicas, e entre esses, negros, pretos, pardos e indígenas.
Em 2017, passou também a contemplar pessoas com deficiência. Na UFMG, o primeiro edital de reserva de vagas que incluiu pessoas com deficiência foi publicado no primeiro período letivo de 2018. Desde então, até o segundo período letivo de 2021, 562 candidatos que requisitaram vagas por meio dessa modalidade foram aprovados e entraram para a Universidade. As pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) também são contempladas pela reserva de vagas.
Na UFMG, a reserva de vagas integra uma consistente política de ações afirmativas além de programas de inclusão destinados a promover grupos socialmente discriminados, promove práticas acadêmicas de acolhimento, atenção e apoio aos estudantes em suas necessidades, em seu aproveitamento acadêmico e no enriquecimento de sua permanência na instituição.
A UFMG tem adotado medidas para aperfeiçoar os procedimentos para atender à Lei das Cotas para garantir a lisura do processo. Em relação às pessoas com deficiência, a Universidade se apoia também na Lei 13.146, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, publicada em 6 de julho de 2015, “destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”.
A Lei 13.146 também estabelece, em seu primeiro parágrafo do Artigo 2, os critérios para considerar a pessoa com deficiência e a necessidade de uma avaliação “biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar” que compõe a Banca de Verificação e Validação (BVV). Na Universidade, essa avaliação é realizada, sobretudo, para identificar em que medida o encontro entre a deficiência e as barreiras sócio ambientais interferem no desempenho das atividades da vida diária (AVD) e na participação social; a necessidade de acessibilidade, tecnologia assistiva ou adaptação; e a demanda de apoio de terceiros para realização das atividades do dia a dia e acadêmicas, que podem impactar em seu percurso acadêmico no ambiente universitário.
Nesse sentido, os/as candidatos/as que optaram pela modalidade deficiência no sistema de reserva de vagas, além de apresentarem a documentação exigida pelo edital, passam por uma comissão integrada por diferentes profissionais das áreas da Saúde e Ciências Humanas – médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, pedagogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, farmacêuticos, enfermeiros, etc. Para efeitos de análise, a BVV-PCD considera, além da legislação que rege o campo das deficiências, os laudos e exames apresentados pelo candidato, a Classificação Internacional das Doenças (CID) e entrevista semiestruturada baseada nos princípios da Classificação Internacional de Funcionalidade e Incapacidade (CIF). A UFMG ressalta que não comenta resultados ou casos isolados para preservar a privacidade das pessoas envolvidas.
A UFMG reitera que a política de cotas tem o objetivo de democratizar o acesso da população brasileira à universidade pública e que cabe à instituição estabelecer e zelar pelo cumprimento de procedimentos rigorosos de verificação, a fim de salvaguardar a reserva de vagas para as pessoas que, por direito, atendam aos critérios estabelecidos.
*Estagiárias sob a supervisão de Márcia Maria Cruz
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