Jornal Estado de Minas

ASSASSINATO DE JOÃO ALBERTO

Se isso não é passar pano para racista eu não sei o que é

 
Considere a seguinte situação: você me avista na rua e percebe que estou angustiada, perceptivelmente desorientada e chorando muito. Você está a caminho de um compromisso, mas seu coração pede pra você parar e me perguntar o que ocorreu, se estou bem e se pode ajudar em algo. E assim você o faz. Eu engulo o choro e inconsolada te conto que uma pessoa branca matou meu irmão, negro assim como eu, motivada única e exclusivamente pelo racismo.





Aí você se lembra que  ontem viu as imagens do assassinato desse meu irmão em todos os jornais, sites e redes sociais. Você me abraça e se sente impotente diante da situação, sem saber como me ajudar. E no meio do abraço se dá conta que além do luto pelo assassinato do meu irmão eu vou ter que encarar a realidade que o responsável pelo meu sofrimento e de toda a minha família não vai responder criminalmente em razão de todo o seu privilégio social.
 
A morte do meu irmão vai ficar por isso mesmo. Então você resolve me dá apoio desistindo do seu compromisso e indo a manifestação mostrando toda a sua indignação, afirmando e reafirmando em silêncio, aos gritos que vidas negras importam.

Quatro dias após a barbárie, mesmo sem nenhuma preocupação com o indiciamento criminal o responsável pelo assassinato do meu irmão se deu conta que ele teve seu patrimônio desvalorizado em R$ 2,2 bilhões em valor de mercado. Ele parou, pensou bem e viu que não iria adiantar colocar a culpa no racismo estrutural.




 
Teve a "genial" ideia de convidar alguns poucos (as) negros(as) que são pessoas que a gente até então admirava e tinha muito respeito por suas histórias na promoção da igualdade racial das mais diversas áreas para passar pano na sua imagem e limpar suas mãos sujas do sangue do meu irmão. E essas pessoas aceitam prontamente. 


Você viu as imagens da crueldade que fizeram com meu irmão, todo mundo viu e ainda sim eles resolveram aceitar o convite para passar o pano e agora te convida a ajudá-los nessa empreitada para limpar a imagem dessa pessoa que me causou tanta dor de forma injusta e cruel.
 
Agora você está aí avaliando se juntar a essas pessoas renomadas para passar pano também. Eu te pergunto: como fica a minha dor e da minha família? Você cogitar e ir lá de forma voluntária limpar o sangue de um irmão que eu também pensei que fosse seu.





O João Alberto Freitas tinha só 40 anos e foi espancado e asfixiado até a morte por seguranças que  estavam a trabalho no Carrefour no dia 19 de novembro de 2020. Não, ele não é meu irmão de sangue, mas assassinaram ele com requinte de crueldade no meio do estacionamento de uma unidade dessa rede de supermercados.
 
O caso ganhou uma grande repercussão por que houve uma vigilância civil que fez com quê um prestador de serviços da unidade identificasse a barbarie e pegasse o próprio celular e começasse a filmar.  A fiscal  Adriana Alves Dutra que era funcionaria efetiva da loja tentou impedir as filmagens e para intimidar a pessoa que estava filmando ela ameaçou dizendo : “Não faz isso, se não vou te queimar na loja”.

As imagens ganharam as redes sociais e foram amplamente divulgadas pelas mídias nacionais e internacionais. Quem é profissional da comunicação, assim como eu, sabe o quanto é negativo esse tipo de repercussão para as empresas. Nesse caso em específico no dia 23 de novembro de 2020 o Grupo Carrefour se deu conta que perdeu R$ 2,2 bilhões em seu valor de mercado. 





Às vezes, quando ocorre um caso como esse do Carrefour é classificado como crime corporativo. Essas questões variam de acordo com a definição de crime, e a definição de crime varia conforme a pessoa que aplica a definição. Alguns argumentam que um ato é criminoso somente se o tribunal determinou oficialmente que a pessoa ou entidade acusada de violar a lei cometeu um crime.
 
Poucas ilegalidades empresariais perniciosas ou outros delitos cabem nesta estreita definição legal de crime. E não pergunte o porquê a “sociedade” entende que o quê a empresa oferta em geração de empregos, impostos é bem maior do que os danos. Ou seja, se o Carrefour foi responsável pela morte de uma pessoa tudo bem, ele gera lucro e está tudo ok.
 
Entendeu a regra do jogo? Por isso a empresa não tem que se preocupar em responder criminalmente. A preocupação real está na comunicação. Tanto está na comunicação que a fiscal observa o monitoramento do público que assistia a cena e tenta impedir que as imagens fossem feitas. A preocupação está em como os seus clientes, fornecedores, parceiros e possíveis investidores irão enxergar o Carrefour depois de sediar essa cena horrenda, porque é isso que a fará perder ou ganhar dinheiro. 





Ao se deparar com a imagem organizacional atrelada ao racismo e, consequentemente, ao assassinato de um homem negro, o Carrefour convidou Rachel Maia, Adriana Barbosa, Celso Athayde, Silvio Almeida, Anna Karla da Silva Pereira, Mariana Ferreira dos Santos, Maurício Pestana, Renato Meirelles e Ricardo Sales para compor um comitê sobre diversidade e inclusão.
 
A meu ver, enquanto  uma profissional da comunicação graduada há dez anos em duas faculdades da área, jornalismo e em publicidade e propaganda, pós-graduada em comunicação e agora mestranda em comunicação e cultura, é uma ação que não passa daquilo que o marketing entende como gestão de crise. É praxe algumas empresas usarem campanhas dirigidas a moldar a opinião pública e política para camuflar seu comportamento violento na tentativa de tornar aceitável o que de outra maneira seria moralmente repugnante.

Semana passada, entrei em uma livraria e me deparei com um livro do Mauricio Pestana um dos integrantes do comitê que citei acima. O nome do livro? "Empresas Antirracistas". E, ao folhear o livro, me deparo com o Carrefour dentre as empresas selecionadas para ganhar esse “selo”. Já nessa semana o Celso Athayde outro integrante do comitê está produzindo um evento chamado "Expo Favela" e adivinha quem é uma das empresas patrocinadoras Master? Isso mesmo, o Carrefour.




 

Como se não bastasse produzir esse evento com o dinheiro de uma empresa que sediou essa cena horrível que tivemos o desprazer de assistir, ainda convidou dezenas de negros e negras para subir no palco com a logomarca do Carrefour em destaque.
 
Ao lado da marca do Carrefour está a do Nubank, como patrocinadora master. Pra quem não tem a memória curta é aquela marca que seus cofundadores, também em 2020, assinaram uma carta pedindo desculpas por uma declaração racista feita pela cofundadora do banco Cristina Junqueira no programa Roda Viva. 

Eu estou triste em ver que essas pessoas estão ajudando a limpar o sangue do nosso irmão passando pano de forma remunerada ou voluntária na vitrine e na garagem do Carrefour, colocando essa marca em livro classificando-a como antirracista, e como patrocinadora master em eventos. Respeito a vontade deles, o querer e o que mais eles alegarem, mas não acho nada legal, porque se isso um dia acontecer com meu pai, meu irmão, meus primos e amigos pretos sei que eles e elas vão lá passar pano na vitrine novamente.
 
*Artigo escrito pela mestranda em comunicação social pela UFRJ Etiene Martins