Jornal Estado de Minas

ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO

'É preciso tirar a gratidão que querem nos entuchar', diz escritora


O livro "Solitária" (Cia. das Letras), de Eliana Alves Cruz, traz parte da história familiar da escritora e também reflete uma história coletiva da população negra no Brasil. A escritora tributa o quarto romance à tia-avô que, como empregada doméstica, dedicou toda a vida à família dos patrões, abdicando de sonhos e de uma família própria.




 
"Ela foi aquela personagem clássica do Brasil. Aquela menina que vem do interior, muito novinha, que fica em uma família a vida inteira trabalhando, sem vida própria, em função daquela família. Ela cresce e herda gerações daquela família, cuida do filho, do neto e do bisneto. Envelhece ali".
 
Uma das autoras convidadas da Fliaraxá, festa literária realizada em Araxá até domingo (15/5), Eliana conduz com Geni Guimarães o painel "As firminas da literatura brasileira", com mediação de Esmeralda Ribeiro.
 

A primeira mulher romancista 

A mesa é uma referência a Maria Firmina dos Reis, a primeira mulher romancista do Brasil. O painel será nesta quinta-feira (12/03), véspera da data em que se comemora a abolição da escravatura por aqui, o último país em que está prática de tortura e exploração do trabalho foi extinta.



No livro "Solitária", Mabel, narradora-personagem, conta a história da mãe, dona Eunice, que passou parte da vida como empregada doméstica em uma casa luxuosíssima. A riqueza do casarão constratava com o quartinho, mais que modesto, destinado às empregadas que ali trabalhavam.

Eliana defende que não há que se ter um sentimento de gratidão em relação a ação da princesa Isabel. "É preciso tirar o sentimento de gratidão que querem nos entuchar", ressalta. Para ela, a escravidão deixou muitas feridas abertas, uma delas é o trabalho doméstico. "O Brasil mal consegue se sustentar nas pernas para falar de abolição da escravatura", pondera.


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A escritora lembra da situação da tia-avó, de quem a família não tem nenhuma foto da tia-avó. "Minha família sempre que fala dela, fala com muita dor. Foi uma pessoa que não teve vida própria".




 
A população negra no Brasil, em grande maioria, tem origem no trabalho subalterno, no trabalho semi-escravizado. "É uma história dos meus e das minhas. Muitas gente se veem nessa história, porque ela fala o perencimento coletivo, e fala muito da lógica do Brasil, o trabalho no lar, das trabalhadoras do lar, muito naturalizado e normalizado. E fala até para a elite, que se serviu daquele trabalho", afirma.
 

A intenção remexer pouco do passado, mas que é tão presente. A história é contada por Mabel, filha de Dona Eunice. Ela fala desse lugar da filha da empregada, mas numa perspectiva nova. Quem conta a história é a própria Mabel que não se prende ao lugar de subalternidade, mas que coloca em quadro a situação de desigualdade das patroas e das empregadas.

"As mulheres negras tanto na ficção, nos livros ou no audiovisual, na maioria, ocupam esse lugar da empregada doméstica, do trabalho braçal".
 
A escritora não acredita que, na literatura, não se deva falar do serviço domésticom, como um desses papéis exercidos pelas mulheres negras na vida real, a questão é a maneira como ela será representada. "Uma coisa é falar dessa personagem sem que ela tenha um nome, um passado, um presente e um futuro. A personagem totalmente periférica na história. Outra coisa é colocá-la no centro da cena com toda a complexidade e todas as questões que carrega e, principalmente, imaginando um outro futuro possível".




Uma questão de escolha

A história apresenta a importância de que pessoas negras tenham o direito de escolher o que querem ser na vida. Mabel é estudante de medicina, mas não se trata de uma ode a formação acadêmica."O caminho universitário não é o único possível. Existem outras saídas para as pessoas negras. A questão não é cursar uma universidade ou não. A questão é você ter opção. O livro fala da libertação e do poder e escolha". No brasil, quase 6 milhões de empregadas domésticas e cerca de 80% delas são negras.
 
"Não é porque minha mãe foi empregada doméstica, minha avó foi empregada doméstica, minha bisavó foi escravizada que eu tenho que seguir por essa mesma linhagem. Posso enveredar pelo caminho que quiser, inclusive de estar sozinha, pensar ser uma pessoa solitária numa perspectiva positiva.
 
Durante a pandemia, notícias de situações análogas a escravidão, de cárcere privado, a história de Miguel Otávio, menino que caiu do prédio, porque foi abandonado no elevador por Sarí Corte Real. " a primeira vítima de COVID-19 no Rio foi uma empregada doméstica", recorda-se.




O quartinho

O título do livro, "Solitária", cabe múltiplas interpretações. "O título te leva para vários lugares. O lugar de solidão mesmo, solitária, te leva para a ideia do cárcere, te leva para muitos lugares. Te leva para solidão afetiva, para a solidão social ou seja de você ser a única naquele espaço. A Mabel está solitária no ambiente universitário. Ela é a única mulher negra e periférica no curso de medicina. A Eunice está solitária quando ela tem um marido perdido que, no princípio, a agredi e depois se perde completamente dele mesmo. São várias solidões ali".
 
Ainda há um trocadilho com a solitária, que é o lugar mais cruel de um cárcere. "O prisioneiro é retirado daquele comunidade e colocado num local escuro e sozinho e apertado. é um paralelo com esses lugares de exclusão nos apartamentos e nas casas"
 
Solitária
Eliana Alves Cruz
Cia. das Letras
168 páginas

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