Há exatos 134 anos, em 13 de maio de 1888, a assinatura de uma lei tentava colocar um ponto final na escravidão no Brasil. Conhecida popularmente como Lei Áurea, a legislação de número 3.353 de 1888 foi a última de uma série de normas aprovadas no século XIX para libertar os escravos no país. A grande maioria dos escravizados eram pessoas negras descendentes de africanos que vieram trazidos à força do continente onde nasceram.
Mesmo após a lei, no entanto, a inserção dos ex-escravos na sociedade brasileira encontrou empecilhos, como apontam professores e especialistas em história do Brasil. E a dificuldade que o povo negro teve para ser incluído no país tem reflexos no Brasil de hoje.
Apenas em 2021, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos acolheu 1.016 denúncias de injúria racial contra pessoas pretas e pardas – que representam 56% da população do Brasil. A maior parte dos registros foram feitos em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Os números mostram que o racismo ainda está longe de acabar no Brasil.
Professor de Direito da Universidade de Brasília (UnB), José Geraldo explica que o racismo no Brasil é componente de uma condição estrutural. “O Brasil foi um país que sofreu experimento colonial, e como tal, a teoria afirma isso: enquanto modelagem colonial, os seus pressupostos de exploração como modo de produção capitalista, inclusive, se assenta fundamentalmente no racismo, que serviu para hierarquizar as raças”, detalhou.
Em março deste ano, pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva ouviu 1.200 usuários de transporte público e 1.050 funcionários do setor, e revelou que 72% dos brasileiros já presenciaram racismo no transporte público e 39% foram vítimas do crime. Entre os que trabalham como cobradores ou motoristas, o número salta para 65%.
Em 2021, outro estudo da entidade apontou que 61% acreditam que “a patrulha do politicamente correto está deixando o mundo chato” e 27% que fazer piadas às custas de pessoas negras não é problemático.
A percepção desafia a realidade mostrada pelo Atlas da Violência 2021: 29,2 homicídios a cada 100 mil habitantes pretos ou pardos, enquanto os ocorridos entre amarelos, brancos e indígenas são de 11,2 por 100 mil habitantes. Dos assassinatos no Brasil em 2019, ano anterior à pandemia, 77,7% foram contra negros.
Escravidão moderna
Mais de 130 anos após a assinatura da Lei Áurea, o Brasil ainda continua enfrentando casos de uma escravidão em tempos modernos. São muitos os casos noticiados de trabalhadores encontrados em condições exaustivas que chegam a ser análogas à escravidão — mesmo com todos os avanços na legislação trabalhistas nas últimas décadas. Desde 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de "trabalho escravo contemporâneo", "escravidão contemporânea" ou "condições análogas às de escravo".
Em 2021 o Brasil fechou o ano com 1937 pessoas em situação de escravidão. A Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), vinculada à Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), divulgou estudo mostrando que 10,42% dos resgates de trabalhadores em situação de trabalho análogo ao escravo em 2021 estavam relacionados a mulheres.
O que foi a Lei Áurea?
Antes de ser aprovada, a abolição da escravidão no Brasil já estava em processo de consolidação há algumas décadas. Com a Lei Eusébio de Queiroz, a Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários, diversos negros receberam a alforria antes de 1888. Nesse contexto, no final dos anos 1880, o número de escravos já era bem inferior ao encontrado nas décadas anteriores, em um país que contava com cerca de 15 milhões de habitantes.
“É impossível falar do Brasil e tentar interpretá-lo sem falar da escravidão e, portanto, da questão de raça”, afirma a socióloga Berenice Bento e professora da Universidade de Brasília (UnB).
Por meio da Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888, pela Princesa Isabel, que ocupava a regência do país durante uma viagem internacional de D. Pedro II, a abolição definitiva da escravidão no Brasil foi aprovada. O texto foi bem curto e direto, e contou com o apoio, tanto do Partido Liberal, quanto do Conservador. “É decretada extinta desde a data d’esta Lei a escravidão no Brasil”, afirma o primeiro parágrafo da lei.
Na verdade, não é possível afirmar que esse processo já esteja encerrado, com diversos debates acerca da “escravidão moderna”. Segundo a socióloga Berenice Bento, a lei de 1888 foi importante, mas não pode ser considerada uma dádiva concedida pela princesa Isabel. “Não é possível dizer que a lei de 1888 não foi importante, no entanto havia uma demanda muito maior por parte dos abolicionistas que vinham lutando por esse direito”, explica a socióloga.
Ativismo dos abolicionistas
Berenice cita, por exemplo, o advogado negro Luiz Gama. Na missão de libertar e garantir o direito dos escravizados, Luiz Gama valeu-se de uma “brecha” no próprio sistema escravista: a lei de 7 de novembro de 1831 que extinguiu o tráfico negreiro. Por esta lei, aqueles que eram trazidos para o Brasil depois desta data seriam considerados livres. Luiz Gama dedicou-se com afinco e de maneira gratuita a libertar pessoas escravizadas de várias províncias do Brasil.
“Ele lutou para conseguir a carta de alforria de diversas pessoas que eram escravizadas. Então a lei de 1888 não foi de forma alguma dádiva da princesa Isabel”, disse. No entanto, para o deputado federal D. Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP), autor do livro ‘Por que o Brasil é um país atrasado’, e trisneto da princesa Isabel, o papel da monarca regente foi decisivo.
“Desde abrigar e favorecer escravos que estavam em processo de alforria, a libertá-los onde ela podia, a princesa ajudou. Vale lembrar que a família imperial nunca teve escravos. Ela (a princesa) incluia muitos deles também pelos seus talentos. Muitos eram advogados, escritores e poetas, e ela dava espaço para eles. Também era ativista junto com os políticos”, diz o deputado.
Um dos ativistas negros que apoiaram a princesa foi José do Patrocínio. Depois que a Lei Áurea foi aprovada, diversos barões escravocratas ameaçaram a família imperial de morte. Com isso, o ativista organizou uma guarda formada apenas por voluntários negros, para proteger a princesa e toda a sua família.
“Ele [José do Patrocínio] criou uma guarda negra para proteger a princesa e a família imperial, como um todo. Então, já se aferia a quem era o mérito da abolição. Não eram dos ingleses, era da Princesa Isabel, mesmo. Ela que fez a coisa acontecer”, disse o deputado.
*Estagiários sob a supervisão de Pedro Grigori.
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