O nome é como uma porta de entrada, com o qual o indivíduo se reconhece e se apresenta diante da sociedade. O estudante de educação física Ícaro Santana Brandão, de 26 anos, precisou de muita coragem para mudar seu nome de batismo, em 2020. O maior impeditivo sempre foi o medo.
Leia Mais
Pela primeira vez em 92 anos, Copa do Mundo terá arbitragem femininaViola Davis declara que racismo leva à falta de oportunidade em Hollywood Como a falta de visibilidade afeta os esportes paralímpicosNina Espaguete: PCB lança pré-candidata travesti à Câmara dos DeputadosProfissionais de saúde são treinados para atendimento ao publico LGBTQIA+
Há pouco mais de dois anos, para que uma pessoa trans pudesse ter o nome que ela escolheu nos documentos de identificação, era necessário entrar com uma ação judicial. Além de dispender tempo e recursos, não era incomum que o pedido acabasse frustrado, sem que se conseguisse alterar o campo "gênero" nos documentos.
Além disso, para viabilizar a troca de nome, era preciso anos de acompanhamento psicológico e hormonioterapia e, muitas vezes, cirurgias de redesignação sexual. A história mudou em março de 2018, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a importância de retirar a obrigatoriedade da cirurgia e a solicitação judicial para a retificação do nome.
Agora, basta ir até o cartório, se autoidentificar uma pessoa trans e alterar o nome e o gênero. Foi o que Ícaro fez. Mas mesmo com a diminuição das barreiras, não foi um processo simples. Além dos próprios percalços internos, Ícaro precisou enfrentar a burocracia ainda existente. O jovem iniciou essa caminhada rumo à nova identidade pouco mais de dois anos em Brasília, onde reside atualmente. Ele, que é natural de Bonfinópolis, Minas Gerais, foi a um mutirão gratuito da Defensoria Pública do Distrito Federal, mas, por não ter nascido da capital, alguns entraves apareceram.
"No mutirão, a gente mandava os documentos e eles mudavam tudo. Mas eu tive que ir à minha cidade, Bonfinópolis. Só tem jurisdição aqui e eles não poderiam mudar minha certidão, já que eu não era daqui. Eles disseram que eu podia mandar meus documentos para um cartório e eles despachariam para Minas Gerais, mas esse processo ficaria muito mais burocrático", conta Ícaro, que aproveitou o momento de visita à família no estado mineiro para fazer a retificação do nome. "Tive que pagar uma taxa de quase R$ 400", relatou.
A certidão de nascimento é o primeiro documento que atesta a nova identidade de uma pessoa transexual. Mas, para adquirir o registro no novo nome, Ícaro precisou pagar por uma série de documentos que precisavam ser arquivados.
"Você tem que pagar para tirar uma certidão de nascimento atualizada. Teve uma série de arquivamentos de documentos. Quando eu cheguei, as próprias pessoas que me atenderam não sabiam como era o processo, então elas tiveram que pesquisar lá na hora. Eu mudei meu nome no ano passado no final de dezembro. E a única coisa que eu tenho até agora com a retificação do meu nome é o CPF, o RG e a certidão de nascimento. Não sei como vão ficar os outros documentos."
Garantias de direitos
A defesa e a garantia dos direitos constitucionais e dos direitos fundamentais de grupos minoritários — essenciais para o combate de injustiças e preconceitos — é função do STF. É o que ressaltou a advogada e professora na pós-graduação em direito civil da Universidade Mackenzie Diana Karam Geara.
"A Constituição Federal de 1988 segue diretriz neoconstitucionalista, ou seja, em que há uma releitura da ideia clássica e rígida da separação dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), permitindo o chamado ativismo judicial em defesa dos valores constitucionais. E é por esta matriz neoconsticional que a Constituição abre portas entre direito e moral e instrumentalizam uma leitura contemporânea de novas demandas existentes na sociedade".
Todas as vezes que houver lei, ou ausência de lei, que coloque em risco os direitos de grupos minoritários, o Poder Judiciário deverá agir na intenção de reequilibrar a representatividade majoritária e fazer valer os valores da Constituição. Geara afirma que a inércia da sociedade e do Poder Judiciário implica em conivência com as violências que a comunidade LGBTI vem sofrendo.
"É impossível ignorar a violência física e simbólica a que diariamente a população trans do país está submetida, e, diante do conservadorismo vigente nos Poderes Legislativo e Executivo, ou a sociedade repensa seus representantes nas próximas eleições ou o Poder Judiciário terá que continuar atuante na tentativa de reequilibrar a democracia", frisou.
Violência
São inegáveis os avanços rumo aos direitos das populações minorizadas. Mas, em contrapartida, o Brasil ainda é o país que lidera o ranking de violência transfóbica, com o maior número absoluto de mortes no cenário mundial. Pelo menos 140 pessoas trans foram assassinadas no Brasil só em 2021, sendo 135 travestis e mulheres transsexuais e cinco homens trans e pessoas transmasculinas. Em seguida, o levantamento aponta o México (65) e Estados Unidos (53) como os países mais violentos contra essa população. Os dados constam no dossiê "Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021", da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Um estudo feito pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) em 2020 aponta que 1,9% da população brasileira é composta por pessoas trans ou não binárias, totalizando cerca de 4 milhões, conforme a estimativa feita pelo Banco Mundial. A pesquisa considerou entrevistados em 129 municípios de todas as regiões do país. Mas, para essas 4 milhões de pessoas, o preconceito e a violência atuam diminuindo a expectativa de vida desse grupo, que é de apenas 30 anos — muito abaixo daquela apontada pelo IBGE para o brasileiro médio, de quase 75 anos.
A violência começa cedo. Para Daniele Macedo, 21, que se identifica como travesti, as memórias das agressões vividas quando criança ocupam um espaço em sua trajetória. Por conta do preconceito, Daniele demorou anos para saber que, na verdade, poderia não necessariamente se identificar como um garoto.
"A gente fala muito que a transfobia não é nossa, a transfobia vem dos outros. A sociedade precisa aprender a nos respeitar, enquanto pessoas. A gente tem que entender que as pessoas trans estão em outros lugares e são necessárias, e a sociedade tem que começar a aceitar isso como algo justo para nós", defendeu.
*Estagiárias sob a supervisão de Carlos Alexandre de Souza