O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por meio da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), divulgou nesta quarta-feira (25/5) os dados de “orientação sexual autoidentificada da população adulta”. O resultado mostrou que 2,9 milhões de brasileiros de 18 anos ou mais se declaram lésbicas, gays ou bissexuais, mas o próprio IBGE afirma que os números podem estar subnotificados.
O caso repercutiu nas redes sociais por conta da baixa porcentagem, levando internautas a questionarem a efetividade da pesquisa e chegando a fazer piadas sobre o assunto. Páginas e personalidades relacionadas ao ativismo LGBTQIAP se manifestaram sobre a possível subnotificação. O Estado de Minas conversou com pesquisadores e lideranças LGBTQIA para entender os motivos da subnotificação.
Segundo o estudo do IBGE, 94,8% da população, o que equivale a 150,8 milhões de pessoas, identificam-se como heterossexuais; 1,2%, ou 1,8 milhão, declaram-se homossexual; e 0,7%, ou 1,1 milhão, declara-se bissexual. Além disso, 1,1% da população, o que equivale a 1,7 milhão de pessoas, disse não saber responder à questão e 2,3%, ou 3,6 milhões, recusaram-se a responder.
Uma minoria, 0,1%, ou 100 mil, disse se identificar com outras orientações. O estudo não mapeou identidades de gênero. Em Belo Horizonte, 3,4% se autodeclararam homossexuais ou bissexuais um percentual que ficou acima da média nacional (1,8%) e a média em Minas (1,4%).
Possíveis motivos para uma subnotificação
De acordo com o próprio IBGE, o número de lésbicas, gays e bissexuais registrados na pesquisa pode estar subnotificado, apontando a LGBTfobia e estigmas relacionados à comunidade LGBTQIAP como principais fatores responsáveis pela insegurança das pessoas em declarar a própria orientação sexual.
Apesar disso, os números brasileiros são semelhantes a de outros países, como o Chile, onde 1,8% se declara homossexual ou bissexual. Na Colômbia, há registros de 1,2% da população; nos Estados Unidos, são 2,9%; e no Canadá, 3,3%.
De acordo com o Relatório de Mortes Violentas de LGBT no Brasil em 2021, realizado pelo Grupo Gay da Bahia, 300 pessoas da comunidade LGBTQIAP sofreram morte violenta no país, número que representa 8% a mais que no ano anterior. Dessas 300 mortes, 276 foram homicídios e 24, suicídios.
Uma usuária do Twitter comenta em sua conta que participou do último Censo do IBGE e que, durante a conversa, o pesquisador revelou ter ficado contente quando ela e a parceira assumiram ser um casal. Para ele, era ruim ver casais não se assumirem por medo da exposição.
“A gente não está afirmando que existem 2,9 milhões de homossexuais ou bissexuais no Brasil. A gente está afirmando que 2,9 milhões de homossexuais e bissexuais se sentiram confortáveis para se autoidentificar ao IBGE como tal”, diz a analista da PNS Nayara Gomes.
Para Gregory Rodrigues, coordenador nacional de comunicação da Aliança Nacional LGBTI e coordenador estadual da Aliança Nacional LGBTI em Minas Gerais, o fator socioeconômico também interfere nos resultados apresentados pelo IBGE. “A grande maioria que não teve medo de se autodeclarar são pessoas escolarizadas, com uma faixa de renda maior, ou seja, esse é um dos fatores que influencia muito no dado final”, explica ele.
De acordo com o IBGE, a população de homossexuais ou bissexuais é maior entre os que possuem escolaridade a nível superior (3,2%), maior renda (3,5%) e idade entre 18 e 29 anos (4,8%).
O pesquisador Thiago Coacci pondera que fora das capitais tratar da orientação sexual não é uma questão tão óbvia para as pessoas, o que pode ter gerado dúvida na resposta à questão.
“A pessoa ainda precisa querer falar publicamente sobre orientação sexual, e sabemos que uma parcela considerável da população LGBT está no armário”, acrescenta Thiago que é doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
O fato de as pessoas esconderem a orientação homossexual ou bissexual foi ironizado nas redes sociais. Um internauta, ao comentar sobre a divulgação dos resultados da pesquisa, simula um diálogo ironizando homens casados que se dizem heterossexuais, mas saem em encontros casuais com outros homens.
“Mas identificação não é, necessariamente, a mesma coisa de prática. Eu posso ter sexo só com homens e não me identificar como homossexual. Posso falar que esse termo não me contempla muito bem”, explica Thiago Coacci.
Nayara Gomes afirma que ainda é preciso percorrer um caminho com várias iniciativas de campanha e de sensibilização com o intuito de naturalizar tanto os termos utilizados na pesquisa quanto a presença dessas pessoas nos mais diversos ambientes. “Quanto mais perguntarmos, mais as pessoas vão se acostumar e é esse caminho que a gente pretende seguir. Temos alguns desafios”, acrescenta ela.
Perspectivas para o futuro
Assim como houve uma grande mudança na autodeclaração racial de pessoas negras nas últimas décadas, há uma tendência de que pessoas da comunidade LGBTQIAP tenham maior liberdade para se declararem como tal no futuro.
Em 2004, 51,2% dos brasileiros se diziam brancos diante de 42% pardos e 5,9% negros, apontando para a predominância da população brasileira que se autodeclarava branca. Em 2007, os números viraram: 49,2% se disseram brancos, 42,5% pardos e 7,5% negros e, desde essa época, os números continuam crescendo, chegando a 46,8% autodeclarados pardos e 9,4%, pretos de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019.
“O Brasil não empreteceu, as pessoas não mudaram. O que aconteceu foi que, a partir de uma campanha forte do movimento negro, as pessoas começaram a se identificar melhor com essas categorias e a declarar isso no Censo. O movimento LGBT caminha forte por esse mesmo caminho se a gente continuar com movimentos progressistas no Brasil”, afirma Thiago Coacci.
Os dados da pesquisa foram coletados em 2019. Segundo Coacci, isso também pode ter afetado as respostas dos participantes. “Foi o ano do início do governo Bolsonaro e tinha aquele clima de terror que muitas pessoas LGBT sentiam. Não tenho como dar certeza de que, exclusivamente, isso tenha acometido os resultados, mas são fatores como esse, complexos, que podem ter feito isso”, explica ele.
“Acredito que, a partir dos próximos Censos, muito mais pessoas que são LGBT vão ter a coragem de se assumir. Nossos próximos anos vão ser anos de muitas mudanças, de retorno da garantia dos direitos plenos, da garantia do Estado Democrático de Direito", afirma Gregory Rodrigues.
Ele destaca que o Brasil passa por 'um cenário de medo" e de "tensão política". "Tudo isso afeta os resultados de qualquer pesquisa que englobe a autodeclaração”, completa.
A Aliança Nacional LGBTI publicou, em nota, uma congratulação ao IBGE pela pesquisa histórica referente à comunidade LGBTQIAP . Para a organização, "é louvável percebermos que, em um cenário onde o preconceito segue presente e cada vez ganhando mais forças, existem pessoas que têm a coragem de se assumir, tornando-se exemplo de resistência frente a esse quadro" e que "a visibilidade acerca de quem são e quantos são, como vivem, renda familiar, grau de escolaridade, acesso à saúde são essenciais para a construção das políticas públicas que atendam às necessidades desta população".
A Pesquisa
A PNS visitou, ao todo, 108.525 domicílios e realizou 94.114 entrevistas. Os dados representam 159,2 milhões de brasileiros. Pela primeira vez, a pergunta “Qual é a sua orientação sexual?” foi feita aos entrevistados.
A questão faz parte de um bloco de perguntas consideradas sensíveis, incluindo perguntas sobre violência física e sexual e atividade sexual, entre outras. As respostas são anônimas e, na hora da entrevista, os pesquisadores buscam garantir a privacidade de quem está respondendo para que não se sintam desconfortáveis diante dos demais moradores do domicílio. Mesmo assim, a realidade brasileira de moradia ainda é precária em muitas famílias, o que dificulta a precisão das respostas.
Segundo o relatório divulgado pelo IBGE, a coleta de dados sobre orientação sexual permite a avaliação de possíveis desigualdades existentes na população nesse aspecto, além de, ainda que com limitações, dar visibilidade à população de homossexuais, bissexuais e outras orientações sexuais.
Questionada por jornalistas sobre a inclusão de perguntas envolvendo orientação sexual e identidade de gênero no Censo Demográfico de 2022, a coordenadora da PNS, Maria Lucia Vieira explica que, além de ser uma recomendação internacional que essa informação seja coletada no âmbito de questionários de saúde, a metodologia da PNS favorece a coleta.
Ela esclarece que, nesta edição, foi abordada apenas a orientação sexual. A PNS não coletou dados sobre identidade de gênero, que ajudariam a identificar, por exemplo, o número de pessoas trans no Brasil. O IBGE, no entanto, informa que estuda uma metodologia para incluir esse tema em suas pesquisas.
*Estagiária sob supervisão.
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