Jornal Estado de Minas

EDUCAÇÃO E CULTURA

Direito à cidade: Projeto 'BH é quem? BH é nóis!' visita Largo do Rosário


Alunos da Escola Estadual Divina Providência, localizada na região do Barreiro, que integram o projeto “BH é quem? BH é nóis!”, foram os primeiros estudantes a visitar o Largo do Rosário. O local foi reconhecido como patrimônio cultural e imaterial pela PBH (Prefeitura de Belo Horizonte) em maio deste ano e a visita ocorreu nessa terça-feira (21/6), com acompanhamento do Padre Mauro Luiz da Silva e da Rainha Isabel Casimira, das guardas de Congo e Moçambique Treze de Maio.





Atualmente, o terreno do Largo do Rosário abriga imóveis residenciais e comerciais e está localizado no bairro Funcionários, entre as ruas da Bahia, Aimorés e Espírito Santo e a avenida Álvares Cabral. A propriedade, que era composta por uma igreja e 60 sepulturas destinadas à comunidade negra, foi demolida durante a construção de Belo Horizonte.

Para Fabrício Seixas, professor de História responsável pelo “BH é quem? BH é nóis!”, o objetivo da visita foi discutir os espaços da cidade e a quem eles pertencem. “Foi um momento histórico de discutir sobre esse projeto que fala sobre elitização, exclusão e a política higienista da cidade. Foi uma honra ser a primeira turma a visitar esse não-lugar”, aponta em entrevista ao DiversEM.

Primeira visita escolar


Os alunos no 9° ano do fundamental da Escola Estadual Divina Providência fazem parte da primeira visita escolar ao Largo do Rosário desde que este recebeu o título de patrimônio cultural e imaterial de Belo Horizonte. Além do passeio guiado, a turma contou com o Museu Mineiro como ponto de apoio, já que o terreno do Largo do Rosário não possui estrutura física.





Padre Mauro, doutor em Ciências Sociais e membro do NegriCidade, projeto do Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos (Muquifu), que acompanhou a turma, explica a importância do local e da visita.

"É a primeira visita de uma escola ao espaço já como território negro no interior da cidade, que é a cidade dos brancos. O interior da avenida do Contorno é ocupada por 98% de pessoas que se declaram não-negras. Apenas 2% dos habitantes do centro de Belo Horizonte, considerando a avenida do Contorno, são negros, de acordo com o senso do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010", afirma ele.

Alan, um dos alunos que esteve na visitação, conta ao DiversEM sobre como a excursão mostrou a importância de perpetuar a história da comunidade negra em Belo Horizonte. "Estávamos no Largo do Rosário sem saber, pois lá tinha muita história na qual ninguém se interessava para poder contar. Tudo o que vimos e ouvimos (na visita) foi muito importante tanto para mim quanto para a minha turma, porque pudemos estar em um lugar histórico onde habitava a maior parte da população negra que sempre foi julgada e escravizada", conta ele, que também afirma ter adorado o ambiente e que voltará sempre que puder.





Catarina, outra aluna presente na excursão, fala sobre a experiência da visita e da companhia. "Tivemos a grande oportunidade de ser a primeira turma a visitar o Largo do Rosário. Durante o passeio, também fomos apresentados à Rainha do Congado, Isabel, e ao Padre Mauro, que nos contaram com mais detalhes a história de BH. Foi uma experiência incrível", afirma.

Para Fabrício, a presença da Rainha Isabel Casimira enriqueceu ainda mais a visita. "(Os alunos) nunca tinham visto ela. No máximo, aquelas ‘Frozen’ da Disney, que sempre são brancas, né? Eles adoraram", comenta o professor, acrescentando, ainda, o fato de que um de seus alunos, Gabriel, é um garoto negro e autista que sonha em ser padre.

"Foi a primeira vez que ele saiu em excursão com a gente, e também foi quando ele pôde conhecer o Padre Mauro, um homem negro e militante. Foi uma interação muito emocionante e parecia ser um dos dias mais felizes do Gabriel, que até cantou algumas músicas e tirou algumas dúvidas com o Padre", relata.





Gabriel, um garoto negro e autista que sonha em ser padre, participou da visita guiada com Padre Mauro ao Largo do Rosário (foto: Felipe Lessa/Reprodução)

Padre Mauro lembra que não teve a mesma oportunidade que esses estudantes quando jovem, e que aprender mais sobre a história da comunidade negra na cidade será um passo importante para o desenvolvimento consciente desses jovens. Ele ressalta a importância de perceber que uma ocupação - e não uma reocupação - está sendo feita no local.
 
"São territórios que já nos pertenceram no passado e que não foram ocupados pela população negra. Por isso, insistimos em dizer que é uma ocupação. A população negra vai, finalmente, ocupar um espaço na cidade que era deles", enfatiza.

O Largo do Rosário


O Largo do Rosário era o nome dado ao espaço compartilhado no Curral Del Rey entre um cemitério com 60 sepulturas, inaugurado em 1811 e uma igreja de mesmo nome, inaugurada em 1819. O espaço foi construído pela Irmandade do Rosário dos Homens Pretos, um dos grupos criados pela comunidade negra como alternativa à exclusão que sofriam das irmandades dos brancos, que já construíam suas próprias associações dedicadas aos santos de sua devoção.





Durante a construção de Belo Horizonte, entretanto, o Largo do Rosário foi demolido juntamente de todas as outras construções que ficavam onde, hoje, é a Avenida do Contorno para dar lugar a outras edificações que abrigariam funcionários públicos vindos de Ouro Preto. O projeto da cidade não previa abrigar as massas de trabalhadores, majoritariamente compostas por negros e imigrantes europeus, que acabaram se deslocaram para as periferias.

"O Largo do Rosário é um espaço que já foi ocupado pela população negra e dentro do projeto de construção da nova capital colocava para fora a população que habitava o antigo arraial que era de sua grande maioria de negros e negras. Essa população é toda colocada para fora intencionalmente pelo projeto da construtora e pela administração dessa nova cidade que estava sendo construída", explica Padre Mauro.

Segundo a PBH, com a demolição das construções da região e a proibição do sepultamento ao redor de igrejas, os corpos enterrados no Largo do Rosário permanecem lá até hoje e, para a equipe do Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos (Muquifu), o reconhecimento do local como patrimônio cultural vai muito além da construção em si. "Debaixo do asfalto cinza da cidade de Belo Horizonte dos brancos, tem gente preta sepultada. Percebemos que muito já se fez e muito ainda está por fazer", comentam em uma live do YouTube sobre o tema.





Com o registro do Largo do Rosário como patrimônio cultural imaterial de Belo Horizonte, surgem novas expectativas para a comunidade negra da cidade. Para o Padre Mauro, a ação representa a construção de uma nova relação com a capital.

"Não tínhamos o centro de Belo Horizonte como referência para a nossa cultura ou nossa religiosidade. é uma referência de que nós já ocupamos o centro da cidade. Nós já estivemos aqui, já moramos aqui, mas fomos enviados para as periferias e favelas. Para mim, evidenciar essa história é a grande importância de reconhecer o Largo do Rosário como patrimônio cultural imaterial", comenta ele.

"BH é quem? BH é nóis!"


O projeto que levou os alunos para visitar o Largo do Rosário tem como um de seus objetivos discutir a história e o direito à cidade com a participação de jovens que moram na periferia de Belo Horizonte. "Os estudantes daqui sempre têm essa demanda de ter aulas-passeio, entendendo que o saber escolar transborda a dimensão da escola e deságua na cidade, nos centros culturais e turísticos, e nos diferentes tipos de potências que estão guardadas dentro das cidades", explica Fabrício.





O professor também conta que, devido aos problemas relacionados à mobilidade urbana, boa parte dos seus alunos não conhecem o centro da cidade e enfatiza a importância de mostrar aos estudantes os contrastes entre a parte planejada e as periféricas de Belo Horizonte, afirmando, ainda, que os próprios alunos têm olhares atentos às diferenças. 

"A periferia é excluída de uma parte da cidade e queremos entender a história disso. A precarização do transporte, ou não oferecimento dele, busca manter a elitização desses espaços. Muitos não conheciam a Praça da Liberdade; já tinham passado, mas nunca descido para explorá-la. Os primeiros comentários foram ótimos: ‘Nossa, professor! Não tem nenhum pobre, só tem carrão aqui!’, e começaram a perceber os funcionários cuidando do jardim, dando retoques no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), e continuaram ‘exceto esses, ali’", conta ele.

Fabrício ressalta que a escola não deve ser um espaço isolado da cidade e que uma deve ser extensão da outra. "Acessar esses espaços amplia os horizontes desses meninos. Eles começam a ter uma outra leitura da cidade", afirma o professor.





O projeto também promoverá uma exposição fotográfica com produções dos próprios alunos. A cada lugar novo que visitam, são feitas imagens que, ao final do ano, serão selecionadas para fazerem parte da exposição. "Será feita uma releitura de Belo Horizonte a partir da periferia, e não do centro. Como eles se sentem, ou não, pertencidos nesses espaços que estão frequentando? Qual vai ser a leitura deles sobre esses espaços dos quais são frequentemente excluídos, principalmente pela questão do transporte público?", conta Fabrício.

Nas redes sociais, o perfil do projeto "BH é quem? BH é nóis" divulga fotos dos passeios feitos com os alunos. Confira:

 

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* Estagiária com supervisão do subeditor Diogo Finelli.