Jornal Estado de Minas

MULHERES NOTÁVEIS

'Não sei como consegui segurar a mão dele com a faca', lembra heroína

Nas telonas de cinema, a Mulher-Maravilha é uma guerreira invencível, reconhecida como a princesa das amazonas. Mas a representação hollywoodiana, muitas vezes, encobre as verdadeiras heroínas do dia a dia. 

Elas não usam tiaras douradas, escudo e espadas, mas têm a mesma força, coragem e determinação da Mulher-Maravilha. Se você passar por Patrícia Dias Fonseca, de 46 anos, pode não a reconhecer, mas ela é uma heroína. Ela é a terceira entrevistada da série Mulheres Notáveis, do DiversEM.





Nesta quinta-feira (23/6), completa um mês que Patrícia salvou a vida da advogada Verônica Suriani, de 40 anos, quando foi atacada pelo engenheiro Bruno Costa Val, de 33. Verônica estava na rua de casa, no Bairro Gutierrez, em Belo Horizonte, quando foi abruptamente abordada pelo agressor, que começou a golpeá-la com uma faca. Foram 17 perfurações nos braços e nas costas. Tudo acompanhado pelos filhos da advogada.


No dia em que o EM conversou com as duas, pouco menos de mês depois do ocorrido, Verônica ainda tinha pontos e hematomas nos braços que demonstravam a brutalidade do atentado que, graças à intervenção de Patrícia, não terminou em feminicídio. Naquele dia, o sentimento das duas era de gratidão e de que estabeleceram um vínculo de amizade para a vida toda, para além da relação profissional de patroa e babá.
 

"Eu tenho que salvá-la"

Verônica costuma dizer que naquele dia, depois da intervenção de Patrícia, ela nasceu de novo (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
 
Patrícia estava levando os dois filhos de Verônica para a escola e havia acabado de entrar em um carro de aplicativo, quando viu a patroa ser esfaqueada pelo ex-namorado. A babá não pensou duas vezes, desceu do carro, lutou com o agressor e interceptou o golpe que poderia ter sido fatal





"Na hora que vi que ela gritou e correu, pensei: 'Tenho que salvá-la'. Ele levantou a mão no alto e foi para dar a facada no peito dela. Foi quando eu o joguei na parede. Não sei como consegui segurar a mão dele com a faca. Puxei ele e o joguei longe dela. Ele saiu catando cavaco e tentou pegar a faca, mas meu pai me ensinou a dar 'gogó', então o peguei pelo pescoço e joguei no meio da rua”. Depois, para se assegurar, ela chutou a faca para longe.

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De maneira destemida e até com risco de ser atingida, Patrícia defendeu muito mais do que a patroa. "Ela sempre fala que sou a família dela aqui. Minha família é a família dela. Então, ela é minha família. Qualquer coisa que preciso, é ela que me ajuda. Quando estou passando mal, cuida de mim. Ela fala com os meninos: 'Hoje vocês não façam bagunça. A Patrícia não está bem'".





Em 2019, Patrícia teve uma trombose e precisou ser hospitalizada. Foi nesse período que a amizade entre patroa e babá se estreitou. "Lembro até hoje quando saí do hospital. Dona Verônica veio me abraçar. É uma cena que não sai da cabeça."

"Deus foi maravilhoso naquele momento"

As duas evitam rever o vídeo das imagens do atentado, mas quando viram a imagem pela primeira vez, tiveram a certeza de que contaram com ajuda divina. Verônica, no momento que estava sendo atacada, clamou a Nossa Senhora. "Foi Deus que nos ajudou. Deus foi maravilhoso naquele momento", acredita Patrícia. 
 
A babá ainda tenta entender como lutou com o agressor e tirou a faca da mão dele. "Ela teve força de homem, lutou com um oponente de 100 quilos", diz Verônica. Religiosa, Patrícia acredita que teve também a proteção do Anjo Gabriel. "Ele luta com a espada. Veio até mim, deu o escudo e disse ‘vai lá’."






 
Patrícia nunca parou para refletir sobre feminismo e desconhece a palavra "sororidade", mas, na prática, ela e Verônica se apoiam mutuamente. "A nossa relação é de amizade, companheirismo", diz Patrícia.
 
Verônica costuma dizer que, naquele dia, depois da intervenção de Patrícia, ela nasceu de novo. "Uma conjuntura de fatores que me fizeram sobreviver a essa tentativa de assassinato. Nasci de novo, e todo mundo brinca: 'Quem pariu foi a Patrícia'. Agora eu tenho uma nova mãe. Se a Patrícia não intervém, não estaria aqui. Não seriam só 17 facadas. Estaria esquartejada."
 
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Patrícia mora no Bairro Nova Cintra com os dois filhos, Michael Alessandro, de 24, e Gustavo Henrique, de 17. "Minha família é negra, mas é misturada. Tem branco, tem negro, gente de toda cor. Minha avó era descendente de indígena". O sonho é terminar de construir a casa própria e está recebendo ajuda de Verônica.  

Na tradição afro-brasileira, ela é filha de Ogum, o orixá guerreiro. No catolicismo, é devota de Nossa Senhora da Aparecida e São Miguel Arcanjo (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)


Demonstra coragem no dia a dia para cuidar sozinha dos dois filhos. "Até que é gostoso ser mãe solo. Dá um trabalho, mas a gente consegue. Ser mãe e pai e explicar para eles a vida como é. Ter responsabilidade." Patrícia ensina para o filho mais velho, que já namora, que a relação precisa ser baseada em respeito e amizade, com um ajudando o outro a crescer. 





Umbandista e católica

Patrícia conheceu Verônica quando procurava um emprego, há cinco anos, e se cadastrou em um site de recolocação profissional. "Estava procurando alguém para trabalhar comigo quando busquei referência. Nunca vou me esquecer o que me disseram: 'A Patrícia é a pessoa mais feliz do mundo. Você só vai ter felicidade da Patrícia. Só não estou com ela até hoje porque não tenho mais condições de pagar'. Ela (a pessoa que deu as referências) ficou 40 minutos falando da Patrícia".
 
Umbandista e católica, Patrícia é bastante espiritualizada. Na tradição afrobrasileira, ela é filha de Ogum, o orixá guerreiro.  No catolicismo, é devota de Nossa Senhora da Aparecido e São Miguel Arcanjo.

Patrícia tem na família a maior realização. Também se realiza no trabalho como babá dos filhos de Verônica, por ter desenvolvido uma relação de trabalho e também de amizade. "Falo que essa história é muito legal. Fiz a carne cozida e fiz filé mignon. Dona Verônica comeu a carne cozida e a empregada o filé mignon. Aqui não tem isso de separação", diz.




 
Patrícia começou a trabalhar aos 12 anos em casa de família. Trabalhou como doméstica e em uma fábrica de joias. A família de cinco irmãos não tinha condições para que todos estudassem e ela teve que contribuir com a renda familiar. Ter que trabalhar tão cedo impediu que ela pudesse estudar, fez até o quarto ano do ensino fundamental. Ela pensou em retomar os estudos, mas já com os filhos não foi possível retomar.

"Queria ser enfermeira" 

No entanto, ela sabe o valor de uma formação, incentiva os filhos. "Queria ser enfermeira, mas agora não dá. Hoje luto para ajudar meus filhos na faculdade. O mais velho faz graduação em Tecnologia da Informação (TI). Não que eu queira que eles sejam o que eu queria ser, mas realizo meus sonhos ajudando meus filhos", afirma.
 
Tem posição firme sobre violência contra a mulher. "Meus filhos sabem da minha história com o pai. Ensinei para eles que é preciso ter respeito, diálogo. Nada de encostar a mão. Na hora da raiva poder controlar, respeitar a mulher", afirma.  O relacionamento dela chegou ao fim no momento em que o ex-companheiro deu sinais de violência. "Acabou o respeito, acabou o casamento", depois de 10 anos de matrimônio.





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Aos 32 anos, Patrícia se separou quando estava grávida de cinco meses do filho caçula. A boa criação dos filhos era o que mais a preocupava, queria que tivessem boas referências e decidiu que seria melhor dar um fim ao casamento. "Minha mãe me disse você não está sozinha, então resolvi separar."

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