Ao transitar pela Rua Murilo Moraes de Andrade, no bairro de Santa Lúcia, em Belo Horizonte, é possível se deparar com um painel em estilo HQ (história em quadrinhos) que ilustra etapas de um relacionamento abusivo e que podem levar ao feminicídio. A arte, exposta em um dos muros externos do Centro de Saúde Santa Lúcia, é parte do projeto Favela Bela e foi produzida pelos artistas Fabiano Valentino, conhecido como Pelé, Carol Cunha e os gêmeos Thomás e Samuel Lóes.
“Fizemos um painel em quadrinhos porque a ideia é chamar atenção. Até quando a filha ou o filho estão passando com a mãe, eles podem perguntar o que é aquilo e chamar atenção para ela sobre essas situações”, explica Pelé sobre como surgiu o interesse pelo formato com o qual trabalharam.
Segundo o artista, idealizador do projeto Favela Bela, a iniciativa de pintar o mural surgiu de uma reunião do Encontro Mulher Bela da Favela, no qual busca-se incentivar o empoderamento das mulheres das comunidades do Aglomerado Santa Lúcia, na Região Centro-sul de Belo Horizonte.
“Com o Encontro [Mulher Bela da Favela], buscamos puxar o bonde para essas discussões antes que aconteça alguma coisa, porque a gente só vê mobilização depois que várias mulheres morrem. Lá, surgiu a ideia de fazer o mural”, afirma Pelé.
O painel
A história que o painel conta é a de um relacionamento que começou bem e passou a desandar com algumas limitações impostas pelo parceiro da mulher. Logo no início do mural, há um “machistômetro”, que mede os níveis de agressão até chegar ao feminicídio.
As restrições começam com comentários como “Eu te proíbo de sair de roupa curta” e “Não quero que você saia com mais ninguém além de mim”, mas em pouco tempo, os abusos passam a ser físicos. Na história, após um tapa no rosto, a personagem feminina denuncia o homem, que vai preso, mas, após se desculpar e pedir uma segunda chance, é o responsável pela morte da parceira poucos meses depois.
Desde o começo da HQ, o homem é retratado com traços grotescos, quase monstruosos e que mostram, fisicamente, a agressividade que guarda dentro de si. Conforme os quadros passam, é possível ver, também, a mulher se encolhendo e ficando cada vez menor e com uma expressão de medo. Quando recebe o tiro do parceiro, ela se arrepia e, no caixão, recebe um semblante triste.
Ao início e ao fim do painel, os artistas tentam exemplificar diferentes meios pelos quais uma mulher pode sofrer abusos - sejam físicos ou psicológicos - e, quando identificá-los em seu relacionamento, pedem para que ela peça ajuda. Pelé ainda explica que, amanhã (29/6), complementarão o mural com números de atendimento e assistência às mulheres que se encontram nessas condições e que tiveram auxílio da coordenação do Centro de Saúde Santa Lúcia.
“É importante que elas se sintam acolhidas, e nosso trabalho pode ajudar essas mulheres. Não fizemos isso sozinhos, tivemos ajuda da Maria Moura, uma das coordenadoras do Centro Cultural do Posto de Saúde. Ela nos deu alguns panfletos para aprendermos mais sobre o assunto, e a partir disso, fizemos o mural”, comenta o artista.
Inspiração
O projeto Favela Bela foi pensado pelo morador Fabiano Valentino e colocado em prática com a ajuda de amigos, moradores do aglomerado e pessoas de fora da vila, como grafiteiros convidados. A ideia surgiu depois que Pelé, aos 16 anos, desenhou e pintou em becos e fez um quadro ilustrando a favela toda pintada. Segundo ele, a iniciativa tem como objetivo “levar mais cor e alegria para a vida das pessoas que moram nas favelas”.
A iniciativa é sustentada, desde o princípio, por pessoas da comunidade e voluntários. Como o Favela Bela existe há algum tempo e já alcançou certa visibilidade em Belo Horizonte, é comum que pessoas queiram ajudar com doações de utensílios necessários para que o empreendimento não pare. As doações são feitas geralmente por escolas, creches, moradores da comunidade que têm restos de tintas guardados em casa e também pessoas de fora.
Recentemente, o projeto promoveu o 1º Encontro Mulher Bela da Favela, evento que abordou temas relacionados à violência contra a mulher, saúde e cuidados, além de ter realizado atividades recreativas, como aula de zumba, capoeira, dança afro e samba. Foi nesse encontro, também, que o mural foi idealizado, apesar de certa resistência das mulheres em ter um homem no desenvolvimento da arte.
“Algumas mulheres chegaram para mim e falaram ‘Poxa, fazer um evento desse com um homem no meio? A gente não acha legal’, mas conversando com elas, no final do evento, o pensamento delas tinha mudado. Eu sou um homem, mas não sou violento, então também devo ser um ponto de apoio para elas, temos que valorizar isso”, explica Pelé.
* Estagiária sob supervisão do subeditor Thiago Prata