Duas datas importantes marcaram a história de Demétrio Campos. O jovem negro e trans de 23 anos, que ainda tinha muito o que viver, suicidou-se no dia 17 de maio de 2020, Dia Internacional do Combate à LGBTfobia.
A retificação foi conquistada no mutirão de requalificação civil realizado pela Defensoria Pública do Rio em parceria com a Justiça Itinerante, na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Na presença de três juízes e um promotor, 100 pré-inscritos tiveram seus documentos retificados.
“Foi a conclusão de um sonho, eu senti liberdade. Naquele momento eu senti como se meu filho tivesse aberto as asas e falado ‘mãe, agora eu sou Demétrio, olha aqui. Ninguém pode dizer que eu não sou Demétrio’. Tenho certeza absoluta que onde ele estiver, ele tá orgulhoso do que eu tenho feito”, disse Ivoni Campos, mãe de Demétrio.
Quem foi Demétrio
Filho de Ivoni Campos, Demétrio Campos era natural de Tamoios, distrito de Cabo Frio, e em 2017, aos 19 anos, foi atrás do sonho de ser modelo e se mudou para São Paulo. Carismático, contagiava com sua alegria quem o conhecia.
Porém, sofria com o preconceito pela cor e por ser um homem trans. Chegou a ser agredido e ter as costelas quebradas, além de ter sido parado pela polícia diversas vezes. Profissionalmente, tinha dificuldade de encontrar trabalhos como modelo, e os contratos acabavam nas mãos de homens cis e brancos. O racismo e a transfobia que o atravessavam levaram Demétrio a lutar contra a depressão por cinco anos, com ajuda de psicóloga e psiquiatra.
“Meu filho foi para São Paulo para tentar a vida, e lá ele foi massacrado. Massacrado de todas as maneiras. Meu filho saiu daqui ingênuo, achando que as pessoas eram amáveis, confiáveis, e não foi isso”, conta Ivoni.
"Eu preciso continuar, eu preciso transformar a minha dor em luta, eu preciso ajudar as pessoas de alguma maneira"
Ivoni Campos, mãe de Demétrio
Demétrio tentava trabalhos como modelo em uma agência de São Paulo e, para completar a renda, conseguia trabalhos independentes e bicos como barman e segurança de boates para conseguir sobreviver. Com a Pandemia de COVID-19, o jovem perdeu todas as fontes de renda e tentou, pela terceira vez, suicidar-se. Com isso, Ivoni o levou de volta para casa, onde foi acolhido pela família. Porém, a depressão levou Demétrio aos 23 anos.
“Eu passei um ano me culpando pela morte do meu filho. Eu parei e falei ‘eu preciso continuar, eu preciso transformar a minha dor em luta, eu preciso ajudar as pessoas de alguma maneira’”, desabafa Ivoni.
De mãe a Ilha de Acolhimento
Depois da morte de Demétrio, Ivoni passou a se dedicar à luta LGBTQIA+ e ao acolhimento de membros da comunidade que estivessem desemparados. Recebe jovens que estão colocados para fora de casa pelos pais e os encaminha para casas de acolhimento. Ela mantém a página do Instagram do filho como espaço de homenagem e resistência.
Também faz parte do Instituto Nacional Brasileiro de Trans Masculinos (Ibrat) e dá palestra para ajudar famílias a acolherem seus filhos LGBTQIA+. O próximo sonho é cursar psicologia e montar uma ONG de acolhimento para pessoas LGBTQIA+.
Na cidade onde mora, Tamóios, foi aberto o Ambulatório Municipal Demétrio Campos, que atende trans e travestis com apoio psicológico, psiquiátrico e assistência social. O ambulatório atua na distribuição de hormônio para o processo de transição.
Experiências compartilhadas
Arthur Bugre, homem trans, jornalista especialista em diversidade e inclusão e colunista do DiversEM, conheceu Demétrio nas redes sociais, e trocavam mensagens sobre as experiências como homens trans e negros em uma sociedade preconceituosa.
“Demétrio era aquele tipo de pessoa que quando falava, quando dançava, quando apresentava algum trabalho, fazia todo mundo parar para ver, era meio hipnotizante. Então você acabava indo buscar informações sobre ele, e foi o que eu fiz. A partir dali a gente começou a manter algumas conversas, foram poucas, mas as poucas conversas que eu tive com ele, pelas redes sociais, ele relatou muita dificuldade para conseguir trabalho”, conta o jornalista.
Hoje Arthur mantém contato com a mãe de Demétrio, acompanhando seu trabalho como ilha de acolhimento para jovens de vários estados. “Eu tenho certeza que o coração da comunidade trans e travesti está aquecido, porque Demétrio sempre foi uma referência e sempre será presente na vida de todas as pessoas e sempre será essa referência para gente. Estão mesmo após a morte dele, é uma grande vitória”, comemora Arthur.
Mais que um nome, uma identificação
Há pessoas trans e travestis que não alteram o nome pois se identificam, e não sentem necessidade de usar nome social ou fazer retificação de nome, como é o caso do Thammy Miranda, filho da cantora Gretchen. Entretanto, muitos não têm um sentimento de identidade e identificação com o nome que receberam ao nascer.
“Para essas pessoas essa não identificação gera uma dor muito grande, uma angústia muito grande. Posso falar da minha experiência, é uma dor, angustia, um desconforto. É como se fosse uma luta constante internamente”, conta Arthur.
Arthur conta que passou por situações nas quais as pessoas fizeram piadas e caçoaram por ser chamado pelo nome que foi batizado em locais públicos, como consultórios médicos. O nome feminino não condizia com a aparência masculina que adquiria pela transição.
“Em alguns casos, acaba até resguardando essa pessoa trans ou travesti, porque infelizmente o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, e quando essa pessoa, dependendo da situação e do ambiente, é exposta dessa forma, ela tem risco de sofrer uma agressão verbal e o emocional ser impactado, e em muitos casos até agressão física”, afirma.
Quando a gente fala de nome, a gente fala de um direito básico e universal que tem a ver com identidade, da essência da pessoa, então esse nome precisa ser respeitado e respeito a gente não negocia
Arthur Bugre, homem trans, jornalista e especialista em diversidade e incliusão
Além disso, devido ao alto índice de desemprego e o preconceito que muitas pessoas trans sofrem das próprias famílias, grande parte dessa população vive em situação de vulnerabilidade. Mesmo tendo a vontade de realizar a retificação de nome, não conseguem pagar o processo de retirada de algumas das certidões.
Nome, essência e saúde mental
Para além dos desafios de viver em uma sociedade que não acolhe as pessoas trans, a utilização do nome social ou a retificação de documentos é tão importante que afeta diretamente a saúde mental dessa população.
“Quando a gente fala de respeitar nomes e pronomes, sobretudo de pessoas negras trans e travestis, é reforçar ainda mais que essas pessoas tem nome e esse nome não é motivo de piada, não é motivo de brincadeira, é a existência dessa pessoa", defende Arthur. O jornalista reforça que o nome é um direito básico e universal.
Uma pesquisa, realizada em 2015 pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT e pelo Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG, constatou que 85,7% dos entrevistados cogitaram ou tentaram o suicídio. Na mesma linha de pesquisa, a Universidade da Califórnia, em Los Angeles, mostrou que a população trans pensa 14 vezes mais em suicídio se comparado à população geral.
Para mostrar o impacto da utilização do nome social, o site Journal of Adolescent Health publicou uma pesquisa onde o foco era identificar os contextos onde os nomes eram aceitos. Os resultados mostram que quem pode usar o nome escolhido em mais ambientes tem até 71% menos sintomas de depressão, pensa 34% menos em suicídio e tem 65% menos risco de tirar a própria vida quando comparado aos entrevistados que são constantemente chamados de outras formas.
“Respeita os nomes, respeita os pronomes, isso tem impacto gigantesco na saúde mental das pessoas, porque é a essência dessa pessoa sendo respeitada, é a existência sendo respeitada”, conclui Arthur.
*Estagiária sob a supervisão de Márcia Maria Cruz
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