Jornal Estado de Minas

CONEXÃO DOS SABERES

Com anel de doutor: guardiões da cultura negra ganham título de doutor

 

Cinquenta e dois guardiões da cultura negra  em Minas receberam o título de doutor honoris causa em cerimônia realizada na

noite de segunda-feira (05/07) no Teatro Municipal de Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Entre eles, artistas, praticantes de religiões de matriz africana, indígenas e autoridades do Reinado. "As pessoas foram escolhidas em função do que fazem em prol da sociedade. O trabalho que desenvolvem nas comunidades e os saberes ancestrais que repassam foram os aspectos que definiram a entrega dessa outorga", afirmou humbono misió Luiz Fernando, que organizou a homenagem. A outorga foi concedida pela Faculdade de Formação Brasileira e Internacional de Capelania  e pela Ordem dos Capelões do Brasil.





 

Os agraciados seguiram toda liturgia de cerimônias acadêmicas, usando becas  para receber o diploma. No entanto,  traziam na cabeça os turbantes em referência às tradições da cultura afro-brasileira em vez do capelo. Uma das agraciadas é  Isabel Casimiro das Dores Gasparino, a Rainha Conga de Minas Gerais.  A Rainha Belinha, como é conhecida, lembrou que se ela está recebendo esse título deve-se ao fato de a avó ter desbravado caminhos em momentos mais difíceis.

 

"Recebo esse diploma em memória de minha avó, Maria Casimira das Dores, que foi uma mulher negra, parteira, lavadeira, rezadeira, de umbanda, rainha de Minas, rainha da Guarda de Moçambique 13 de Maio. Ela lutou e fez promessa à Nossa Senhora para que os descendentes dela tivessem mais sorte que os tatás. Vão completar 80 anos que a vovó fez essa promessa, e ela foi muito agraciada", disse. 

 

Belinha  dá continuidade ao legado dos antepassados. "Estou pisando onde ela pisou. Estou continuando a pisada dela. Minha avó foi raiz, minha mãe foi tronco e eu sou fruta. Fruta é semente para semear tudo de novo."





 

Rainha Belinha destaca que o saber  ancestral é construído no dia a dia. "É cuidar do outro. É caminhar motivando outras pessoas a caminharem. Esse é o meu legado: trabalhar com pessoas que vão multiplicar o pensamento de se autoajudar". Ela está a frente da  Guarda Moçambique 13 de Maio, no Bairro Concórdia,  quefoi fundada há 79 anos,  e do Centro Espírito São Sebastião, que completará 90 anos em 2023. 

 

Outro agraciado  é o artista Fabiano Paula Camilo, o Camilo Gan, de 42 anos. Para ele, autorga é o reconhecimento de um trabalho de 25 anos. Ele lembrou que usualmente as culturas negras e indígenas são objeto das pesquisas científicas, no entanto, esses sujeitos também são produtores de conhecimento. Camilo lembra que a academia costuma colher o conhecimento junto aos pesquisadores indígenas e afro-brasileiros, portanto, é mais do que justo que o saber popular seja equiparado ao da academia. 

 

"Esse título nos coloca no nível que devemos estar, o ponto mais alto", afirma Camilo. Além do conhecimento científico, os saberes afro-brasileiros e indígenas alimentam vários segmentos da cultura. "Essa é a chave para estarmos nesses lugares de visibilidade. Reconhecimento de nossa contribuição civilizatória  e na preservação das tradições", pontua.





 

A arte negra é o axé

O artista Camilo Gan e a Rainha Conga de Minas, Isabel Casimira (foto: Márcia Maria Cruz/EM/DA Press)
 

Camilo defende que a arte negra é o 'axé', portanto, ele considera que, desde quando foi gestado por sua mãe, já era um artista. "O axé muda de corpo, mas nunca acaba. Acredito que tive algumas vidas, estive em vários corpos e sigo. Desde os aprendizados passados por minha mãe, aprendi tudo que sei com as mulheres", afirma.  Em 1997, Camilo se deu conta que a vivência na comunidade era rica de elementos da arte, de linguagens artísticas. "Me assumi como artista em 1998 e, desde então,venho com a missão de ser um educador da cultura negra, que educa por meio da arte e da cultura."

 

Para explicar seu papel como educador, Camilo usa os termos 'afrobetizar' para definir o letramento na cultura africana e a 'pretagogia', uma pedagogia afrocentrada. "Na tradição afro-brasileira, aprendemos com a natureza e com o outro, o reconhecimento da individualidade do outro ser.  Em 1999, ingressou em uma companhia de danças afro-brasileiras e paralelamente passou a se dedicar à música. "Eu já tocava na minha comunidade. Aprendi a construir instrumentos ligados ao universo dos tambores."

 

Camilo desenvolveu projetos de samba de terreiro e foi um dos fundadores do bloco afro "Magia Negra", que realiza o cortejo no Bairro Concórdia, na Quarta-feira de Cinzas. "O bloco exalta o povo negro, virtudes e contribuições, por meio das músicas, cantos e poeisas; a corporalidade por meio das danças, a escrita do corpo negro em movimento", conta. O artista também realiza concertos em espaços urbanos e foi o idealizador da Babadan Banda de Rua.





 

Veja a lista dos doutores honoris causa