Jornal Estado de Minas

GRANDE BH

Justiça interdita penitenciária para presos LGBTQIA+ após onda de suicídios

A Justiça interditou parcialmente a Penitenciária Jason Albergaria, em São Joaquim de Bicas, Região Metropolitana de BH. Na unidade, destinada unicamente ao público LGBTQIA+, 12 pessoas morreram e mais de 60 tentaram cometer suicídio nos últimos 12 meses. Diante do cenário de vulnerabilidade, a medida foi tomada com base no “princípio da dignidade da pessoa humana”. 





A decisão foi tomada nesta quarta-feira (13/7) pela juíza Bárbara Isadora Santos Sebe Nardy, da Vara de Execução Penal da Comarca de Igarapé. Como uma das razões que motivou a medida, a magistrada aponta que a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) não adotou medidas para definir espaços específicos para a população LGBTQIA em todos as regionais de Minas e transfere presos de todo o estado para a Jason Albergaria.

A concentração de presos LGBTQIA em um só ponto do estado foi considerada “verdadeira penalização e segregação de território daquela pessoa que autodeclara ser LGBT no Estado de Minas Gerais”. A distância do domicílio, rede de saúde e assistência e dos familiares foi apontada como uma forma de acentuar a situação de extrema vulnerabilidade à qual este público já é submetido em liberdade no Brasil.

Na decisão, a juíza ainda cita o caso de um preso vindo de Timóteo, no Vale do Aço, tentou o suicídio na última terça-feira (12/7) como mais um fator para a interdição parcial da penitenciária. O homem foi socorrido e está internado em situação crítica.





Em nota, a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) informou que recebeu a notificação judicial sobre a interdição parcial da penitenciária e cumprirá a ordem. A unidade prisional deverá receber apenas presos da Região Metropolitana de Belo Horizonte.

A penitenciária passou a ser exclusiva para a  população LGBTQIA em 2021 após denúncias que constataram uma série de suicídios dentro de um ala da unidade reservada a este público. Para o coordenador estratégico em tutela coletiva da Defensoria Pública, Paulo Cesar Azevedo de Almeida, a medida foi importante, mas precisava ser acompanhada de uma série de cuidados específicos.

“Essa política pública de separar em alas exclusivas e reservadas foi constituída para proteger esse público, mas não basta apenas destinar uma ala exclusiva se não se atende essas pessoas  com apoio psicológico e psiquiátrico. Estudos mostram que a população LGBTQIA tem um índice  de suicidio muito maior do que na população em geral”, comenta, ressaltando que o abandono familiar é uma realidade mais comum neste público quando comparado à situação dos presos heterossexuais.





Almeida afirma que a Defensoria Pública já acionou a Justiça para que a criação de alas ou presídios exclusivos para a população LGBTQI fosse acompanhada da contratação de funcionários qualificados para o atendimento do público. 

“É importante estavelecer um protocolo de prevenção ao suicídio, que é importante para evitar acesso a medicamentos, toalhas e lençóis que podem servir para enforcamento, por exemplo. Nós pedimos também uma capacitação continuada dos agentes penitenciários para que eles não repliquem LGBTfobia contra essa população”, explica.

Extrema marginalização

Segundo o defensor público Paulo Cesar Azevedo de Almeida, a decisão de interdição da Penitenciária Jason Albergaria é importante para jogar luz sobre o tema, que não é muito debatido publicamente.





“A decisão tem uma simbologia muito grande. Ela faz saltar aos olhos da sociedade que, apesar de ser uma proposta boa (a dos espaços reservados), ela tem tido um resultado dramático. Na prática, o que se cria é um gueto, um ambiente escondido, onde novas violências podem ser cometidas longe dos olhos da fiscalização. Sem o cuidado necessário, o Estado tem acumulado corpos: em 18 meses termos quase 70 tentativas de suicídio e 12 pessoas tirando a prórpia vida em um espaço onde estão cerca de 300 a 400 pessoas, é um número muito alto”, afirma.

Ele ainda alerta para uma prática que coloca os presos LGBTQIA em risco. Em outras penitenciárias, presos considerados problemáticos ou que correm riscos naquele espaço são induzidos pela direção do presídio a tentar uma transferência para a Jason Albergaria.

“Esse acolhumento tem sido feito à mera declaração de uma pessoa, que se aponta como bissexual, homosseixual ou trans. Em muitos casos, são pessoas induzidas pela direção a assinar falsamente. Heterossexuais que já praticavam abusos e violência e são transferidos e continuam praticando essa opressão na Jason, aumentando a vulnerabilidade no ambiente”, explica.




 
Almeida conclui ressaltando a importância de um sistema penitenciário que se atente para a vulnerabilidade da população LGBTQIA no país. “No mundo ideal, em que as pessoas se respeitam, não seria necessária uma ala especial para as pessoas. O Brasil é reconhecido como um dos países que mais mata LGBT, isso em liberdade, imagina no cárcere. Quando o Estado prende ele precisa reconhecer também seu papel em manter a pessoa viva e tantos casos de desistência de viver mostra que as pessoas são colocadas em um projeto de mortandade”. 
 

Superlotação

Para a antropóloga e professora da Universidade Federal de Lavras (UFLA), Vanessa Sander, a interdição parcial, mantendo apenas presos da Região Metropolitana de Belo Horizonte, também chama a atenção para o problema da superlotação nos presídios.

“Já tem alguns anos que a ala exclusiva para presos LGBTQIA+ está enfrentando um movimento de expansão. A solução sempre foi aumentar o aparato prisional sem de fato enfrentar os problemas que estavam acontecendo ali. O interessante é que foi anunciado como uma grande medida humanizadora, mas era meio previsível que causaria problema”, disse a professora.





Sander ressalta que a criação de pavilhões para grupos específicos foi feita na esteira de um investimento na ampliação do sistema carcerário como política estatal. A carência na oferta de serviços básicos, porém, torna as alas ou penitenciárias exclusivas espaços ainda mais precários. 

“O que o estado vem investindo no sistema prisional, desde os anos 2000, é na ampliação. E isso veio acompanhado pela segmentação, não é apenas para o público LGBT, tem pavilhões de idosos, por exemplo. O pavilhão LGBT foi criado para proteger contra a violência e garantir o livre exercício da sexualidade, mas, se não fornecem assistência, segurança e saúde nem para o público geral, quanto mais para o público restrito” pontua.

Para a antropóloga, a solução do problema da superlotação em áreas específicas de penitenciárias passa pelo mesmo ponto das áreas para o público geral: trabalhar políticas de desencarceramento. “Durante a minha pesquisa na penitenciária levantei que boa parte das pessoas estavam ali por crime de menor potencial ofensivo. A prisão de uma forma geral, ainda mais funcionando da forma como ela funciona, ela não ressocializa ninguém. Ela aprofunda as desigualdades”.