Imagine a seguinte situação: uma menina de 13 anos, abusada sexualmente pelo tio, acaba engravidando. Ela vive em Capelinha, no Vale do Jequitinhonha, que conta com um hospital. Com muito custo, essa menina consegue contar para a sua mãe. Marcadas pela violência, elas decidem interromper a gestação. Entretanto, ao buscar o serviço de saúde, a surpresa: o hospital mais próximo que realiza o procedimento fica em Montes Claros, a 318 quilômetros de distância.
A pesquisa "Mapa do Aborto Legal" verificou em 2020 que dos 176 hospitais cadastrados no SUS para a realização do aborto legal, somente 42 têm feito o procedimento; cerca de 23% do total. Em Minas Gerais, são apenas cinco hospitais:
- Belo Horizonte
Hospital Júlia Kubitschek (Rua Dr. Cristiano Rezende, 2745, Milionários)
Maternidade Odete Valadares (Avenida do Contorno, 9494, Prado)
- Montes Claros
Hospital Universitário Clemente de Faria (Avenida Cula Mangabeira, 562, Santo Expedito)
- Uberlândia
Hospital de Clínicas de Uberlândia (Avenida Pará, 1720, Umuarama) - Viçosa
Hospital São Sebastião (Rua Ten. Kummel, 36, Centro)
No Brasil, o procedimento de aborto legal pode ser realizado em três situações: em caso de uma vítima de estupro, se a gravidez for de risco para quem gesta e de fetos diagnosticados com anencefalia. Fora essas exceções, o procedimento de interrupção da gravidez se configura como um crime no país, e pode gerar até três anos de prisão.
A legislação que prevê o aborto como crime é o Código Penal de 1940. Desde então, movimentos de mulheres buscam pela sua legalização. De acordo com ativistas, a legalização do aborto pode tirar o estigma sob a questão e facilitar o acesso inclusive para quem já tinha o direito, que, com restrição de hospitais que realizam o procedimento, não é garantido.
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Criminalização e acesso legal
A argumentação de movimentos de mulheres que defendem a prática toca em questões relacionadas à saúde pública do país. "O aborto está entre as principais causas de mortalidade materna no nosso país, e é uma morte evitável. Se essas mulheres tivessem acesso a meios e condições seguras de realizar o aborto, elas não iriam a óbito", conta Renata Regina, doula e ativista pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres em BH.
"A criminalização faz com que, inclusive, mulheres que sofreram aborto espontâneo sejam tratadas com desconfiança, como se tivessem provocado e, em decorrência disso, mesmo mulheres que tiveram uma gestação planejada passam por uma intensa violência obstétrica em um momento de luto", completa a ativista.
Para ter acesso à interrupção da gestação, nos casos em que é legal atualmente, não é necessário apresentar boletim de ocorrência no hospital.
"O procedimento é por etapas: ao procurar o serviço de saúde, é feito um termo de relato circunstanciado do caso, com o maior número de detalhes do crime sofrido. Depois são feitos exames físicos e ginecológicos, e o profissional emitirá um parecer técnico", explica Renata.
"Essa mulher será acompanhada por uma equipe multidisciplinar, em que três integrantes autorizam o procedimento de aborto. Ela assina o termo, declarando que as informações são verdadeiras, e também um termo de que está consciente e de acordo com a interrupção da gestação", diz a doula.
"Essa mulher será acompanhada por uma equipe multidisciplinar, em que três integrantes autorizam o procedimento de aborto. Ela assina o termo, declarando que as informações são verdadeiras, e também um termo de que está consciente e de acordo com a interrupção da gestação", diz a doula.
"Mulheres comuns"
Aos 40 anos, ao menos 1 mulher em cada 5 já realizou aborto uma vez na vida. São dados da Pesquisa Nacional de Aborto, de 2016, realizada por pesquisadores da Anis Instituto de Bioética e pela Universidade de Brasília (UnB). A estimativa é de que mais de 4,7 milhões de mulheres já tenham feito aborto ao menos uma vez na vida, segundo a Anis.
De acordo com a advogada Gabriela Rondon, do Instituto Anis Bioética, as mulheres que abortam "são comuns, de qualquer classe social, faixa etária, com filhos e que praticam alguma religião. O perfil majoritário de mulheres que praticam aborto não é de adolescentes, de mulheres que trabalham com o sexo, ou de mulheres que sejam distantes de nós", explica.
O levantamento ainda apontou que 58% das mulheres que abortam no Brasil são pretas, pardas ou indígenas e que 22% são escolarizadas até a 4ª série. E 82% das brasileiras que já abortaram são católicas ou protestantes, sendo que 67% delas têm filhos.
A pesquisa concluiu que "há tanto aborto no Brasil que é possível dizer que em praticamente todas as famílias do país alguém já fez um aborto - uma avó, tia, prima, mãe, irmã ou filha, ainda que em segredo. Todos conhecemos uma mulher que já fez aborto".
A defesa da legalização, segundo ativistas, é também para proteger mulheres mais vulneráveis.
Legalizar pode reduzir número de abortos
"Tirar o tema do campo da punição e do estigma, tratar como questão de saúde, inclusive para tratar de todas as complexidades relacionadas, poder acolher as mulheres que precisam e entender o que falhou no processo de prevenção, para evitar que ela tenha um segundo aborto e que outras mulheres não necessitem do aborto". É o que defende Gabriela Rondon, advogada e pesquisadora da Anis Instituto de Bioética.
De acordo com especialistas e com um levantamento realizado pela "Gênero e Número" em 2018, em países que o aborto passa a ser legalizado há um aumento no número de procedimentos legais nos primeiros anos e em seguida a queda nos índices, com estabilização.
O aumento inicial estaria relacionado não ao número de abortos, mas sim de abortos legais, computados pelo sistema de saúde. Quando se fala em procedimentos clandestinos, pouco se sabe oficialmente da quantidade de abortos realizados.
Para Rondon, o amplo acesso aos métodos contraceptivos "só é possível quando o Estado para de ameaçar as mulheres e tratá-las como inimigas da política de saúde sexual e reprodutiva e de fato as acolhe."
Na casa do vizinho…
Em um intervalo de um ano e meio, mais três países latino-americanos legalizaram ou descriminalizaram o aborto. É o caso da Argentina (2020), do México (2021) e da Colômbia (2022). Com pressão de movimentos populares, especialmente feministas e de mulheres, as aprovações aconteceram por via judicial ou legislativa.
"Na prática, o objetivo é reconhecer que a aplicação da lei penal para o tema do aborto em determinadas circunstâncias não é adequada e viola direitos. As duas vias podem ter resultados muito semelhantes, mesmo por processos distintos", explica a pesquisadora da Anis.
Nos Estados Unidos, recentemente a Suprema Corte reverteu uma decisão histórica, conhecida como Roe vs. Wade, de 1973, que garantia o acesso ao aborto em todo o país. Por seis votos a três, agora não há essa proteção do direito e cada estado tem autonomia para estabelecer as regras e restrições para realizar a interrupção da gravidez.
"Isso pode gerar um cenário de bastante desproteção, e também de trânsito entre os estados para que as mulheres consigam acessar o aborto nos estados que ainda permitem", afirma Gabriela Rondon.
No Brasil, uma proposta de descriminalização do aborto até a 12ª semana está sendo analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que realizou audiência pública sobre o tema em agosto de 2018. Entretanto, ainda não há previsão para a ADPF 442 ser votada pelos magistrados.
Em 2021, 100% dos projetos de lei na Câmara dos Deputados foram contrários à interrupção da gravidez.
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