Jornal Estado de Minas

PRECONCEITO

Peça de teatro é alvo de críticas por ridicularizar asiáticos

A peça “TUDO”, escrita pelo argentino Rafael Spregelburd e dirigida no Brasil por Guilherme Weber, estreou em abril de 2022 no Festival de Curitiba e circula por algumas das capitais do país. Após uma das exibições no Rio de Janeiro (RJ), neste final de semana, o espetáculo foi duramente criticado nas redes sociais por ter ridicularizado pessoas asiático-amarelas com a personagem interpretada por Dani Barros.





Com elenco de cinco pessoas – Julia Lemmertz, Vladimir Brichta, Dani Barros, Claudio Mendes e Márcio Vito –, o objetivo da peça, dividida em três atos, é levantar questionamentos sobre o Estado, a Arte e a Religião na América Latina e vem sendo bem aceita pela crítica.
 
O apontamento de uma usuária do Twitter, no entanto, abriu a discussão sobre o alívio cômico da peça ser uma personagem coreana que não possui um nome bem estabelecido e se utiliza de trejeitos e sotaques estereotipados para fazer a plateia rir.

“Me deparei com asiáticos sendo alvo de piada em pleno 2022. Uma das personagens servia apenas de alívio cômico e a graça dela era ‘ser’ asiática No fim das contas, a personagem era uma branca adotada por família coreana; durante a peça erraram o nome dela; e a personagem não acrescenta em absolutamente nada no enredo, está ali só para reforçar todas as piadas ofensivas que nós, amarelos, sofremos”, comentou Rebeca, que é nipo-brasileira.





Reações nas redes sociais


Com o tuíte viralizado, outros internautas resolveram se manifestar a respeito do tema. Muitos, concordaram com a visão de Rebeca, mas também houve quem discordasse, a maioria com o argumento de que o humor tem se degradado com as gerações mais recentes, ou que a piada não foi entendida.

“Problematizaram uma peça de teatro e acho isso o máximo... espero que essa militância desprovida de humor ocupe todas as lacunas até chegar nos grandes veículos de comunicação, já que foram eles que plantaram essa sementinha lá atrás nas cabecinhas dos complexados. Inimigos do humor”, afirmou um internauta.

Em resposta a isso, o cineasta Hugo Katsuo comenta que “o fenômeno do uso de racismo recreativo, em pleno 2022, em obras ditas progressistas é uma estratégia boa. A plateia ri sem sentir desconforto nenhum, não desestabiliza nada (muito pelo contrário). E, se alguém reclama: é uma crítica ao racismo, você que não entendeu”.





Ana Hikari, atriz brasileira de ascendência japonesa, também comentou sobre a postagem de Rebeca, demonstrando indignação pela peça reproduzir preconceitos mesmo quando se propõe a estar em um meio progressista, afirmando que falta debate racial.

“Pessoas amarelas não são brancas! Parece que nem num ambiente aparentemente progressista, de esquerda, ‘faz o L’ no teatro, é possível confiar que o recorte de raça está sendo feito, né? É urgente que a gente entenda que o debate racial também é sobre todas as pessoas não-brancas. É, também, sobre hierarquia entre raças que coloca as pessoas brancas no topo, literalmente rindo da gente”, expressou ela em uma postagem.

Alguns usuários chegaram a minimizar os comentários da artista, pautando uma suposta competição entre níveis de opressão na luta antirracista. “Meu povo sofre racismo há 500 anos, aí esses filhos da p*ta vêm no século passado pro Brasil e ainda querem dar esse papo, tomar no c* pra lá, vai”, comenta um deles. Nessa postagem, outros internautas responderam afirmando que comentários como esse atrapalham a luta antirracista.





“Não é só gente negra que sofre racismo, inclusive existe uma aliança histórica amarela e negra na luta antirracista. Pessoas amarelas foram lidas como perigosas, mortas e perseguidas na mão da supremacia branca. Racismo é racismo e ninguém deve sofrer. Pessoas não-brancas sofrem na mão da supremacia branca e devem ser aliadas, não competirem numa olimpíada de sofrimento”, diz Andreza Delgado, apresentadora do podcast Lança a Braba.

Representatividade amarela na mídia


Outro apontamento sobre a personagem de Dani Barros é que, apesar de ser chamada de “a coreana” durante boa parte da peça, ela é branca, adotada por uma família amarela, mas que adota representações estereotipadas sobre essa comunidade. Além dessa problemática, a personagem reproduz um tipo que é visto frequentemente em produções que escalam pessoas amarelas.

“Quase não vemos amarelos em novelas, por exemplo. Quando têm, são atores que estão ali apenas para ‘serem amarelos’, nada mais”, afirma Bruna Tukamoto, produtora de conteúdo. Ela enfatiza que, na maioria das vezes, personagens amarelos não têm o mesmo nível de importância ou desenvolvimento que o restante do elenco.





Hide Haseyama, estudante de teatro, conta que já teve vários problemas de autoestima pela falta de representatividade e que se incomodava com representações estereotipadas. “Eu não me via daquele jeito, e isso deturpou a maneira com que eu me enxergava. Sou japonês e não sou bom em exatas? O que é isso? Por que eu sou assim? Já cheguei a pensar que era um erro por tudo isso”, comenta.

Em um desabafo, Hide também comenta que, em 2021, fez um teste para a gravação de um material publicitário e foi aprovado. Já com a gravação e o teste de COVID-19 agendados, recebeu uma ligação de sua agência falando que o diretor não o queria no elenco, pois precisava de uma família brasileira e um “asiático” não faria sentido no contexto planejado.

Num depoimento semelhante, o ator Carlos Takeshi conta que já ouviu de um produtor de elenco que “ator japonês marca muito, chama muito a atenção”, e que, por isso, não são contratados com frequência. “No Brasil, o nipo-brasileiro ainda é visto como o 'japa', o estrangeiro, e essa visão também afeta a presença de descendentes de asiáticos na mídia”, afirma.





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podcast DiversEM é uma produção quinzenal dedicada ao debate plural, aberto, com diferentes vozes e que convida o ouvinte para pensar além do convencional. Cada episódio é uma oportunidade para conhecer novos temas ou se aprofundar em assuntos relevantes, sempre com o olhar único e apurado de nossos convidados.

 
*Estagiária sob supervisão do subeditor Eduardo Oliveira