Jornal Estado de Minas

MULHERES NA CIÊNCIA

Cientista da periferia de Salvador será palestrante na TEDxBelo Horizonte

Gabryele Moreira é uma mulhernegra de 30 anos e será uma das 13 palestrantes da segunda edição do TEDxBelo Horizonte, cujo tema é “Ouse Saber”. Natural da periferia de Salvador (BA), é a primeira da família a ter ingressado em uma universidade pública e busca fazer com que as pessoas reflitam quem são os cientistas, sobre a importância de ações afirmativas e como incentivar as mulheres a trilharem o caminho da ciência.





Filha de uma dona de casa e de um funcionário de coletivo urbano, ambos com formação até o ensino médio, a cientista é bacharel pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), uma das únicas universidades que possuem o curso de Física Médica, no qual é formada, além de mestre em Ciências no Programa de Tecnologia Nuclear da USP, bolsista do Programa de Bolsas Marie Curie da Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA) e colaboradora na Women in Nuclear Brasil (WiN Brasil). Estudou a vida inteira em escolas públicas, mas só foi entender como funcionavam as universidades durante o ensino médio.

“Na escola, descobri que a universidade era pública, gratuita, que ela também era para mim e que as cotas existiam. Entrei na universidade pelas cotas raciais e sociais, e me mantive lá através de políticas públicas de auxílio aos estudantes”, explica ela, que ainda fala sobre as mudanças que isso lhe proporcionou.

“Fui a primeira a entrar em uma universidade na minha família, que vem de um ciclo de mulheres negras que são empregadas, diaristas, numa relação de subemprego mesmo. Sempre quis mudar essa história da minha família, e estou conseguindo. Sou uma mulher negra intelectual”, completa.





Trajetória acadêmica


Durante a graduação, participou de quatro iniciações científicas, sendo premiada enquanto fazia parte de uma delas em um congresso nacional. “Foi através das ICs (iniciações científicas) que eu tive um ‘despertar’, vi que queria muito trabalhar em laboratório e fazer ciência. A partir do momento em que ganhei aquela premiação no congresso, comecei a me projetar para além daquilo, porque lidei com pessoas de vários níveis, muitas delas, acima de mim”, relata Gabryele.

A partir dessa premiação, Gabryele passou a ganhar mais notoriedade e foi convidada por uma professora da Universidade de São Paulo (USP) para fazer um mestrado. Assim que terminou sua graduação, fez o processo seletivo para ajudar nas pesquisas energéticas e nucleares, tendo ingressado no Programa de Tecnologia Nuclear da USP, o maior da América Latina, e trabalhado no primeiro reator do Brasil, finalizando seu mestrado em maio deste ano.

Na USP, Gabryele também precisou de ações afirmativas e lembra que, caso não houvesse o auxílio necessário, viveria um dilema. “São Paulo tem um custo de vida muito alto para o valor das bolsas que a gente recebe como pesquisador. A USP é a única universidade do Brasil que tem um suporte para a pós-graduação, então, o aluno que tem uma renda baixa consegue concorrer a uma vaga na moradia, o que me garantiu a permanência na universidade para concluir o mestrado”, explica.





Por muito tempo, a única fonte de renda de Gabryele foram as bolsas. “Sempre sobrevivi com o valor de R$ 650. Sempre falo que sobrevivi porque era muito pouco, mas eu precisava passar por aquilo porque eu era a única na família a ter um ensino superior”, conta ela.

Foi também na mesma época que a cientista resolveu se inscrever para o Programa de Bolsas Marie Curie da Agência Internacional de Energia Atômica, vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), uma premiação para mulheres que as avaliam pelas notas em produções acadêmicas. Em 2021, foi uma das 110 mulheres selecionadas para receber a premiação em dinheiro e uma bolsa de estágio em um país da Europa. “Nunca pensei que, eu, Gabi, teria condições de me bancar na Europa. Então, aceitei e fiquei muito feliz, vibrante”, relata.

Durante a pandemia, Gabryele reuniu alguns amigos para desenvolver um cursinho on-line voltado para o vestibular cujo nome era “Macaé”, em homenagem à educadora mineira Macaé Evaristo que, hoje, é vereadora de Belo Horizonte. “Alguns dos nossos alunos passaram em primeiras colocações, o cursinho foi muito bom e resolvemos colocar o nome de uma educadora famosa na época”, disse a cientista.





TEDxBelo Horizonte


O TED é uma organização sem fins lucrativos dedicada a “Ideias que merecem ser compartilhadas”, que surgiu como uma conferência na Califórnia, nos EUA, há cerca de 30 anos. A organização criou, mais recentemente, um programa chamado TEDx, que acontece localmente e é organizado de maneira autônoma e reúne pessoas para compartilhar experiências de maneira semelhante ao evento original.

Na edição de Belo Horizonte, que acontecerá em 6 de agosto, das 13h às 20h30, no Sesc Palladium, 13 palestrantes estarão presentes para falar ao vivo e estimular discussões entre grupos pequenos, além de vídeos de TED Talks transmitidos ao longo do dia.
 
 
 
Como uma das palestrantes, Gabryele Moreira falará sobre mulheres negras na ciência. “Eu sou uma mulher preta retinta, e é difícil encontrar, nesses lugares pessoas de uma pele tão escuro e de um cabelo tão crespo, black power. Nesses lugares, você encontra, geralmente, homens brancos. Comecei a perceber isso, tive uma inquietude de estar nesse espaço e comecei a me questionar: quem está atuando nos institutos? É uma área dominada por homens, uma área machista”, conta.





A cientista também conta que reuniu um grupo de mulheres para mapear a presença feminina na ciência. “Foi um trabalho muito pioneiro trabalhar gênero dentro da área nuclear. Separei para o TEDx uma palestra voltada para mulheres na ciência e vou fazer uma reflexão de quem são os cientistas. A gente precisa trazer isso e é importante porque, por mais que mulheres negras sejam maioria na sociedade, nessas áreas de ciências, estamos em menor proporção. E mesmo entre mulheres brancas, quem está em maior quantidade ainda são os homens”, diz.

Gabryele também questionará quem são os cientistas que produzem para as mulheres e quais as consequências disso. “Os homens desenvolvem anticoncepcionais e somos nós que ficamos cheias de hormônio, com vários efeitos colaterais que podem levar até a morte. Os homens que desenvolveram o mamógrafo e as mulheres não gostam desse exame por sentirem muita dor. É importante ter mulheres atuando na ciência por esses e muitos outros motivos”, explica.

Além da preocupação com a atuação feminina,a cientista também reforça a existência de mulheres negras na ciência. “A gente acaba tendo um atraso histórico em relação às mulheres brancas. Enquanto as mulheres negras ainda lutavam pelo movimento de sair da escravidão, de relações com o subemprego e com o trabalho doméstico, as mulheres brancas estavam conquistando outros direitos, de sair de casa para trabalhar em fábricas, para ter direito ao voto. Vou trazer isso para a discussão”, conta Gabryele.




 
 
 
Como tópico essencial, ela também trará discussões a respeito de cotas. “Preciso falar sobre esse tema porque eu fui cotista. Eu sou a prova de que as políticas públicas funcionam e são uma maneira de diminuir a desigualdade social. Entrei e permaneci na universidade por políticas públicas e, hoje, sou uma cientista”, relata.
 

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