O Brasil é conhecido pela sua miscigenação e as influências de vários povos que migraram para o território nacional e ajudaram a construir o que hoje reconhecemos como identidade brasileira. Enquanto algumas referências culturais são exaltadas, outras sofrem apagamento, como é o caso da cultura cigana, que ajudou a moldar aspectos da música, da dança e da culinária.
Atualmente existem no Brasil três grupos ciganos: os Rom, os Sinti e os Calón. Cada grupo possui língua e costumes próprios. Dentro de cada grupo ainda é possível existir subgrupos. Sendo assim, o correto é denomina-los como povos ciganos.
"Há muitos pontos comuns entre os povos ciganos que nos ligam e nos levam esse nome de cigano como genérico. Assim como os povos indígenas são chamados de indígenas, um leque de etnias, os povos ciganos são da mesma forma", explica Aluízio de Azevedo, cigano da etnia Calón, jornalista e pesquisador das comunidades ciganas.
Presença cigana na cultura brasileira
Aluízio explica que muito do que se acredita ser herança portuguesa é, na verdade, herança cigana Calón, que pode ser observada em diversos aspectos da sociedade nos dias de hoje.
Comidas muito tradicionais mineiras, como o feijão tropeiro, galinhada e as carnes secas, são típicas de culturas nômades. "A própria carne de porco, que é uma especialidade de todos os povos ciganos - não só dos ciganos Calón, aí eu amplio para todos em todos os lugares do mundo -, é uma grande especialidade. E a comida mineira tem na base dela a carne de porco em todas as formas", conta Aluízio.
Na música já foram identificadas influências ciganas na moda de viola, por exemplo, mas também no sertanejo e até mesmo no ritmo mais nacional de todos: o samba. Uma tese de doutorado do professor Samuel de Araújo comprova por meio de pesquisas, fotos, textos e relatos que os ciganos ajudaram na construção do samba.
Além disso, na dança temos o exemplo da catira, uma dança que bate as botas no ritmo da música, muito típica em Minas Geris e Goiás, muito próxima do flamenco e dança espanhola, também de origem cigana.
É possível que tenham influências dos ciganos Calón também na tradicional festa junina. Aluízio observa uma semelhança entre as Festas de Santo, muito comuns em comunidades ciganas, no casamento cigano e na festa junina. Os trajes usados na festa popular, tanto por homens quanto por mulheres - cinto, bota e chapéu para os homens e vestido rodado colorido e com fitas para as mulheres-, se parecem com roupas tradicionais da etnia Calón.
Além das comidas típicas feitas de milho e a fogueira serem pontos muito presentes em casamentos ciganos, cerimônia interpretada durante as quadrilhas juninas.
Além das comidas típicas feitas de milho e a fogueira serem pontos muito presentes em casamentos ciganos, cerimônia interpretada durante as quadrilhas juninas.
"Acredito que essas coisas foram todas apagadas ao longo da história e precisam vir à tona. Precisam ser reconhecidas. Porque nós contribuímos para história do Brasil, para a identidade nacional e nós somos invisibilizados, nos livros didáticos, dos currículos, dos livros de história. E quanto somos abordados é de uma forma preconceituosa", afirma Aluízio.
O que é ser cigano?
"Ser cigano é nascer cigano. É uma origem étnica, uma descendência, se passa de pai para filho, mãe para filho, avós para netos... não é uma coisa que você possa se tornar cigano, é uma coisa hereditária, ancestral", conta Aluízio.
"Acredito que essas coisas foram todas apagadas ao longo da história e precisam vir à tona. Precisam ser reconhecidas. Porque nós contribuímos para história do Brasil, para a identidade nacional e nós somos invisibilizados"
Aluízio de Azevedo, cigano da etnia Calón, jornalista e pesquisador
Apesar das diferenças culturais entre as tinias ciganos, com seus próprios costumes, língua e vestimentas tradicionais, existem pontos em comum para que sejam considerados cigano. Aspectos com o nomadismo, morar em barracas, semelhanças na forma tradicional de viver, na organização familiar e na valorização da família e do grupo estão presentas nas três etnias. Além disso, a perseguição, o racismo e a exclusão social também é comum a todos os povos ciganos.
Origens dos povos ciganos
Não é possível traçar a origem dos povos ciganos até sua formação, os primeiros registros datam do século 10 e em Portugal há registros do século 15. "Nós não somos povos originalmente europeus, aliás, há uma dúvida quanto a essa origem. Se seria do Egito ou se seria da Índia. A memória oral cigana fala Egito, as pesquisas acadêmicas falam Índia: talvez as duas coisas. O fato é que não são povos europeus", afirma Aluízio.
Os Calón tiveram longa permanência com a Península Ibérica, de onde vieram deportados para o Brasil durante quase 300 anos. Sendo assim, a língua Caló tem muita influência do português e do espanhol. Os povos Rom tem longa convivência com países do leste europeu, como Romênia e Croácia, e os Sinti estão mais localizados na Europa Central, como Alemanha, Itália e França.
Existe um tronco ancestral comum entre as línguas, como o latim está para o português, espanhol, italiano e francês. Mas assim como ocorre com as línguas latinas, as diferenças chegam ao ponto de serem completamente diferentes e um povo não entender a língua do outro.
O ponto em comum é que todas são línguas apenas orais, não existindo na forma escrita. Costumes, histórias e conhecimentos no geral são passados oralmente para os mais novos. Nas sociedades itinerantes e sem registros escritos, como os povos ciganos, seus próprios corpos carregam as memórias através do tempo.
Os povos ciganos e o nomadismo
Um dos pontos mais relacionados aos povos ciganos, o nomadismo, está fortemente relacionado à origem desses grupos, juntamente com a origem do preconceito e do racismo. Vários países ditaram leis proibindo "ser cigano": proibindo falar as próprias línguas, de andar em bando e expulsando dos territórios.
Aluízio conta que em Portugal, até a década de 2000, existia uma lei que proibia ciganos de fixarem um acampamento por mais de 72 horas no mesmo lugar, forçando-os a seguir adiante.
Aluízio conta que em Portugal, até a década de 2000, existia uma lei que proibia ciganos de fixarem um acampamento por mais de 72 horas no mesmo lugar, forçando-os a seguir adiante.
"O nomadismo foi mais uma condição social política, colocada pelos estados por onde nós passamos. Mas também, ao logo do tempo, foi tanto nos dado isso que a gente acabou incorporando isso e transformando em uma questão cultural", explica Aluízo.
Atualmente, mais de 80% dos ciganos brasileiros não são mais nômades. São itinerantes. A itinerância, diferentemente do nomadismo, tem uma rota pré-estabelecida e um mesmo ponto de partida e de chegada.
Estereótipos e preconceito
Existe um imaginário social comum de quando você fala que você é cigano as pessoas sempre colocam ciganos como perigosos, ladrões ou trapaceiros. Ou então questões ligadas ao misticismo: belas mulheres, leitura de mão ou de bolas de cristal.
Esse tem imaginário preconceituoso atravessa o racismo institucional e o próprio racismo estrutural. Hoje a maioria das comunidades ciganas estão em uma situação de exclusão social devido a essas leis persecutórias e ao imaginário negativo que ainda persiste.
"O nomadismo foi mais uma condição social política, colocada pelos estados por onde nós passamos. Mas também, ao logo do tempo, foi tanto nos dado isso que a gente acabou incorporando isso e transformando em uma questão cultural"
Aluízio de Azevedo, cigano da etnia Calón, jornalista e pesquisador
"Por eu ter uma cor mais clara e não me vestir a lá cigana no dia a dia, eu tenho uma certa passabilidade. Mas quando eu digo que sou cigano, dependendo da pessoa os olhares começam a mudar, elas se tornam mais vigilantes, vem sempre as piadinhas, as brincadeiras 'ah então lê a minha mão', ou então 'cigano é tudo rico', 'dono do ouro'. Alguma coisa espiritual também aparece", diz Aluízio.
Aluízio ainda conta que quando vai a alguma loja com a mãe ou a avó, existe uma vigilância das pessoas, como se esperassem serem roubadas, e afirma que essas situações são muito desgastantes.
Aluízio ainda conta que quando vai a alguma loja com a mãe ou a avó, existe uma vigilância das pessoas, como se esperassem serem roubadas, e afirma que essas situações são muito desgastantes.
"Todos os produtos simbólicos e culturais acabam reproduzindo isso de alguma forma né? Daí a importância que a mídia tem para poder combater esses estereótipos, quebrar esse racismo, mostrar que nós temos culturas valorosas, super antigas, com conhecimentos e inclusive reconhecidos como povos e comunidades tradicionais", aponta Aluízio.
*Estagiária sob supervisão do subeditor Rafael Alves
O podcast DiversEM é uma produção quinzenal dedicada ao debate plural, aberto, com diferentes vozes e que convida o ouvinte para pensar além do convencional. Cada episódio é uma oportunidade para conhecer novos temas ou se aprofundar em assuntos relevantes, sempre com o olhar único e apurado de nossos convidados.
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