A capa da Vogue com Gloria Groove impactou o mundo da moda. A drag aparece com uma peruca rosa, à la Maria Antonieta, enfeitada com acessórios em pedras preciosas da Gucci, casa de moda italiana de luxo.
A capa de outubro de 2020- que também teve outras drags queens estampadas - foi um marco da ascensão da cultura drag no Brasil. O que poucas pessoas sabem, no entanto, que foi também um ponto alto da carreira do menino André, nascido em "uma cidade desaplaudida do interior do Estado". A convite do maquiador Henrique Martins, ele confeccionou a peruca poderosa de Gloria Groove.
O seu jeito de ser, motivo de bullying na infância, tornou-se a base da criação artística da drag queen Malonna. Ao conceder a entrevista ao DiversEM, Malonna estava em Bogotá, na Colômbia. Foi convidada para assinar a caracterização (maquiagem e perucaria) da ópera "As bodas de Fígaro", na montagem feita no Teatro Mayor Julio Mario Santo Domingo. A estreia será nesta quarta-feira (31/08).
A paixão pela arte de fazer perucas veio como consequência do trabalho como figurinista de espetáculos. Atuando já no campo das artes, resolveu pesquisar uma nova técnica, e a perucaria foi a arte escolhida. "Comprei todos os livros com técnicas de perucaria que encontrei. Boa parte publicações americanas, britânicas, alguma coisa italiana e francesa. Estudei esses livros por anos".
Malonna ainda assistiu às aulas remotas com tutores no exterior. Depois de muita prática, tornou-se um dos principais nomes da perucaria artística no Brasil - e pode-se dizer mundial, uma vez que as drags queens brasileiras alcançaram visibilidade internacional como as mais seguidas em redes sociais no mundo. O foco é uso das técnicas de perucaria para a indústria de entretenimento, o uso artístico.
As perucas
As perucas confeccionadas por Malonna são bem diferentes das perucas prefabricadas com o cabelo costurado em tocas. Ela destaca que as perucas prefabricadas são muito boas para pessoas que perderam o cabelo e precisam usar perucas que tenham uma resistência no dia a dia. No entanto, para o campo das artes, ela aposta nas perucas feitas de maneira artesanal e sob-medida.
Malonna resgata as técnicas de perucaria, desenvolvidas desde o século XVIII, foram aos poucos sendo esquecidas no Brasil. Ela lamenta que muitos profissionais pararam de trabalhar e não ensinaram o ofício para ninguém. Ao mesmo tempo que os apliques e megahair ganharam espaço no mercado. Para que essa arte não morra, em 2016, montou turmas introdução às técnicas de perucaria em São Paulo.
Malonna confecciona perucas para filmes e séries - muitos deles de sucesso de bilheteria. Certamente, você já deve ter visto o trabalho dela, mas como as perucas são feitas com perfeição é bem possível que você não tenha identificado que o ator ou atriz as usava. "Faço perucas sob medida para que não sejam percebidas de forma alguma como perucas". Malonna confeccionou 25 perucas para o set do clipe da Selena Gomez gravado no Brasil.
Um trabalho completamente artesanal que ela realiza no ateliê em São Paulo, que inclui um passo a passo minucioso desde medir a cabeça do ator, fazer um manequim com formato exato, usar tules específicos (materiais que não são encontrados no Brasil). Depois é feita a construção de uma base com tamanho da cabeça do ator e colocação de cabelo, levando em conta as formas do crescimento do fio natural.
"O cabelo não nasce na cabeça da gente de qualquer forma, existe um padrão de crescimento. Em regiões da cabeça cresce mais virado par esquerda; outros crescem mais virado para a direita, temos redemoinhos. Não existem duas padronagens de crescimento de cabelo iguais, é quase uma impressão digital."
Malonna
Em 2004, Malonna veio para Belo Horizonte para estudar artes visuais e design de modas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Morou na capital mineira até 2013. Ela escolheu como referência a Madonna. O nome artístico Malonna foi criado em um trocadilho com a diva do pop admirada por ela.
"Quando eu comecei a performar, em2006, a fazer drag, eu me apresentei fazendo shows na época que Madonna fazia show usando maiôzinho e eu não escondia a 'mala', para vestir o figurino. Público criou como coisa pejorativo, eu agreguei. Hoje é menos sobre isso, não estou nessa fase do visual", diz.
Malonna que era usado em tom pejorativo foi ressignificado e passou a ter um uso político de reafirmação. "As pessos me perguntam 'é Malonna por quê?'Brinco que Madonna é mãe dos Deuses e Malonna mãe dos males".
Malonna não revela a idade, diz que parou de contar aos 21 anos."É uma questão ética. Vai ser genial quando ninguém mais acreditar e eu falar que tenho 21. É sábido que é só uma piada, um charminho. Uma mulher que conta a própria idade é capaz de qualquer coisa', brinca.
Um olhar drag para o mundo
As drag queens são conhecidas pelas perfomances, muitas vezes, interpretadas como de um homem no papel de uma mulher. No entanto, a arte drag vai muito além. Passou a ser um pensamento sobre a possibilidade de transcender ao gênero. Esse pensamento embasa o trabalho de Malonna.
"Desenvolvo meus projetos de caracterização, convidada como criadora, a partir de um ponto de vista drag. A partir de entendimento do corpo humano como algo a ser explorado do ponto de vista performático e artístico".
A arte drag subverte os códigos do corpo. "Drag faz pirataria o tempo inteiro. não só roubar música e o look de diva pop para fazer show. Pirataria no sentindo de hackear".
Malonna explica que a arte drag hackeia tanto os códigos de gênero, como os códigos do corpo humano. "Temos drag queen que tratam da ideia de ser humano, drag pós-humano. Temos drag que é bicho, drag que é robô. A arte drag subverte os corpos", conclui.