No Brasil, 2,9 milhões de pessoas de 18 anos ou mais se declaram lésbicas, gays ou bissexuais, de acordo com Pesquisa Nacional de Saúde (PNS): Orientação sexual autoidentificada da população adulta, divulgada em 25 de maio pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Cerca de 2% da população brasileira se autodeclaram homossexual ou bissexual. O DiversEM, Núcleo de Diversidade do Estado de Minas, entrevistou representantes de grupos que têm posicionamento diferentes sobre a relação do atual presidente da República e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL), com a comunidade LGBTQIA+.
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A seguir, a entrevista de Thiago Coacci ao Estado de Minas:
Qual é a posição do movimento LGBTQIA em relação ao governo Bolsonaro?
O movimento LGBTQIA+ é um fenômeno bem complexo, composto por muitas pessoas e diversas organizações com diferentes modelos organizacionais e ideologias. Assim, acho difícil falar que o movimento LGBTQIA faz x ou y, isso é quase sempre uma redução. Dito isso, é verdade que uma parcela considerável de ativistas e organizações LGBTQIA fazem oposição direta ao governo Bolsonaro, por compreender que esse governo tem como meta o desmonte das políticas públicas LGBTQIA e a construção de uma sociedade em que nossas vidas, nossos corpos e afetos não tem lugar ou no máximo ocupariam um lugar de subalternidade.
O presidente já disse que prefere ter um filho morto do que um filho gay. Essa fala pode incentivar as famílias a não acolherem os filhos gays?
Infelizmente sim, porque essa fala não é uma simples frase jogada num vácuo social, ela está inserida em um contexto histórico em que as pessoas LGBTQIA foram consideradas doentes, anormais e perversas. Até hoje, apesar de proibido em nosso país, pessoas LGBTQIA ainda são submetidas a falsos tratamentos para supostamente curar suas orientações sexuais e identidades de gênero. Pessoas LGBTQIA são expulsas de casas por seus pais e são frequentemente alvo de violência física, inclusive violência letal. Nesse contexto, uma frase como essa, dita por uma autoridade do país e repercutida em rede nacional sem nenhuma problematização normaliza esse tipo de violência, reforça a opinião de quem já tem posições similares e cria novas consciências em quem se identifica com a figura do presidente por outras razões.
Os conservadores são contrários ao casamento gay. Como você vê esse posicionamento?
Como uma grande bobagem. Acho que eles deveriam se preocupar mais com os próprios casamentos, aparentemente as coisas não andam muito bem e os heteros detestam tanto o casamento que mais de 80 mil casais se separaram em 2021. O próprio presidente, que se diz conservador e valorizar o casamento, está na terceira esposa. Acho que conservadores não estão realmente preocupados com a santidade do casamento, apenas não querem dois homens ou duas mulheres se casando.
Você defende um modelo de família mais inclusivo...
Eu entendo o lugar que o casamento e a família (no singular) ocupam na ideologia conservadora e como esses operam como uma forma de organização social dos gêneros e das famílias. Nessa ideologia, há papeis rígidos e hierarquizados de gênero, é uma ideologia que oprime as mulheres como subalternas aos homens e exclui aquelas pessoas que buscam outros arranjos familiares, afetivos e eróticos. No entanto, além de ser uma ideologia inerentemente injusta, como eu tentei mostrar na minha brincadeira, ela não condiz com a realidade brasileira, que é muito mais plural em seus arranjos.
O governo de Bolsonaro avançou em relação às políticas de proteção às pessoas LGBQIA?
Não, pelo contrário, retroagiu. O combate à violência contra pessoas LGBTQIA se faz, principalmente, criando uma cultura que não se baseie na cisheteronormatividade, ou seja, na ideia de que o normal, o padrão a ser seguido, é ser heterossexual e cisgênero. Esse tipo de mudança social só ocorre a partir da inserção de debates sobre gênero e sexualidade na educação e em produtos culturais, mas o governo Bolsonaro ativamente combateu esse tipo de política, extinguindo a SECADI no MEC, suspendendo e alterando critérios de editais, buscando influir nas questões do ENEM, dentre outras maneiras.
A Marina Reidel, uma mulher trans, atuou no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos...
Até existe, dentro do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, uma Diretoria de Políticas LGBT, com uma mulher trans como diretora. No entanto, as ações dessa diretoria são pontuais, com poucos recursos, pouco poder institucional e que, na verdade, acaba servindo apenas para dar um viés de legitimidade para esse governo, para fingir que não são contrários as políticas LGBT. Eu desafio qualquer leitor desse jornal a me falar 5 ações dessa diretoria e como elas impactaram diretamente na vida das pessoas LGBT do Brasil. Duvido que alguém me responderá, mesmo procurando no google e no site institucional de tal diretoria.
Quais as críticas que você faz ao movimento Gays com Bolsonaro?
Ser gay não cria imediatamente naquela pessoa a consciência e o conhecimento sobre a maneira como a sociedade funciona e como as lógicas de opressão atravessam aquela sua vivência. O professor Marco Prado diz que a homofobia não só nos impede de ver, mas impede de ver que não vemos. As pessoas que integram esse movimento estão tão imersas na cultura cisheteronarmativa que, muitas vezes, não percebem que estão colaborando para reproduzir violências contra si mesmo e que estão sendo usadas para legitimar um governo que propaga a sua própria morte. Não podemos também ignorar o sentimento de coletividade e de pertencimento que esses movimentos produzem
O que você pensa em relação às violências sofridas por pessoas LGBTQIA ?
Repudio toda e qualquer violência. Precisamos começar por aí. E é importante reconhecer também que a violência sofrida por pessoas LGBTQIA não é qualquer violência, ela tem características e funções específicas. Quando analisamos os assassinatos de pessoas LGBTQIA percebemos o seu alto grau de crueldade, genitália mutilada, rosto desfigurado, paus enfiados nos anus e por aí vai. Existe uma razão para isso ser assim, porque esse não é um crime comum, mas é um crime de ódio, é um recado para a sociedade de que nossas vidas não valem a pena ser vividas. As outras violências, não letais, também funcionam como um mecanismo de controle da fronteira do que é “normal” e “aceitável” em nossas sociedade, são uma punição para aquela pessoa que ousou cruzar essas fronteiras e um recado para outras pessoas que não cometam o mesmo erro. Essas violências precisam ser repudiadas, investigadas e punidas, não podemos continuar normalizando violências contra pessoas LGBTQIA .
A violência contra pessoas LGBTQIA aumentou durante o governo Bolsonaro?
É muito difícil dar uma resposta exata para essa pergunta, porque o estado brasileiro não produz dados oficiais sobre a violência contra pessoas LGBTQIA. O Estado não se interessa em saber se houve violência, se aumentou ou diminuiu. Um dos poucos mecanismos federais que coleta esse tipo de violência, o Disque 100, é um mecanismo importante, mas não é muito confiável, porque é desconhecido pela população geral e mesmo quem conhece frequentemente não vê razões de acionar por acreditar que não vai produzir resultados. Há também uma preocupação com o uso ideológico do Disque 100 para perseguir ativistas LGBTQIA, registrando denúncias por “ideologia de gênero”.
Mas teríamos algum indicativo?
O que sabemos da violência contra a população LGBTQIA no Brasil, sabemos por iniciativas dos movimentos sociais de coletar e produzir relatórios independentes, geralmente a partir dos casos que são noticiados em veículos de mídia. Isso, por si só, já cria uma distorção da realidade, pois vemos apenas aquilo que se tornou visível pela mídia, excluindo todo um universo de violências que não foram noticiadas ou que até foram, mas que não foi possível identificar a orientação sexual e a identidade de gênero da vítima. Os dados do Grupo Gay da Bahia mostram que 2017 e 2018 tiveram um número anormalmente alto de violência contra pessoas LGBTQIA, com mais de 400 casos identificados, já os anos seguintes seguem a tendência que se consolidou desde 2010, de uma média de 243 mortes por ano.
Se os assassinatos aparentemente seguem relativamente estáveis, outras formas de violência parecem ter sim aumentado. Uma pesquisa da Gênero e Número, realizada em 2019, argumenta que 92,5% das pessoas LGBTQIA entrevistadas relataram terem percebido um crescimento da violência, além disso mais da metade dos entrevistados relataram ter sofrido algum tipo de violência por causa de sua orientação sexual e identidade de gênero.