O Brasil figura, pelo quarto ano consecutivo, como o país que mais mata trans e travestis no mundo, e também é o país onde mais de 90% desse grupo precisa recorrer à prostituição para se manter. Spencer Jill Hastings e Eva Pires, ambas mulheres trans, mostram que a luta contra estes dados acontece todos os dias, e a chave para mudar essa realidade é através da educação e oportunidades.
“Me sinto honrada, foi uma conquista”, diz Spencer sobre ser a primeira mulher trans na empresa. “Hoje eu me sinto abrindo portas para outras pessoas, que estou sendo a precursora desse movimento”, completa.
Eva, após anos dando aulas de dança, apostou no setor autônomo para não se sujeitar a ambientes preconceituosos e decidiu se tornar representante de beleza da Avon. Em apenas um ano, tornou-se revendedora nível quatro e tem na venda de produtos de beleza sua fonte de renda.
Barreiras e preconceitos
Natural de Ouro Branco (MG), Spencer já sofreu com o preconceito antes mesmo de vim para Belo Horizonte, ao passar por uma situação de violência em que achou que iria apanhar no meio da rua e ficou quase duas semanas com medo de sair de casa novamente. Além disso, uma semana antes de ser contratada pela Vallourec, ela conta que um familiar chegou a ir à casa dela pra dizer “você não vai conseguir um emprego sendo desse jeito”.
Apesar do ambiente de trabalho saudável em que se encontra atualmente, Spencer aponta que a sociedade ainda é muito preconceituosa e que a segurança de pessoas trans nas cidades ainda é muito debilitada, influenciando nas escolhas de percurso e meio de transporte para ir e voltar do trabalho.
“Eu vou pra casa e Uber, não tenho coragem de ir embora a noite de ônibus, porque eu não sei o que vai estar atrás de mim, e isso é muito complicado. Então não é só a questão profissional, tem a segurança, nossa segurança também vale muito, cada vida é importante. Não merecemos morrer por ter uma identidade de gênero ou uma orientação sexual diferente”, afirma.
Empreender para sobreviver
Situações de preconceito no mercado de trabalho também aconteceram com Eva Pires, travesti de 33 anos que mora em São Paulo. Aos 26, decidiu passar pela transição e saiu do emprego na época por ser, segundo ela, um ambiente majoritariamente masculino e LGBTfóbico. Decidiu então investir em dar aulas de dança, tanto particulares quanto em estúdios.
Com a pandemia, não conseguia mais dar as aulas de dança e decidiu voltar para o mercado de trabalho formal. Mas via a mudança de tratamento nas entrevistas assim que percebiam que era uma mulher trans. Assim, em 2020 resolveu empreender e se tornar uma revendedora Avon, por uma memória afetiva da tia que também era revendedora e pelo fato de a marca ser muito conhecida e consolidada no mercado.
“Fui divulgando para as pessoas que eu conhecia, alunas da época de dança, amigos, vizinhos, divulgando na internet, como uma forma de me manter durante a pandemia. Seria isso ou a prostituição, como é o caso da maioria de nós, infelizmente”, conta Eva.
Ela lembra que também enfrentou dificuldades e preconceitos como revendedora, mas sendo autônoma tem a liberdade de não se sujeitar a um ambiente violento e estar em lugares onde é de fato respeitada.
“Preconceito existe todos os dias”, afirma Eva. “Se a pessoa não está sendo preconceituosa, eu faço a venda normal, é uma cliente como qualquer outra. Se em algum caso, como já aconteceu, a pessoa bater a porta na minha cara, eu não volto mais lá. Eu penso primeiro na meu bem-estar, na minha saúde física e mental”, completa.
Oportunidade como caminho contra o preconceito
Eva fala do estranhamento das pessoas ao ver travestis e mulheres trans em diversos ambientes além da rua, como em um churrasco de domingo com familiares e amigos, ou em cargos de chefia nas empresas.
Tanto Eva quanto Spencer defendem que o maior desafio é a sociedade entender que mulheres trans e travestis são capazes, independentemente da identidade ou orientação sexual, e que isso não define profissionalismo ou a qualidade do trabalho que realizam.
“Acho que o mais importante é a oportunidade, seja no mercado formal, seja como empreendedora, seja em cargos de CEO, gerencia etc, e não sermos vistas apenas pela nossa identidade, seja qual for, mas que sejamos vistas pelas nossas capacidades”, afirma Eva.
* Estagiária sob supervisão do editor Benny Cohen
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