A Antra (Associação Nacional de Travestir e Transexuais) e a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos) protocolaram uma ação civil pública contra a União na 13° Vara Federal Cível da SJDF (Seção Judiciária do Distrito Federal) pedindo a suspensão da emissão da CIN (Carteira de Identidade Nacional), que substitui o RG (Registro Nacional), e que já está sendo emitida nos estados do Rio Grande do Sul, Acre, Goiás, Minas Gerais, Paraná e no Distrito Federal.
Segundo as entidades, a CIN, criada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) sem consulta ou diálogo com a comunidade LGBTQIAP+, requisita o preenchimento de campos como “nome social” e “sexo”, que podem gerar situações de constrangimento e humilhações para a população trans e travesti no país. Para a Antra e a ABGLT, o novo formato, que inclui nome de registro acima do nome social e sexo na mesma face do documento, “abre margens para violências diversas, humilhações e tratamentos degradantes devido à cultura de ódio transfóbico que vivemos no Brasil”.
Com o propósito de ser um documento de modelo único e com validade para o território nacional, a CIN traz a possibilidade de inserção de diversos dados como o Título de Eleitor, Numeração da Carteira de Trabalho e Previdência Social, Carteira Nacional de Habilitação, NIS/PIS/Pasep, entre outros, diferentemente do atual RG, que é estadual e tem os campos “nome social” e “nome de registro” em páginas diferentes. “O problema é que vai acabar constrangendo quando a pessoa se apresentar com o documento e estar, ali, uma incongruência no sexo”, pontua a presidenta da Antra, Keila Simpsom.
Nome social x Retificação
A última alteração do RG aconteceu em 2019 e permitiu que o nome social para pessoas trans e travestis fosse incluído no documento a partir de um requerimento disponibilizado pelos órgãos públicos responsáveis pela sua emissão, além de uma autodeclaração garantindo ser transexual ou travesti. Neste caso, apenas primeiros nomes ou nomes compostos são alterados, mantendo o sobrenome, e o nome de registro permanece no verso do documento.
A inclusão do nome social no RG foi um grande avanço para a comunidade LGBTQIAP , principalmente para pessoas trans e travestis, que passaram a ter o gênero com o qual se identificam reconhecidos, ao menos socialmente. “O uso do nome social interfere diretamente nas relações desses grupos vulneráveis no meio social ao qual pertencem e está amparado pela proteção da dignidade da pessoa humana”, afirma um trecho da ação civil pública.
Essa pequena alteração, no entanto, não altera a certidão de nascimento. Para mudar nome e gênero no registro civil de nascimento, é preciso passar por um processo mais burocrático e demorado: a retificação. A pessoa deverá apresentar mais de dez documentos diferentes, que deverão ser aprovados por um juiz e, em seguida, se apresentar em um cartório de registro civil de pessoas naturais, sem necessidade da presença de um advogado ou de um defensor público.
Nos casos de pessoas com nome e gênero retificado na certidão de nascimento, a transição do RG para o CIN não será problema, ao contrário do que afirmam algumas páginas de coletivos e projetos LGBTQIAP nas redes sociais, que têm compartilhado desinformação sobre o tema. Keila Simpson afirma que, nestes casos, as chances de constrangimento são menores, já que as informações que aparecerão no novo documento estarão atualizadas e sem discordância entre si. “Não se pode expor o nome ou 'sexo' anterior. É proibido pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e CNJ (Conselho Nacional de Justiça). O problema maior está para pessoas não retificadas”, afirma em nota.
Inclusão de campo desnecessário
Para a Antra e a ABGLT, a inclusão do campo “sexo” na CIN aparece de forma desnecessária, já que não possui base ou demanda administrativa ou burocrática, e que outros documentos importantes não requerem essa informação, como o título de eleitor e o CNS (Cartão Nacional de Saúde). Segundo as entidades, para pessoas trans e travestis que não possuem o nome retificado, essa obrigatoriedade representa uma exposição que abre brechas para violências e violações de direitos.
Gustavo Coutinho, um dos advogados responsáveis pela ação contra a União, explica que é dever do Estado garantir que o documento não comprometa a vivência de pessoas trans e travestis. “É fundamental que o Estado forneça e adote medidas para emissão de carteira de identificação que não violem os direitos de pessoas trans. Caso haja uma decisão favorável em primeira instância, o que não acreditamos, nós continuaremos, não só em segunda instância, mas também nos tribunais superiores”, comenta ele.
Todos as unidades federativas do Brasil devem aderir à CIN até março de 2023. Por isso, as entidades pedem urgência na decisão, enxergando, na suspensão da emissão desses documentos, uma oportunidade de obrigar o governo federal a dialogar com a comunidade LGBTQIAP .
“Se o decreto tivesse a possibilidade de ser debatido antes da emissão dos primeiros RGs, seria muito melhor. Nós temos organizações da sociedade civil no Brasil inteiro que poderiam ser chamadas para debater esse assunto, para discutir qual a melhor maneira de fazer esse documento. E não pessoas do governo, em uma sala fechada, decidirem o que vão fazer sem ouvir quem vai se constranger, quem vai ser discriminado. A gente sabe que os estados ainda são poucos. Por isso, a nossa urgência de mover essa ação, para que as pessoas possam repensar e achar mecanismos que não vão constranger”, explica a presidenta da Antra.
A reportagem do DiversEM entrou em contato com a Advocacia Geral da União (AGU) e com o Ministério da Economia, mas ainda aguarda resposta.
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